PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MANUEL LINO
Manuel António Lino nasceu em Angra do Heroísmo, em 4 de Janeiro de 1865, tendo falecido na mesma cidade, em 15 de Junho de 1927. Foi médico, inspector de saúde, professor, Governador Civil, poeta e dramaturgo. De origem humilde, estudou em Angra e partiu para Coimbra, em 1884, onde fez os preparatórios para frequentar Medicina, tendo concluído a formatura em 1892. Aluno excelente, foi premiado em todos os anos da licenciatura, mas recusou o convite para leccionar na Universidade. Regressado a Angra, abriu consultório, exercendo clínica geral e oftalmologia. Foi médico municipal na Praia e em Angra, delegado de saúde do Distrito, guarda-mor de saúde e subinspector. Em 1899, integrou uma missão encarregada de estudar a peste bubónica em Espanha, França e Inglaterra. No regresso, ficou algum tempo no Porto, ajudando a combater aquela epidemia, cuja experiência, mais tarde, lhe foi muito útil no tratamento da mesma na ilha Terceira. Foi várias vezes agraciado pelos serviços prestados à comunidade. Foi professor de Ciências Naturais e de Química no Liceu de Angra. Dedicou-se ao cultivo de flores, tendo feito várias exposições em Angra. Como amante do teatro, escreveu algumas comédias de costumes sobre a vida local e traduziu outras de dramaturgos estrangeiros. Amador musical, compôs a partitura para a opereta Rosas e Crisântemos, da sua autoria. Foi ainda colaborador de vários jornais, membro da Comissão de Estudo e Propaganda da Autonomia Administrativa dos Açores, governador civil da Horta, vice-presidente da comissão administrativa da Junta Geral e presidente da Cozinha Económica Angrense. Politicamente, alinhou com João Franco, no Partido Regenerador Liberal, tendo sido membro da direcção no distrito.
A Câmara Municipal de Angra resolveu homenageá-lo com um pequeno busto, no jardim da cidade, em 1949. Carlos Enes
Obras Principais: Kodaks e Edelweisse.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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CHOQUE INICIAL
Quando entrei, pela primeira vez. no velho edifício do Seminário de Santo Cristo, no antigo Convento dos Jesuítas, em Ponta Delgada, estava receoso, apreensivo e muito amedrontado. Tudo ali era extravagante, estranho, descomunal, esquisito e austero. Habituado às reduzidas dimensões da minha minúscula e simples casa da Assomada, na Fajã Grande, onde nascera e fora criado, amedrontava-me com aquelas paredes altíssimas, aqueles salões enormes, aqueles corredores infindáveis e aquelas escadarias geladas, escuras e gigantescas. Uma onda de estranheza associada a frémitos de medo e convulsões de angústia dominavam-me por completo, em cada hora, em cada minuto, fulminando-me radicalmente. Um choque inicial terrível. Entrei num choro amargo, dolente e convulsivo que, por vergonha, tentava esconder dos outros retirando-me, sempre que possível, para os cantos que julgava mais recônditos, a fim de que ninguém me visse chorar. Desejava ardentemente regressar às Flores, donde, cuidava, nunca deveria ter saído.
Passado algum tempo, no entanto, fui-me recompondo daquele choque inicial, previsível e inevitável. A roupa já se me enxugara no corpo, mas necessitava de mudá-la. Há quatro dias que andava com ela, que a roçara pelos corrimões e amuaras do Carvalho, sujando-a e besuntando-a por completo. Parecia-me que ainda cheirava a vomitado e a terceira classe. Uma imundície a que não podia sujeitar-me, que não devia partilhar com os outros e a que urgia por termo. Antes que o fizesse, porém, vieram chamar-me. Entendia o padre Agostinho Tavares que o nosso principal problema seria a fome, por isso, juntou todos os recém-chegados no corredor central e conduziu-os ao refeitório. Era uma sala grande, com janelas altíssimas, muito clara e com três enormes mesas paralelas e enfileiradas umas ao lado das outras, havendo uma quarta, mais pequena e perpendicular a estas, destinada aos professores. Serviram-nos café quente com o leite e açúcar já misturados, pão e manteiga, esta antecipadamente colocada nos pratos de cada um, através de uma pequena forma de madeira com um êmbolo no fundo. O empregado passava pelas mesas, enchia a forma, voltava-a sobre os pequenos pratos destinados aos alunos, carregava no êmbolo, despejando assim a forma da quantidade de manteiga que ela continha. Apesar de ter muita fome, pois não me alimentava desde a manhã do dia anterior, não tinha apetite e pouco comi, vingando-me no café, saboroso, adocicado e quase a ferver, que me aqueceu o corpo e animou o espirito.
