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A MENINA E O MONSTRINHO

Quinta-feira, 13.02.14

Era uma vez uma menina obediente, educada e submissa mas por vezes brincalhona, atrevida e malcriada, mas tinha um bom coração.

Certo dia, ao sair da Escola, disse para consigo:

- Hoje não vou esperar minha Mãe. Como a minha casa é perto daqui e eu já conheço o caminho acho que me vou embora sozinha...

Se bem o pensou, melhor o fez. Desviando-se do caminho que dava para a sua casa, entrou num bosque. Mal tinha dado os primeiros passos quando viu algo de muito estranho vir ao seu encontro. Apesar do susto, continuou a penetrar no bosque. Sem dar pelo passar veloz do tempo, foi andando, andando até que se apercebeu que se tinha perdido, pois tinha entrado num lugar estranho, esquisito e deserto...

Nesse momento dois meninos com ar de mandriões e cara de malvados, apareceram na sua frente, rindo muito. Então um deles disse:

- Hum, vejam só uma menina sozinha, perdidinha, sem companhia. Que tal se a levasse-mos connosco?

A menina começou a chorar, mas isso em nada alterou a intenção dos meninos que, com cara de poucos amigos disseram de novo, um para o outro:

- Já que ela está sozinha, vamos ficar com ela. Ela pode ser nossa escrava para sempre e se chorar leva uma boa sova e há-de calar-se...

- Tenho uma ideia melhor - disse o outro garoto - Acho que devíamos levá-la e vendê-la, pois há homens que compram meninas... Assim poderíamos ganhar bom dinheiro.

- Concordo, - respondeu o outro – se a vendermos ganhamos dinheiro e ainda nos livramos dela.

E agarrando-a com violência, apesar dos seus choros e gritos, levaram-na para a cidade mais próxima. Nesse momento, no entanto, sem que eles vissem, um pouco mais adiante, um estranho vulto surgiu do nada. Parecia um menino pequeno mas com cara pouco amigável

Saindo das sombras, o estranho e pequeno ser, abriu sua imensa e assustadora boca e falou de um jeito que os dois rapazes ficaram petrificados de medo sem conseguirem se mexer-se.
- Muito bonito... Vocês gostam de fazer maldades? Então acho que vão gostar muito do lugar para onde vou levar os dois...

O estranho ser era do tamanho de um menino, com a cabeça enorme e azul e os pés semelhantes aos das galinhas.

Os dois rapazes ficaram com tanto medo e afastaram-se numa correria tão grande, desaparecendo dali a sete pés.

A menina, mal conseguia falar de tão contente que estava. Ela não havia ficado com medo daquele menino. Emocionada e agradecida deu um grande abraço no seu novo amigo e dizendo:

- Obrigado, meu amigo, salvaste-me daqueles dois malvados. Como te chamas?

- Chamo-me Pé de Galinha e todos têm medo de mim porque sou feio... Nunca me trataram por amigo... Foste a primeira pessoa que me tratou assim...

- Não, não és feio - disse a menina – O teu coração é lindo. És simplesmente diferente das outras pessoas...

O estranho ser, cada vez mais feliz, explicou-lhe que a sua missão era proteger e ajudar as crianças que estavam em perigo. Disse também que gostava muito de comer pão com chá. Então a menina disse:

- Vamos para minha casa fazer um lanche maravilhoso, com pão e chá.

E lá foram muito contentes e felizes. Quando a mãe chegou, a menina contou o que lhe acontecera e prometeu que nunca mais iria para o bosque sozinha.

 

NB - Texto adaptado de um conto de Alberto Filho.

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publicado por picodavigia2 às 15:40

A LENDA DAS BANDEIRAS DO SENHOR ESPÍRITO SANTO – UMA BRANCA OUTRA VERMELHA

Quinta-feira, 13.02.14

Contava-se antigamente, na Fajã Grande, uma lenda, segundo a qual, há muitos, muitos anos a população da maioria dos povoados da ilha das Flores tinha caído numa grande falta de respeito para com o seu semelhante: havia desavenças contínuas, zaragatas permanentes, guerrilhas diárias e todo o tipo de abusos, assaltos, roubos e faltas de respeito. Nas igrejas, nos púlpitos e ambões os padres pregavam contra tais depravações e maus costumes, pedindo, aos fiéis, penitência e arrependimento, ao mesmo tempo que anunciavam castigos e punições divinas, eminentes. Mas o povo não se ralava e muito menos se emendava. Pelo contrário, continuava com os seus abusos e desavenças, maltratando-se e insultando-se todos, uns aos outros.

