PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A VILA DAS VELAS
Guilherme de Morais descreveu a vila das Velas, o maior agregado populacional da ilha de São Jorge, assim: “um aglomerado de casas muito brancas subindo a encosta íngreme em jeito de pessoa cansada que parou a meio da viagem, deixando correr os olhos pelo horizonte sem fim.” Por sua vez alguns panfletos turísticos definem-na desta forma: visão peregrina e aliciante, açapada no sopé de forte morro. Vila gaiata e alegre, aconchega sobre si monumentos vistosos...”
A vila das Velas fica do lado Sul da ilha de São Jorge, no fundo de uma fajã, resultante de um escorrimento de lava proveniente das montanhas que lhe ficam a norte. Enclausurada entre a montanha e o mar, a vila das Velas torna-se bastante abrigada, resistindo às intempéries e aos ventos fortes. Esta sua posição geográfica privilegiada, terá sido, incontestavelmente, o principal motor da sua evolução e do seu crescimento. Esta vila, situada geograficamente mais ou menos a meio da ilha, possui uma posição estratégica tal que a torna ponto de intercâmbio de pessoas e bens entre as ilhas do grupo central, justamente por se encontrar no centro das mesmas. Esta posição e as condições do seu porto, também lhe permitiam que outrora fosse o porto eleito para escala dos navios das carreiras regulares entre Lisboa e as ilhas, nomeadamente, do Carvalho Araújo e, actualmente, do Santirini.
As Velas é uma vila fascinante. O seu fascínio estampa-se de modo particular na sua arquitectura e na sua posição geográfica. Além das suas igrejas, destaque para o jardim situado no centro da vila, dotado de um característico coreto e que é ponto de encontro ou de passagem obrigatória dos jovens nas quentes noites de Verão. A Igreja Matriz dedicada a São Jorge, levantada no local onde dantes existia uma primitiva igreja, também dedicada a São Jorge foi construída no seculo XVII, sendo sagrada em 1675, pelo então bispo de Angra, D. Lourenço de Castro. No entanto, sabe-se que a actual fachada já não é a primitiva. O seu interior e composto por três naves e possui, na capela-mor um retábulo que se cuida ter sido oferta de El-rei D. Sebastião. Vários vitrais contemporâneos representam a lenda de São Jorge a matar o dragão. Anexo à igreja encontra-se o Museu de Arte Sacra de São Jorge, que possui uma interessante colecção de imagens sacras, uma pintura em vidro representando São Jorge, e valiosas alfaias litúrgicas, assim como algumas esculturas, cerâmicas, móveis, fotografias e um importante arquivo histórico. Outro templo importante é a igreja de Nossa Senhora da Conceição, templo que pertenceu ao antigo Convento de São Francisco. Trata-se de uma construção do século XVII. Apresenta-se com corpo único dotado de galilé e cornijas elaboradas em lava de negra. A nave está enriquecida com talha dourada e o altar-mor é de estilo barroco.
Sob o ponto de vista paisagístico, um dos percursos mais admirados nesta região é aquele que parte das Velas na direcção direito da baía de Entre Morros, passando pelo Parque Florestal das Sete Fontes, até à Ponta dos Rosais, à Fajã da Ponta Ferrada e à Urzelina. Aos verdes matizados e frescos das pastagens, juntam-se as manchas azuis das hortênsias, os maciços de fetos, os jarros e as beladonas que cobrem as encostas. Pelo Sul, num percurso paralelo ao canal, avista-se sempre ao fundo a ilha do Pico, com o seu magnífico cone quase sempre rodeado de uma coroa de nuvens. Sucedem-se panoramas sempre diferentes, passando pelas fajãs dos Lourais, de Vimes e de São João. Na vila da Calheta, construída paralela ao mar, existe um conjunto de piscinas naturais talhadas nas rochas negras que fazem as delícias dos banhistas. O Topo, primeiro ponto de desembarque dos descobridores, é hoje uma pequena vila com um pitoresco porto de pesca e, naturalmente, um farol vermelho e branco, com um enorme ilhéu, em frente
Considerada, juntamente com as Flores, uma das ilhas mais verdes dos Açores, S. Jorge está povoada, aqui e além, de castanheiros, faias, pinheiros, eucaliptos e acácias, que se misturam com os vestígios da floresta laurissilva existente antes do povoamento. O cedro e a urze são relíquias da vegetação existente no Sul da Europa e no Norte de África há mais de 15 milhões de anos.