Terminado o bródio fomos conduzidos ao salão de estudo, onde já nos aguardavam as nossas malas.
Foi nesta altura que o Jorge, um miúdo alto, esguio e espadaúdo, veio ter comigo, a pedir-me desculpa e a fazer as pazes, embora isso pouco me animasse, pois continuava sem saber como havia de abrir as malas. Havia sido ele que, a bordo do Carvalho me dera sumiço às chaves. Só mais tarde, enquanto chorava, sentado sobre elas e sem saber o que fazer, o padre Agostinho me procurou, inteirando-se do meu problema. Chamou de imediato um empregado, munido de martelo, escopo e um molho de chaves velhas e já sem uso ou destino. Por sorte e para espanto meu, uma delas abriu a minha mala. O baú, porém, só à marretada, desfazendo-se-lhes não apenas as fechaduras mas até uma das dobradiças, ficando eu como meu pobre e velho baú americano permanentemente aberto.
De seguida, o padre Agostinho, sempre muito solícito e atencioso, indicou-me onde podia tomar banho, conduzindo-me até ao piso inferior, por uma escadaria de pedra. Escolhi a roupa que devia vestir e peguei numa toalha e dirigi-me para o local indicado. O balneário era um pequeno cubículo, com uma prateleira entrincheirada nas paredes, onde podia colocar a roupa limpa e a toalha, e um chuveiro, que se ligava por duas torneiras. Em minha casa tomava banho sentado numa selha de madeira, enquanto a minha irmã, depois de eu me ensaboar, me ia deitando água por cima, por isso, era a primeira vez que tomava banho de chuveiro e não sabia que uma torneira se destinava à água fria e outra à quente, nem muito menos sabia que, abrindo as duas ao mesmo tempo, poderia controlar a temperatura da água. Abri a primeira e a água caía por cima de mim fria como gelo. Novo choque, desta feita térmico. Fechei-a e experimentei a outra. A água pelava como lume. Entre ficar queimado ou gelado, optei pela torneira que abrira inicialmente e tomei um banho geladíssimo. Era com se estivesse na Fajã, no Inverno, a caminho dos Lavadouros para ir buscar à relva a Benfeita e a Toucada e começasse a chover, torrencialmente, sem eu ter onde me abrigar.
Terminado o banho voltei ao baú, para tirar o colchão de casca, a travesseira de musgo e a roupa da cama. Por determinação do prefeito, a minha cama era a sexta, do lado direito de quem entrava na camarata, junto a uma janela que dava para o campo de futebol. Os primeiros espaços ficavam reservados às camas de alguns alunos do segundo ano, pois as camaratas destinadas a estes, no outro lado do edifício, tinham lotação limitada. O Jorge, optou por colocar a sua cama, logo a seguir à minha. Agora falávamos e conversávamos como se tivéssemos sido sempre amigos e não tivesse acontecido aquele episódio das chaves que tanto me arreliara e preocupara. No entanto, passados poucos dias, ele decidiu abandonar o Seminário.
Cansado da viagem, tendo dormido pouco nas três noites anteriores a bordo do Carvalho, a minha primeira noite em São Miguel foi de um sono calmo, profundo e tranquilo. Antes de adormecer, porém, ainda ouvi os três silvos do Carvalho. Naturalmente que abandonava Ponta Delgada com destino a Santa Maria. Apenas daqui um mês regressaria, novamente, das Flores e havia de trazer uma carta da minha irmã. Os olhos voltaram a encher-se-me de lágrimas e o peito de dor, mas adormeci pouco depois.