Certo dia levantou-se uma grande tempestade, que aos poucos foi aumentando até se transformar num terrível e gigantesco ciclone. Começaram a soprar ventos fortíssimos, acompanhados de trovoadas medonhas e de chuvas intensas e diluvianas. Toda a ilha era completamente fustigada por aquele terrível temporal, temendo-se que havia de destruir tudo o que de construção humana existia na ilha. Uma tragédia como nunca se vira. Parecia o fim do mundo! As pessoas assustadíssimas e sem saber como se protegerem, cuidavam que aquilo era o castigo anunciado pelos padres, para os punir pelos pecados que tinham cometido anteriormente.

Como a intempérie não cessasse e a segurança do povo e dos seus haveres cada vez mais periclitasse, muitas pessoas começavam a chorar, a rezar e a pedir perdão a Deus. Impotentes, perante a força temível daquele flagelo, uns cuidavam que era o fim dos seus dias, enquanto outros desorientados, corriam de um lado para o outro numa tentativa vã de encontrarem abrigo e de se salvarem. Foi então que um frade eremita, que vivia isolado dos povoados, numa pequena e pobre choupana, muito religioso e temente a Deus, pegando na coroa do Divino Espírito Santo que se encontrava no altar duma pequenina igreja, saiu com ela em procissão, rezando e fazendo preces a Deus para que parasse a tempestade.

 Diz a lenda que era tanta a fé do povo que o acompanhava e tanta era esperança de que o Senhor Espírito Santo os havia de os aliviar daquela tormenta e de os salvar de tão grande borrasca, que pouco depois, o Sol surgiu no céu, iluminando toda a ilha com uma luz ténue e suave, enquanto cessava o vento, paravam os trovões e os relâmpagos e a chuva estiava por completo. A população, ainda chorosa, atónita, estarrecida de medo e admiração, começou a agradecer ao Divino Espírito Santo o milagre que acabava de fazer, salvando-a de tão horrorosa tormenta. O povo começou, então, a dar muitas esmolas de pão e carne aos mais pobres, por ocasião do dia de Pentecostes, não só para agradecer o milagre, mas também para se redimir, prometendo ainda que o havia de fazer todos os anos, pela festa do Pentecostes, enquanto o mundo fosse mundo. Foi então que, para que nunca mais olvidassem aquela promessa, mandaram fazer duas bandeiras, uma branca para não se esquecerem do pão e outra vermelha para se lembrarem da carne. Essa a razão porque em todos os impérios do Espírito Santo da ilha das Flores, existem duas bandeiras, uma branca simbolizando o pão e outra vermelha a simbolizar a carne.

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publicado por picodavigia2 às 13:53

A INEXAURÍVEL SINGULARIDADE DO CORVO

Quinta-feira, 13.02.14

Localizadas sobre a placa tectónica norte americana e edificadas, conjuntamente, sobre um fundo oceânico com cerca de dez milhões de anos, as Flores e o Corvo, quais irmãs gémeas, emergem, paradoxalmente, do mesmo banco submarino. Unidas no espaço, estiveram também sempre lado a lado no tempo, desde que os seus descobridores as encontraram e os seus primeiros povoadores penetraram por elas dentro, desbravando, cultivando, construindo e edificando. Além disso, as duas ilhas do grupo ocidental açoriano permanecem unidas uma à outra, por ligações marítimas, outrora mais espaçadas, rudimentares e lentas, hoje mais rápidas, seguras e sofisticadas. Por isso ir às Flores e não realizar uma visita ao Corvo é como que “ir a Roma e não ver o Papa”. O “Ariel” em carreiras diárias, regulares, os barcos da “Maré Ocidental” e de outras empresas, em viagens ocasionais ou fretados, permitem fazer uma visita, suficientemente prolongada, à mais pequenina e singular ilha açoriana – o Corvo.

