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A MUSGUINHA

Segunda-feira, 24.02.14

Fora assinalada, logo à nascença, com o carácter indelével da indiferença paterna: “Só faltava mais este empecilho!... Há de se criar praí”. A mãe, ainda mal refeita das dores puérperas, também, encolheu os ombros e limitou-se a confirmar, em tom doloroso e suplicante: “Com a ajuda de Deus”.

Predestinada com a indiferença paterna, assinalou-a tragicamente, o acaso obsequiando-a com uma infância dolorosa, amargurada e displicente. O destino pautou-lhe a juventude com desgraça, sofrimento, solidão e tristeza. Por isso mesmo, entrou na adolescência envelhecida e infeliz, açulada pela desventura, pelo abandono, pela miséria e, até, pela fome. Já feita mulher escapou-se-lhe o amor, escapuliu-se-lhe o carinho e evaporou-se-lhe, insustentável, a alegria de viver.  

Maria de Freitas de seu nome, granjeara o epíteto de “Maria Musguinha” ou, simplesmente, “A Musguinha” porquanto, em vida, se especializou na apanha de musgo, nos baldios dos matos, que acarretava à cabeça em pesados sacos e que depois ia vendendo aqui e acolá, por tuta e meia. Com este mísero e incerto rendimento lá foi sobrevivendo e, ajudando os pais, velhos, doentes, também eles abandonados e sós, escanzelando-se em desmazelo, finando-se em abandono e indiferença.

Ficou só, a Musguinha. Com a morte dos pais fixou-se, ainda mais, num isolamento, total, absoluto e hediondo. Abdicando no desmesurado empenho da apanha do musgo, optou pela pedincha

Agora, velha e quase desmiolada, durante o dia, ora deambulava pelas ruas na demanda de uns centavos ora batia a uma ou outra porta na procura de uma côdea de pão. Depois, à noite, a solidão, no escuro pútrido do miserável casebre onde se enclausurava.

Ciosa de voz, maltrapida de roupas, vacilante no caminhar e fragilizada nos anseios e aspirações, mantinha, lá bem fundo e no seu íntimo, ofuscada e sem dela ter consciência ou sequer sentir, uma obscura, inebriante e inexaurível vontade do que quer que fosse.

A ganapada, na rua, corria atrás dela, instigando, desafiando, provocando, gritando:

- Olha a Musguinha, bendita santinha. – E levantando-lhe a fibra do saiote, riam, gozavam, escarneciam, insinuavam e davam-lhe beliscões nas pernas.

Ela insurgia-se, revoltava-se, indignava-se, praguejava como se os não quisesse a seu lado, nem muito menos que lhe tocassem… Os monços, porém, cada vez mais açulados.

Mas se eles dela não se aproximavam ou se os não via, ávida de desejos, perguntava a quantos com ela se cruzavam:

- Ti vite ui monce? Tu vite ui monce? Undé candim ui monce? Undé candim ui monce?

 

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publicado por picodavigia2 às 14:22

PASSASTE SENHOR

Segunda-feira, 24.02.14

(POEMA DE JOSÉ CARLOS SIMPLÍCIO)

Passaste, Senhor...

E o teu olhar

longo e suave

a luz em mim

fez despertar.

 

Passaste, Senhor,

para dizer

de tanto amor...

Palavra assim

não sei de haver!

 

Passaste, Senhor,

e eu lá segui

tangendo a harpa

do coração

atrás de Ti.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:37

A CARTEIRA

Segunda-feira, 24.02.14

Daniela Furtado é licenciada em engenharia química pela Universidade do Porto. Actualmente exerce o ofício de carteiro, sendo a primeira e única mulher a exercer tal actividade na cidade onde reside.