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JUSTA HOMENGEM A COELHO DE SOUSA
Ontem, dia 21 de Fevereiro, a Assembleia Municipal e a cidade de Angra, finalmente, prestaram uma justa e devida homenagem a um dos mais ilustres terceirenses, o padre Coelho de Sousa, galardoando-o com a Medalha de Honra do Município Angrense.
Manuel Coelho de Sousa nasceu a 30 de Setembro 1924 na Vila de São Sebastião, ilha Terceira, ali falecendo a 2 de Setembro de 1995. Filho de João de Sousa Pacheco e de Maria de Melo Toste, entrou para o Seminário de Angra, em Outubro 1937 onde cursou Filosofia e Teologia, ordenando-se de presbítero em 20 de Junho 1948, precisamente no dia, em que a Imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima visitava os Açores.
Foi professor no Seminário de Angra e no Liceu da mesma cidade, jornalista e chefe de redacção de “A União.” Já em plena década de sessenta frequentou o Curso de Filologia Hispânica na Universidade de Salamanca, Espanha, após o que regressou aos Açores, sendo nomeado pároco de São Sebastião, onde permaneceu até à data do seu falecimento. Durante esse período de tempo foi director-adjunto do jornal “A União”, e mais tarde seu director.
Além de pároco, professor e jornalista, Coelho de Sousa notabilizou-se, também, como orador sacro, como poeta, dramaturgo, pintor, encenador e ensaiador, escritor e animador cultural. Da sua vasta obra literária destacam-se, na poesia Poemas de Aquém e Além (1955) e Três de Espadas (1979), e na prosa Na Rota da Emigração Amiga (1983), Migalhas (1987) e Boa Nova (1994).
Tive o Padre Coelho de Sousa como meu professor nos primeiros anos de estudo no Seminário de Angra, em duas disciplinas: Português e Desenho. Confesso que a segunda nunca me motivou, não por culpa dele mas por falta de aptidão minha. Mas como professor de Português guardo dele as mais belas lições que foram despertando em mim acelerado interesse não só pela prosa mas sobretudo pela poesia. Recordo uma aula de Português em que o tema era o soneto. Tarefa nada fácil a qualquer professor, a de ensinar o soneto a crianças. Coelho de Sousa fê-lo de forma sábia, agradável e, sobretudo, cativante. No fim da aula, Coelho de Sousa munido dos mais interessantes e conhecidos sonetos de Camões, distribuiu um por cada aluno, com a tarefa de o decorar e o declamar na aula seguinte. A mim coube Erros meus, má fortuna, amor ardente que ainda hoje declamo de cor e que mais tarde me deliciei ao ouvi-lo cantar, magnificamente, por Amália Rodrigues.
Para além de professor e de sacerdote, apreciei sempre Coelho de Sousa como um homem digno, honesto, exemplar, educado, elegante, simpático e meigo. Deliciava-me ouvi-lo declamar os seus poemas, deleitava-me com o deslumbramento da sua sensibilidade estética, adorava presenciar as suas peças de teatro levadas à cena pelos teólogos e guardo dele a mais verdadeira memória de professor amigo, sincero e nobre nas suas relações comigo.
Em boa hora, pois, foi prestada uma justa homenagem, àquele que desde há muito a merecia.
O padre Coelho de Sousa, no entanto, já havia sido homenageado pela população da freguesia que o viu nascer, crescer e que o teve como pastor, mandando edificar-lhe um busto na adro da Matriz e atribuindo-lhe o nome a uma rua na Vila S. Sebastião.
Aqui lhe presto, também, a minha simples, humilde, singela, mas sincera e grata homenagem.