Nas idas e vindas de uma ilha para a outra, pelo menos a bordo do “Avô Augusto” e graças aos seus experientes marinheiros, netos do “lobo do mar” José Augusto, é possível parar a meio do canal para observar uma infinidade de golfinhos que saltitam, acompanhando o circular da embarcação, em graciosas e variadas acrobacias e tornear o noroeste da magnífica costa florentina, entre a Ponta Ruiva e Santa Cruz, e entrincheirar-se por entre os inúmeros ilhéus que por ali proliferam. Também é possível observar as magníficas grutas com solo de água e tecto de lava e aproximar-se dos penhascos e ravinas entrecortados por quedas de água a despejarem-se sobre o Oceano. Uma verdadeira maravilha da natureza!

A chegada ao Porto da Casa, no Corvo, consubstancia uma singeleza que ainda torna mais singular a singularidade inexaurível desta ilha anã, estampada quer na simplicidade e idiossincrasia dos corvinos que esperam sobre o cais ou se sentam nas soleiras das portas das estreitas ruas da vila, quer na brancura das casas de portas escancaradas dia e noite ou destrancadas com fechaduras de madeira, quer ainda no emaranhado e estreiteza das principais e mais antigas vielas, ou até nos campos e belgas que as circundam ou nos desabitados palheiros que proliferam já nos matos, a caminho do Caldeirão. Trata-se duma ampla cratera de abatimento e onde se aloja uma, maravilhosamente bela lagoa, no fundo da qual se podem observar várias pequenas "ilhotas", umas compridas, outras redondas e onde, com um bocadinho de imaginação, se podem observar as nove ilhas açorianas. Lá ao fundo, no rebordo do Caldeirão, o ponto mais alto da ilha, o Morro dos Homens, com 718 metros de altura acima do nível médio do mar e, embora menos altos, mas ali bem perto, porque naquela inexaurível pequenez nada é longe e nada é perto, outros montes, onde se destaca o célebre e históricoMarco. Depois e mais a leste, as Quintas e o Fojo, as zonas mais altas do Corvo, onde se pratica a agricultura e cultivam algumas árvores de fruto. Por sua vez, as melhores pastagens para o gado ficam mais para norte, nas chamadas Terras Altas. Curiosamente uma parte desta zona de pastagens, ainda hoje, é de uso comunitário.

No regresso, impõe-se um passeio a pé, pela Vila do Corvo, localizada numa fajã lávica, a Sul e voltada para as Flores. A Vila do Corvo, que forma o concelho com o mesmo nome, é a mais pequena vila açoriana, com apenas 430 habitantes, de acordo com o Censos 2011. Única povoação da ilha, é constituída por um aglomerado de casas baixas com ruas estreitas e tortuosas que sobem as encostas, conhecidas localmente por canadas e possui o singular estatuto de ser o local habitado mais isolado de Portugal.

Do património arquitectónico existente na ilha, destaca-se a Igreja de Nossa Senhora dos Milagres, construída em 1795, que veio substituir uma primitiva ermida. No seu interior, podem admirar-se a estátua da padroeira, obra flamenga do século XVI, um Cristo em marfim e uma imagem em madeira de Nossa Senhora da Conceição, entre várias outras ali existentes. Além da igreja, é digna de ser visitada a Casa do Espírito Santo, no areópago da vila, o típico Largo do Outeiro, fundada a 1871, seguindo a traça arquitectónica das suas congéneres das Flores. Junto ao aeroporto ainda existem alguns interessantes e típicos moinhos de vento, classificados como imóveis de interesse municipal. Dos cerca de sete moinhos que existiram na ilha, apenas três se mantêm em funcionamento, embora já não sejam utilizados para o fim para que foram construídos. O casario da vila é um verdadeiro museu vivo, classificado pelo Governo Regional como conjunto de interesse público. Outro local de interesse é a “Cova da Junça” onde existe uma edificação protegida pelo Governo Regional dos Açores, cuja data de construção recua aos séculos XVII e XVIII, a qual faz parte do Inventário do Património Histórico e Religioso do Corvo. Trata-se de um silo subterrâneo, escavado no subsolo com forma de ânfora ou de talhão, tendo, muito provavelmente, sido usado em tempos idos com o objectivo de guardar os cereais, não só como forma de os conservar, mas também de os esconder quer dos piratas e corsários que assolavam a costa da ilha com frequência quer dos cobradores dos impostos do rei.

Foi toda esta inexaurível singularidade corvina que fez com que esta ilha fosse declarada no mês de Setembro de 2007 Reserva da Biosfera, pela UNESCO, na sequência de uma candidatura apresentada, para esse fim, pelo Governo Regional dos Açores.