As fajãs resultam dos desprendimentos de terra da falésia, que se estendem até ao mar e são transformadas pelo homem em férteis campos de cultivo
Gaspar Frutuoso, o mais antigo cronista açoriano, descreveu a ilha de S. Jorge no seu livro «Saudades da Terra» observando a existência de «muito gado vacum, ovelhum e cabrum, do leite do qual se fazem muitos queijos em todo o ano, o que dizem ser os melhores de todas as ilhas dos Açores, por causa dos pastos», abundantes nas zonas de média e elevada altitude.
Quem sair da Vila das Velas e for até a costa do morro da Ponta das Eiras, fim da pequena planície onde assenta a vila, descobre uma paisagem fascinante e pode deliciar-se com a Natureza que se abre sobre o miradouro da vila. Se subir ao morro a paisagem é quase de cortar a respiração. Não só pelo precipício que do morro se abre a nossos pés mas pela vista das Velas e de grande parte da costa. Nos arredores das Velas existem, varias fajãs como é o caso da fajã da Queimada, com miradouro debruçado sobre o aglomerado de tipo citadino que é hoje a vila. Famosa também por ter sido palco de uma erupção vulcânica recente.
Sabe-se hoje que a vila das Velas foi outrora fortificada sendo a sua costa defendida por muralhas fechadas por portões, restando, actualmente, apenas o portão do cais. O porto das Velas, situado numa baía abrigada, funda e espaçosa, é um dos melhores e mais abrigados portos dos Açores.
NB – Dados retirados de alguns sites da Internet.
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NA DOCA
A cidade de Ponta Delgada, naquela manhã, despertara cinzenta, enevoada e banhada por uma chuva persistente, irritante e miudinha. A estender-se sobre uma enorme e longa planície, a maior urbe açoriana como que se escondia de quem ali chegava, de barco, vindo das outras ilhas, ocultando as suas igrejas, os seus palácios, os seus monumentos, os seus jardins e até grande parte do seu casario, não apenas por entre as brumas e nevoeiros matinais, mas também por de trás dos altíssimos e esbranquiçados prédios da Avenida Marginal. Esta estendia-se e prolongava-se, paralela à baía, desde do Castelo de São Brás até à igreja de S. Pedro, permitindo, no entanto, concluir-se que, a partir daí, a ilha do Arcanjo, que eu demandava pela primeira vez, continuava muito para além, ultrapassando a Lagoa e Vila Franca, através de um verde desbotado, entontecido pelo enevoado das brumas matinais. Um espectáculo grandioso, magnífico, e arrebatador, muito diferente do que observara, quer quando chegara à Horta, quer quando permanecera fora de Angra, um dia inteiro, mas do qual eu, aos poucos, me ia alheando, mais preocupado com a inexaurível angústia que sentia e a enigmática situação em que me encontrava.
Depressa o padre que ali estava à espera dos que demandavam o Seminário agregou ao seu redor um enorme punhado de crianças, acabadas de sair do vetusto paquete atracado à doca. Uns, trajando fato preto e gravata, mais expeditos, mais lestos, mais afoitos, mais conhecedores do pequeno mundo onde agora eram despejados, abraçavam em eflúvios de satisfação e alegria recíproca aquele homem de batina preta e gabardina azul, elegante, aprumado e sorridente, que espelhava no rosto e, sobretudo, nas atitudes uma alegria contagiante e atraente. Eram os do segundo ano, que regressavam de férias, do Pico, de São Jorge e da Terceira, Outros, entre os quais eu me incluía, mais tímidos, mais angustiados, mais temerosas, esperavam, apreensivos, a sua vez de também cumprimentarem aquele que, cuidavam, seria um dos professores que os acompanharia no Seminário, durante os próximos dois anos.