Após terminar o curso universitário, com uma média bastante alta, foi lhe proposto fazer um estágio profissional num laboratório de análises de água e alimentos. Após o estágio e face à qualidade do trabalho realizado e à dinâmica que introduziu no sector em que se integrou e ainda, tendo em conta o seu perfil de trabalhadora qualificada e competente, foi convidada a integrar os quadros da empresa, onde trabalhou, com qualidade e afinco, durante cerca de dois anos. A empresa, no entanto, faliu e encerrou, vendo-se, Daniela, de imediato, no desemprego. Nessa altura, porém, já havia casado e era mãe de um filho, com dois anos. A piorar a situação, uns meses depois, foi abalroada por um inevitável drama conjugal. O marido, a trabalhar na empresa do próprio pai, enveredara por caminhos estranhos e duvidosos, atafulhando-se em meandros escuros, ilegais e pouco abonatórios da honra e da dignidade de marido e pai de família. Perdera-se em devaneios malévolos, em embustes e corrupção, o pulha. Despesas atrás de despesas, desfalques, roubos, falcatruas e a empresa do pai a desmoronar-se, aos poucos, acabando por ruir por completo, que nem um castelo de cartas. Quando o progenitor se apercebeu da fraude, já era tarde, muito tarde. E como o crápula se agigantara em insensatez e em inconsciência e se tornara incapaz, sequer, de submergir da alhada em que se metera, de se ressarcir em costumes e de se envolver em docilidade ou de se adereçar de arrependimento, o divórcio foi a única alternativa.

Há dias encontrei-a, na minha rua, desenvolta e graciosa, ágil e esbelta, a distribuir o correio. Aproximei-me, apreensivo e admirado, pois chegava-me à memória os tempos de criança, franzina e débil, em que fora minha aluna. Sorridente e, aparentemente, feliz, esclareceu que sem trabalho, fosse ele qual fosse, é que não havia de viver. A empresa não a indemnizara por não ter tempo de serviço que o justificasse e não tinha recebido subsídio de desemprego, nem recebia outro subsídio qualquer. Trabalhava no que quer que fosse, pois tinha que sustentar o seu menino, cuja fotografia trazia colada ao peito. Começara por empregada de balcão, passara pela caixa de um supermercado, mas, infelizmente, tudo ocasional e esporádico. Agora surgira-lhe aquela oportunidade que agarrara a todo o custo, embora também fosse efémera, uma vez que estava, apenas, em substituição de um carteiro que estava doente. Nas horas vagas ainda distribuía publicidade de um supermercado.

- Adoro este trabalho – confessou. - Circula-se ao ar livre, vagueia-se pelas ruas, vê-se gente. As cartas e as encomendas vêm neste carrinho. Até parece que viajo num mundo de sonhos, num barco de fantasia.

- E não tens receio de que alguém se meta contigo, te provoque, te ofenda ou te faça mal?

- De forma nenhuma! Os meus colegas aceitaram-me muito bem e tratam-me com respeito e carinho. É verdade que não existem mais mulheres carteiras mas eles estão habituados a lidar, no seu trabalho diário, com mulheres, porque os funcionários dos correios, na maioria, são do sexo feminino. Quanto aos moradores das casas onde faço as entregas, ai deles! Mas, geralmente, nem os vejo. Apenas um cão ou outro me faz frente, mas nenhum me mete medo

Elogiei-a. Retorquiu-me:

- Sabe uma coisa, professor? Lembro-me, muitas vezes, de um conselho que o professor nos dava nas aulas.

- Qual? – Indaguei. – Acho que vos dava tantos!..

- Pois dava. Mas lembra-se de nos dizer que, quando na nossa vida sentíssemos problemas graves, para os resolver devíamos seguir o princípio de uns filósofos gregos, cujo nome já não me lembro, mas o princípio era o seguinte: “Cerra os dentes e aguenta”? Na vida, para vencermos, há que lutar com força e tenacidade, há que ser forte!

- Eram os estóicos, os discípulos de Zenão de Citium. Esses filósofos, realmente ensinavam que o fim último da existência humana, consistia na prática da virtude e do bem e entendiam que a melhor atitude diante dos problemas, sobretudo dos mais complicados e de difícil solução era, para os poder ultrapassar, a de não nos deixarmos abater, nem muito menos vencer pelas dificuldades, nem pela dor ou pelo sofrimento. Devemos reagir com força, coragem e, se necessário, até com sofrimento, a fim de os solucionar. Os estóicos eram homens com garra e de “genica”.

- É isso que eu tenho feito, professor. Procuro, sempre, não me deixar abater. Enfrento os problemas e procuro soluções para os resolver. Tenho a certeza de que quando terminar este contrato, hei-de arranjar outro trabalho. Mas, na verdade, o meu sonho era trabalhar na minha área… E isso vai acontecer, pode acreditar.

E lá seguiu, puxando o carrinho com agilidade, segurança e entusiasmo, introduzindo uma cartinha aqui, outra ali, nunca hesitando, apesar de haver um ou outro cão que lhe ladrava, tentando, infrutiferamente, obstruir-lhe o caminho.

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publicado por picodavigia2 às 00:01





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