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publicado por picodavigia2 às 09:34

PORQUE MORREM AS MÃES

Quinta-feira, 13.02.14

(POEMA DE CARLOS DRUMOND DE ANDRADE)

“Por que Deus permite

Que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

É tempo sem hora,

Luz que não apaga

Quando sopra o vento

E chuva desaba,

Veludo escondido

Na pele enrugada,

Água pura, ar puro,

Puro pensamento.

 

 

Morrer acontece

Com o que é breve e passa

Sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

É eternidade.

Por que Deus se lembra

- Mistério profundo -

De tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

Baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

Mãe ficará sempre

Junto de seu filho

E ele, velho embora,

Será pequenino

Feito grão de milho.”

 

Carlos Drummond de Andrade

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publicado por picodavigia2 às 00:04

METAMORFOSE IMPERFEITA

Quarta-feira, 12.02.14

Sala de estudos!

Refeita, reestruturada,

substancialmente, metamorfoseada.

 

Mas ali estão ainda,

Inapagáveis no tempo,

- metamorfose imperfeita -

os lugares,

os traços,

os riscos,

os ninhos,

onde

plantámos

e cultivámos

sonhos infindáveis.

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publicado por picodavigia2 às 16:10

QUE FAZEIS AÍ, SOLDADO

Quarta-feira, 12.02.14

Poema oral, recitado e cantado, antigamente, na Fajã Grande e recolhido por Pedro da Silveira, em 1944. Foi-lhe recitado por José Inácio da Ponta, tendo-o publicado na Revista Lusitana, Nova Série,em 1966:

«Que fazeis aí, soldado, ao rigor da estação?»

«’stou metendo sentinela, aindas que nã seja um cão.»

A camisa era tão grossa, serviria de colchão.

«Ei-lo aqui o triste pago que dão a este batalhão.»

As calças eram tão largas, faziam sombra no chão.

«Ei-lo aqui o triste pago que dão a este batalhão.»

As meias eram tão ralas, boas de pescar camarão.

«Ei-lo aqui o triste pago que dão a este batalhão.»

Os sapatos eram tão grandes, palmo e meio de tacão.

«Ei-lo aqui o triste pago que dão a este batalhão.»

A comida era tão pouca, em vez de carne feijão.

«Ei-lo aqui o triste pago que dão a este batalhão.»

«Amigo se queres, vamos ao palácio reclamar.

Se o rei não te der razão, cá stou eu p’ra agrumentar.»

O rei nim uma num duas, como se fosse de pau.

A rainha antão dizia: «Deves de ser grande marau.»

«Eu não sou nenhum marau, nim pretendo a Angola;

Só quero o meu livramento, não peço nenhuma esmola.»

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publicado por picodavigia2 às 13:59

MANUEL MACHADO

Quarta-feira, 12.02.14

Manuel Machado Lajes, ilha Terceira, em 7 de Julho de1932. Fixou-se em Lisboa onde viveu até 1963 e nesse ano emigrou para França vivendo até 1971 em Paris onde trabalhou e completou os estudos em Psicologia. Participou na vida cultural da emigração portuguesa em Paris e Londres estando representado em antologias dessa época. Casou com uma senhora norueguesa fixando-se a partir de 1974 em Oslo como funcionário da Biblioteca da Universidade. Colaborou, em 1983, no estudo colectivo da UNESCO e publicou um ensaio intitulado «Living in Two Cultures».

É um escritor da escola surrealista com vasta obra publicada distinguindo-se no conto, na novela, na crónica, na prosa poética e o memoralismo. É colaborador da revista Atlântida, do Instituto Açoriano de Cultura e do suplemento literário «Quarto Crescente», do jornal angrense Diário Insular, coordenado por Álamo Oliveira. Tem publicado em português e norueguês. Desde os anos oitenta que visita regularmente os Açores. Foi condecorado pelo Presidente da República com o grau de oficial da Ordem de Mérito e recebeu a medalha de valor cultural da Câmara Municipal da Praia da Vitória.

Obras principais em língua portuguesa: Enquanto os coveiros dormem, Virtudes, reis moscas e outras hortaliças e Quebra-cabeças e nozes.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

 

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publicado por picodavigia2 às 12:01

O SOLDADO QUE FOI PARA O CÉU

Quarta-feira, 12.02.14

(CONTO TRADICIONAL)

 

Era uma vez um soldado que adoeceu quando estava no quartel. O Comandante mandou-o para casa a fim de se curar, com a condição de que, quando ficasse bom, regressasse ao quartel.