Quando chegou a minha vez de cumprimentar o padre e me apresentar, aproximei-me, tímido e assustado, tentando, beijar-lhe a mão, conforme as indicações que recebera da Dona Maria, a irmã do Senhor Padre Pimentel, quando, ainda na Fajã, na véspera de embarcar, me fora despedir. Indicara-me a casta e douta senhora que, quando chegasse ao Seminário, sempre que me aproximasse dos Superiores ou de outro senhor padre qualquer para os cumprimentar, lhes havia de beijar a mão direita. O sacerdote, no entanto, sem que eu o pudesse evitar, fez um intencional esforço por manter o braço baixo, permitindo, assim que eu apenas o cumprimentasse e não lhe osculasse a mão. Além disso, mantendo a minha mão presa pela sua, por alguns segundos, perguntou-me:
- E tu? Como te chamas e donde és?
Indiquei-lhe o meu nome, acrescentando que era das Flores, da Fajã Grande das Flores. Logo, num micaelense sibilante e adocicado, exclamou, com um misto de alegria, como que se tentasse desmoronar a tristeza que me extravasava do rosto e a mágoa que me acabrunhava o espírito:
- Ah! Tu é que és das “Felores”! Estás todo molhado, meu filho! Precisas de mudar de roupa, depressa.
Por instantes animei-me e contive, parcialmente, o meu sofrimento e a minha angústia, com as palavras ternurentas e amigas do padre. Afinal, sendo ele um Superior do Seminário, estava muito bem informado, pois até já sabia que vinha um candidato das Flores e preocupava-se comigo, por eu estar molhado. Além disso o padre, que nessa altura revelara, a um outro mais curioso do que eu, o seu nome – Agostinho Tavares – voltou a chamar-me:
- Vai, depressa, dizer àqueles senhores quais são as tuas malas. Vamos tentar despachá-las o mais cedo possível, para que mudes de roupa quanto antes.
Eu, cada vez mais animado com a atenção que o padre me dispensava, retorqui, dizendo-lhe que não podia abrir as malas, pois havia perdido as chaves. Mas o padre, a ter que a atender a tudo e a todos, já não me ouviu.
Não demorou muito, aquele aglutinado espontâneo. Pouco depois de o padre Agostinho Tavares, se certificar de que não havia mais nenhum candidato a seminarista a bordo do Carvalho, juntou todos os que ali estavam ao seu redor, informou-nos de que os empregados haviam de tratar da bagagem mais pesada e transportá-la até ao Seminário.
De seguida partimos, em rancho, na direcção daquela que seria a nossa casa durante dois anos.
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A LADEIRA DA ASSOMADA
Na Fajã Grande, na década de cinquenta, existiam dois lugares com o nome de “Ladeira”, sendo que ambos estavam situados em encostas. Um, abrangia toda a encosta do planalto do Mimoio, sobranceiro ao lugar e à rua da Tronqueira e era conhecido simplesmente pela Ladeira. O outro ocupava toda a verdejante e bem extensa encosta do Outeiro e Outeiro Grande, desde da Cruz até ao Covão e sobrepunha-se à rua da Assomada, em quase toda a sua extensão, desde a Praça ao Vale da Vaca. Para distinguir estes dois topónimos, o segundo era designado por Ladeira da Assomada.
A Ladeira da Assomada era uma enorme encosta, encastoada no Outeiro e sobranceira à Assomada. A zona mais baixa e próxima das habitações era ocupada por terrenos agrícolas de pequena extensão, nalguns casos belgas, sobrepostas umas às outras e, noutros casos, pequenas courelas, anexas às próprias habitações. A sua pequena extensão e a fraca qualidade do terreno, já um pouco encastoado no Outeiro, faziam com que ali apenas se cultivassem algumas hortaliças e um outro pé de milho. Mas o maior aproveitamento de quase todas estas pequenas terras era para o cultivo da batata-doce.