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À ESPERA DO ENCONTRO
No aconchego
da amizade,
aguardávamos,
ansiosamente,
o Encontro:
uma revoada de recordações e de memórias
- encantos entontecidos pelo tempo -
que haviam de cair sobre nós,
em catadupa,
e a unir-nos
ainda mais.
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A SOBERANIA DA MÚSICA
A Música, no Seminário de Angra, fazia parte do quotidiano dos seminaristas e estava presente em todos os momentos mais importantes, sobretudo nas mais diversas celebrações litúrgicas e nas variadas realizações culturais, realizadas, ao longo do ano, no Seminário. Ocupando um lugar destaque nos currículos, para além de ter uma carga horária alargada, que incluía aulas teóricas e práticas, vulgarmente chamados “ensaios”, era a Música a única disciplina que integrava todos os planos curriculares, desde o primeiro ao último ano, uma vez que os mentores dos currículos entendiam que o clero deveria saber música para a poder ensinar e, sobretudo, realizar condignamente as celebrações litúrgicas que a exigiam. Além disso, já se cuidava que a Música, tinha um papel importante no desenvolvimento global dos alunos, contribuindo também para o seu desenvolvimento cultural, científico e intelectual, desenvolvendo muitas outras capacidades. Para além da formação obtida nas aulas, havia variadíssimos ensaios, para a Capela, para os saraus, para festas, para as Academias e até para os passeios que se realizavam às freguesias. As próprias reuniões da Congregação Mariana e dos Escuteiros iniciavam-se e encerravam-se com música e todos os domingos em que os seminaristas não se deslocavam para a Sé Catedral ou para outra da igreja da cidade, a fim de animar, musicalmente, as celebrações aí realizadas, havia missa solene e cantada na capela do Seminário.
Dentro do Seminário, a Capela não parava, imiscuindo-se quase diariamente no acompanhamento de missas, das novenas do Natal, o mês de S. José em Março, o de Maria, em Maio e o do Coração de Jesus, em Junho. Durante as novenas de Maio e Junho eram cantadas as Ladainhas de Nossa Senhora e do Coração de Jesus. Além disso havia muitas outras devoções, missas solenizadas devoções diárias e outras novenas e tríduos, que exigiam músicas adequadas e que exigiam ensaios diários, geralmente pedaços de tempo retirados às horas de estudo.
Mas o epicentro de toda esta soberania musical, era incontestavelmente o concerto do Orfeão do Seminário, realizado por altura da festa de São Tomás de Aquino, para o qual os seminaristas se preparavam com ensaios diários, logo a partir do início de cada ano lectivo. Para além do hino do Seminário que abria a sessão, seguia-se sempre o “Oremus Pro Pontifice - de Licinio Refice. Ao longo dos vários anos muitas outras obras de uma beleza extraordinária se cantaram e que, acompanhadas pela Orquestra Filarmónica de Angra, atraíam uma enorme plateia ao salão de festas do Seminário e que eram transmitidas em directo pela Rádio Club de Angra”.
Notáveis também eram as festividades na Sé, que a Capela do Seminário acompanhava com grande qualidade e competência e que atraíam à Catedral Açoriana imensos fiéis, muitas vezes mais para saborear a beleza musical dos cânticos executados do que para participar nas celebrações litúrgicas. Eram notáveis os cânticos da Semana Santa, das Matinas de Natal e, sobretudo, o “Dies Irae” no dia de Fiéis Defuntos.
Toda esta efervescente e brilhante actividade e animação musical se deveu à acção de grandes mestres, alguns deles ilustres maestros, que lideraram, nas décadas de cinquenta e sessenta, o ensino da Música no Seminário: o padre Ávila, o Dr Antonino Tavares, o padre Jaime e, sobretudo, o Dr Edmundo de Oliveira, meu mestre e maestro durante dez anos. Foi também a exímia e formação destes músicos que fizeram com que muitos alunos que frequentaram o Seminário naquelas décadas, sobretudo os mais dotados, obtivessem uma sólida, consistente e completa formação musical que, mais tarde, os havia de guindar na senda êxitos notáveis e feitos assinaláveis, a nível da música.