O soldado assim fez e, pelo caminho, ao passar por uma ponte encontrou um velhinho muito pobre e fraco, que nem forças tinha para atravessar a ponte. O soldado nunca tinha feito bem a ninguém, mas naquele instante teve pena do velhinho e decidiu ajudá-lo. Para isso carregou-o às costas e atravessou a ponte. Logo que chegou ao outro lado, pôs o velho no chão, e ia despedir-se dele, quando este lhe disse:

− Amigo, obrigado por me ter ajudado. Agora peça-me alguma coisa, a fim de que eu lhe possa agradecer a ajuda que me deu.

− Ora essa – disse o soldado - o que lhe hei-de eu pedir?

− Peça tudo o que quiser. – Respondeu o velho

O soldado pediu-lhe então o seguinte: - Sempre que disser: "Salta aqui para a minha mochilinha!" nenhuma coisa deixe de obedecer às minhas ordens. E que onde quer que eu me assente ninguém me possa mandar levantar.

O velho disse-lhe que estava concedido o que desejava e desapareceu.

O soldado partiu para casa, muito contente, até se curar. Quando ficou bom decidiu não regressar ao quartel e nunca mais trabalhar. Assim viveu durante algum tempo sem fazer nada, sem lhe faltar coisa nenhuma. Se queria pão, carne, vinho, dinheiro, bastava dizer: "Salta aqui para a minha mochilinha", e tinha logo tudo o que queria.

Um dia o soldado adoeceu novamente e estava quase a morrer. O Diabo aproximou-se dele para lhe levar a alma, mas o soldado logo que o viu, gritou: "Salta aqui já para a minha mochilinha!". O Diabo saltou logo para dentro da mochila a qual o soldado mandou, de imediato, levar a casa do ferreiro para que lhe malhasse em cima até desfazer o Diabo por completo. Poucos dias depois o soldado morreu, e como tinha passado sempre na má vida, sem trabalhar e sem ajudar mais ninguém, foi parar à porta do Inferno. O Diabo assim que o viu, com medo de ser batido outra vez, mandou fechar todas as portas e janelas do Inferno, a fim de que o soldado ali não entrasse.

Foi o que o soldado quis, porque assim foi logo a correr bater à porta do Céu. São Pedro assim que o viu, disse-lhe:

− Vens enganado! Não entras cá. Não te lembras a vida de preguiçoso que levavas enquanto vivias?

Responde-lhe o soldado:

− Ó Senhor São Pedro, o Diabo não me quis no Inferno. Eu agora para onde hei-de ir?

− Arranja-te lá como puderes. – Respondeu São Pedro, fechando a porta.

Mas como São Pedro demorasse a fechá-la, o soldado aproveitou para pegar no seu barrete e atirá-lo lá para dentro, dizendo:

− Ó Senhor São Pedro, deixe-me ir apanhar o meu barrete.

O soldado viu meia porta do Céu aberta, e pega no barrete e atira-o lá para dentro, e disse:

− Ó Senhor São Pedro, deixe-me ir apanhar o barrete.

São Pedro deixou e o soldado, então, aproveitou para se sentar, por um momento na cadeira de São Pedro que, bem o queria mandar sair mas não conseguia. Foi, então, queixar-se a Nosso Senhor, que lhe disse:

− Deixa-o entrar Pedro, não tens outro remédio, porque assim lhe estava prometido, desde o dia em que ele fez uma boa acção, ajudando o velhinho a atravessar a ponte.

E assi, o soldado, por ter praticado apenas uma boa obra, ficou para sempre no Céu.

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publicado por picodavigia2 às 10:05

PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (XIV)

Terça-feira, 11.02.14

Aicecrime – Gelado.

Andando e cagando – Desinteressar-se de algo ou duma conversa.

Andor – Afasta-te. Desaparece.

Antesdonte – Anteontem.

Apegado – Avarento, aquele que gosta muito de dinheiro.

Apertado – Com muita vontade de obrar.

Ápesteres – Par de cima da casa.

Arrematado – Prendado, com educação.

Atiradeira – Corda comprida com que se apertavam os fueiros do carro ou corsão, a meio da carga.