A estas pequenas belgas e courelas seguia-se um espaço de relvas. Mas eram, também, tão pequenas e tão pouco produtivas que nunca se destinaram a pastagens de bovinos. Muitas delas serviam de estendais de roupa enquanto noutras eram amarradas ovelhas. Algumas, ladeadas por densos canaviais, serviam mesmo de currais para as galinhas.
Finalmente, na parte superior da encosta, também ela pouco fértil e povoada por enormes pedregulhos, alguns deles muito salientes e a ameaçar derrocadas, havia uma zona arborizada. No entanto tratava-se de pequenos arbustos como a queiró, o sanguinho, pau-branco, faia, vinhático, espadanas e um ou outro loureiro. Espalhadas por entres estes arbustos e a destacarem-se pelo seu tamanho uma ou outra “babosa”, entre as quais tinham lugar de relevo duas gigantes, conhecidas pelas babosas do Farnande, dado que se situavam numa propriedade pertencente aos filhos de Ti Manuel Rosa, um dos quais se chamava Fernando. Mas o que mais existia na Ladeira da Assomada eram canas, de todos os tamanhos, grossuras e feitios e que eram aproveitadas para fazer bardos, portões, separadores e sobretudo para as crianças, que ali as iam apanhar com frequência, fazerem os seus brinquedos preferidos: botes de baleia e instrumentos musicais. Também se usavam as canas para fins domésticos pois com elas se construíam os canudos de assoprar o lume, esteiros para os queijos escorrerem o soro, paus para lavrar tripas e estacas para subirem os feijoeiros.
A razão deste topónimo, parece, logicamente, ter a ver com a sua forma estrutural, uma vez que a palavra “ladeira” significa precisamente, uma inclinação acentuada de um terreno, embora na Fajã Grande a palavra se usasse para designar a inclinação acentuada de um caminho e, com este sentido, havia, na Fajã Grande, vários topónimos: Ladeiras do Covão, Covas, Calhau Miúdo, Ponta, Fontinha, Biscoito, Pessegueiro, Bandeja, Alagoinha, Batel e muitas outras.
A Ladeira da Assomada era uma espécie de lugar mítico para a ganapada, sobretudo para os que moravam ali perto, uma vez que, ora servia para lugar de jogos e brincadeiras ora para aventuras diversas e envolvimentos emotivos. Mas o que mais a mistificava era o facto de ser dali que, em noites de invernia, descendo sobre o casario em eco sublime e diáfano, o sibilar do vento norte cantasse maviosas e deslumbrantes melodias com as quais, muito enroladinhos nos cobertores, adormecíamos.
Ladeira da Assoma, um mito, outrora personificado e hoje perdido, de alegria, enlevo, nostalgia e saudade.
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À MARGEM DE UMA BIOGRAFIA DE RIMBAUD
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Saído da Batávia fugido, desertor procurado
do exército colonial holandês,
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, de vinte
e dois anos de idade e francês de nação,
que não sei se viajou como passageiro
ou (pagando assim a passagem) matalote engajado
do cliper inglês que aceitou trazê-lo para a Europa
e que fez, passado o Índico, escalas no Cabo
e Santa Helena e a Ascensão e o Faial,
em que aportou em não achei que dia
do começo de Outubro de 1876;
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, já dito,
vagabundo, poeta (ainda?),
não escreveu que se conheça
tão-pouco uma carta à família em que conte
como era a Horta naquele tempo.
E também, infelizmente, nenhum dos três
jornais que havia na pequena cidade ship-chandler
deu notícia que ele a visitava (ou visitara)
nem de modo indirecto denunciou a sua passagem por lá,
por exemplo relatando alguma desordem
na Rua Velha ou na Rua do Mar.
se bem que acolhendo as musas, os jornais da Horta
normalmente evitavam (quanto possível)
trazer nomes de criaturas como as Paciências,
a Cordeira, as Blicas, a Aparquinha, a Madraça,
criaturas afinal tão filhas de Deus como o poeta Rimbaud,
que, calem-se ou digam-no hipotéticas inéditas crónicas,
foi a casa de alguma delas,
sabedor decerto do preço em boa conta
dos seus rimiformes predicados.
Pedro da Silveira Poemas Ausentes