Bem perfeitinho  - Criança muito bonita e saudável.

Boiceiro – Cadeira mítica, com pontas de fregos no assento, escondida atrás do altar, destinada a castigar as crianças que se portavam mal.

Bucha naife – Grande faca.

Caganita – Coisa pequena. Pessoa fraca,

Cara abogangada – Cara arredondada, malfeita e feia.

Carnegão – Parte dura e esbranquiçada com restos de sague que se tira das feridas secas.

Carnina – Diminutivo de carne

Chapéu de feiticeira – Cogumelo.

Derreado- Que tem dores nas costas (geralmente resultantes de muito trabalho)

Encarrilhar ui dentes – Apertar dos dentes uns contras os outros com força, em sinal de muita zanga ou fúria.

Espadana – Plata com folhas em forma de espadas, que desfiadas faziam fios e cordões.

Espiga – Parte superior do caule do milho, entre a maçaroca e a flor.

Está rachando meio-dia. – São precisamente doze horas ou meio-dia.

Estar farto e cheio – Estar completamente aborrecido, não ser capaz de suportar mais ignomínias.

Facão – Instrumento de ferro, semelhante a uma chave de fendas para a apanha das lapas.

Faeira – Faia.

Farrispa – Lasca ou farripa de madeira.

Fazer uma terra – Trabalhar uma propriedade de outrem, pagando com produtos da mesma.

Froiva – Inflamação dos dedos dos pés.

Ir graduar a vista – Consultar otftalmologista.

José ou Zé da Góstia – O mesmo que José ou Zé da Véstia, mas menos ofensivo.

José ou Zé da Véstia – Personagem fálica, com que se pretende despreciar a conversa com alguém

Lustro – Pomada para os sapatos.

Maçaroca – Espiga do milho.

Mandar para trás – Devover.

Manga-d’água – Tromba-d’água.

Matar um piolho em cima da barriga – Ter comido muito.

Milheiro – Parte inferior do caule do milho, entre o pé e a maçaroca,

Mexim – Máquinas de cortar o cabelo.

Não haver bafuja de vento – Não haver nenhum vento.

Num zape – Num instante.

Pachocadeira – Mulher que provoca muitos mexericos ou confusões.

Pachola Vaidoso. Bem apresentado.

Pandulho – Grande barriga.

Pão-adubado – Massa Sovada, pão doce.

Presente – Cagadela.

Raite – Viagem.

Santola – Pessoa inocente e sem maldade.

Ter bico doce – Ser muito guloso.

Triola mal-amanhado – Pessoa desajeitada.

Vento de cima da terra – Vento de leste que soprava do lado do mato.

Xelepas – Chinelos.

Zarabana – Uma grande admoestação feita a alguém por ter cometido um acto pouco correcto ou ilícito.

Zimbro – Zimbreiro

Zinaibre – Verdete de que os metais se revestiam.

Zoar – Correr uma notícia falsa ou um mexerico

Zuniar –Dizia-se do vento quando soprava com muita força e como que assobiava.

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publicado por picodavigia2 às 18:18

A IGREJA DA SENHORA DO CARMO DA PONTA

Terça-feira, 11.02.14

Situada bem lá no alto de uma pequena colina, sobranceira ao povoado, quase entre as últimas casas da Ponta e muito próxima da rocha, ficava a igreja da Senhora do Carmo, como diz G. Monterrey “esbelta na sua própria singeleza”. Altiva e imponente, embora simples e modesta, era ela que servia de local de culto ao povo da Ponta. Todas as celebrações litúrgicas ali tinham lugar, excepto as do Baptismo, do Crisma e a Comunhão Solene das Crianças. A administração destes Sacramentos era feita na Igreja Paroquial, juntando todas as crianças da freguesia, excepto o Baptismo que na altura era celebrado individualmente, embora em tempos idos, ali tivessem sido realizados.

A igreja, que tem como padroeira a senhora do Carmo, ficava implantada num adro nivelado, com acesso apenas por uma escada de degraus de pedra, voltados a Noroeste. O edifício é composto pelo corpo da nave, pelo corpo mais estreito da capela-mor, pela torre sineira que encosta, do lado esquerdo, à face da fachada e pelo corpo da sacristia que encosta à fachada lateral esquerda da capela-mor.

A fachada principal, a que se liga a torre sineira, é enquadrada pelo soco, pela própria torre sineira, pelo cunhal direito e por uma cornija que acompanha a inclinação das águas da cobertura, terminando a parte superior em forma triangular, encimada por uma cruz. Tem uma porta principal, em duas metades, encimada por um arco de volta inteira assente em impostas e duas janelas, em posição simétrica, situadas ao nível do coro que se sobrepõem logo na entrada do templo e delimitado por uma grade rectilínea. No eixo, acima das janelas, há um óculo circular, divido em pequenos vidros. Igualmente, por cima da porta de entrada, há uma pequena moldura rectangular que enquadra a inscrição "A. EGREIJA / D.N.S.D.C. / D.P.F.IDF. / N. ANNO. D. / 1898" , cuja leitura deverá ser a seguinte: A igreja de Nossa Senhora do Carmo da Ponta foi edificada no ano de 1898. Nesta altura era pároco da Fajã Grande o padre Alfredo Mariano de Sousa.

A torre sineira é composta por duas secções. A inferior é rematada pelo prolongamento horizontal da cornija de remate da fachada e tem um óculo em losango ao nível do baptistério. A secção superior assenta na cornija e tem dois vãos de sino rematados em arco de volta inteira assente em impostas: um na fachada principal e outro na fachada lateral esquerda. É rematada por uma cornija com um pináculo em cada vértice e encimada por um coruchéu hexagonal. Todos os vãos exteriores e interiores restantes são rematados em arco de volta inteira. Na parte inferior da fachada principal, a torre tem uma janela em forma de losango. A parte superior, a que se tem acesso por uma escadaria de pedra, tem janelas em cada uma das faces, mas apenas duas têm sinos.

A entrada principal da nave está protegida por um guarda-vento sobre o qual se situa o coro alto, em madeira, cujo acesso se faz do lado da epístola por uma escada em "L" também de madeira. Do lado do evangelho há uma porta de acesso ao piso térreo da torre sineira onde fica um pequeno baptistério, raramente utilizado. O acesso aos restantes pisos da torre sineira faz-se por uma porta no coro alto do lado do evangelho. Ao centro, em cada uma das paredes laterais da nave, há uma porta de comunicação com o exterior, ladeada por janelas ao nível superior. Do lado do evangelho, entre a porta lateral e o arco triunfal situa-se um púlpito com guarda em madeira pintada, sendo a consola (em forma de mísula gigante) e a escada de acesso em madeira envernizada. O corpo da capela-mor é acessível por um degrau de pedra onde assenta o arco triunfal. O acesso interno à sacristia faz-se por uma porta na capela-mor do lado do evangelho. A capela-mor tem um retábulo em talha pintada de sabor revivalista. Tanto o tecto da nave como o da capela-mor são em madeira a imitar abóbadas de berço. Por trás do altar mor existe um camarim que funciona como local de armazenamento de algumas alfaias e utensílio litúrgicos e objectos relacionados com a ornamentação e limpeza do templo.

O edifício é construído em alvenaria de pedra rebocada e pintada de branco, excepto o soco, os cunhais, as cornijas, as molduras dos vãos e os pináculos que são em cantaria à vista. As coberturas são de duas águas em telha de aba e canudo com beiral simples, excepto no corpo da sacristia que é de uma só água. 

Na capela mor para além da imagem da padroeira estavam colocadas outras imagens, entre as quais a de São José, e no corpo da igreja, que não possui altares laterais, as da Senhora de Fátima e a do Coração de Jesus.

A igreja da Ponta foi construída em 1898. Contava-se que a sua construção se havia devido ao empenho e vontade do padre Henrique Augusto Ribeiro, padre natural dos Cedros e que deixou o seu nome ligado à construção de outras igrejas na ilha das Flores. A construção do templo ter-se-á iniciado cerca de três anos antes. Até 1922 a igreja da Ponta esteve provida de um sacerdote residente, pois ali existia um passal. O primeiro cura da Ponta foi o padre José Leal Furtado que ali permaneceu desde a edificação do templo até 1906, altura em que foi substituído pelo padre Alfredo Augusto Meneses e Santos, que ali permaneceu apenas durante dois anos. Nos dois seguintes o curato esteve a cargo do padre José Furtado Mota. O último cura da Ponta foi o padre Francisco José Gomes que ali permaneceu desde 1909 até 1922.

A igreja da Ponta teve obras de beneficiação em 1971, altura em que foi construída o novo adro e a actual escadaria.

 

NB – Parte destes dados foram retirados do Inventário do Património Imóvel dos Açores

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publicado por picodavigia2 às 12:04

BOMBARDEAMENTO CONTÍNUO

Terça-feira, 11.02.14

“Vivemos ameaçados por um bombardeamento contínuo de notícias. Umas são boas e aliviam-nos. Outras menos boas, atormentam-nos. Mas ainda há as ridículas que nos deixam pasmados.”

Autore Ingnote

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publicado por picodavigia2 às 10:41

JOGRAIS - O NABO GIGANTE

Terça-feira, 11.02.14

(BASEADO NO LIVRO DE ANTÓNIO MOTA COM O MESMO TÍTULO)

 

TODOS -        Numa aldeia / à beira duma montanha / havia uma pequena casa / coberta de musgo.

SETE -            Junto da casa havia uma horta.

UM -               Na horta havia uma laranjeira.

UM-                Que dava laranjas muito doces.

UM -               Um limoeiro.

UM -               Que dava limões muito grandes.

UM -               Uma cerejeira.

UM -               Que dava cerejas brancas.

UM -               Três videiras.

UM -               Que davam enormes cachos de uvas saborosas.

UM -               Uma capoeira que tinha:

UM -               Galinhas e galos.

UM -               Perus.

UM -               Codornizes e patos.

TODOS -        Junto da casa havia uma horta.

SETE -            Na horta havia um tanque.

UM -               Por cima do tanque havia uma bica que deitava água fresca todo o ano.

TODOS -        Numa aldeia / à beira duma montanha / havia uma pequena casa / coberta de musgo.

SETE -            Na casa viviam duas pessoas.

UM -               Um velho.

UM -               Muito magro e baixinho.

UM -               E a sua mulher.

UM -               Alta / gorda e velhota.

SETE -            Na casa viviam duas pessoas.

UM -               O velho.

UM -               Sachava.

UM -               Regava.

UM -               Mondava

UM -               Colhia.

TODOS -        E comia o que a terra dava.

UM -               Também repartia

UM -               Com as galinhas e os galos.

UM -               Com os perus.

UM -               Com as codornizes e os patos.

SETE -            Que viviam na capoeira.

TODOS -        Numa aldeia / à beira duma montanha / havia uma pequena casa / coberta de musgo.

UM -               Num ano.

UM -               Quando os primeiros dias da Primavera trouxeram sol e calor.

SETE -            Os pássaros começaram a voar sobre a terra.

UM -               À procura de raízes finas.

UM -               De penas.

UM -               De trapinhos e ervas secas.

SETE -            Coisas leves que levaram no bico.

UM -               Para cima das árvores.

UM -               Para os buracos dos muros.

UM -               Para os telhados.

UM -               Para os beirais.

TODOS -        Para aí construírem os ninhos.

SETE -            Caminhas fofas.

SETE -            Onde haviam chocar os ovos.

SETE -            Para que outros passarinhos nascessem.

SETE -            Bem protegidos e agasalhados.

TODOS -        Os pássaros começaram a voar sobre a terra.

UM -               Um dia...

TODOS -        Na aldeia onde havia uma pequena casa / coberta de musgo,

UM -               Onde viviam duas pessoas,

UM -               O velho, muito velhinho,

UM -               Levantou-se muito cedo,

UM -               Tomou o pequeno-almoço,

SETE -            E foi trabalhar para a horta.

SETE -            Que ficava junto à casa / coberta de musgo.

UM -               Encheu uma carreta com estrume do galinheiro,

UM -               E levou-a para a horta,

SETE -            Que ficava junto à casa coberta de musgo.

UM -               Com um ancinho espalhou o estrume sobre a terra,

UM -               E cavou-a com a sua enxada,

SETE -            Muito velha,

SETE -            Muito pesada,

SETE –           Muito usada.

TODOS -        E o velho muito transpirado,

UM -               Pôs a terra muito lisinha,

IM -                Tirou do bolso um pacotinho com sementes de nabo

SETE -            E semeou-as no chão cultivado.

UM -               Delicadamente.

UM -               Com muitos vagares,

UM -               Com muito amor.

TODOS  -       Na horta que ficava junto à casa  / coberta de musgo.

UM -               Depois cobriu as sementes com terra,

UM -               Regou-as com água do tanque

UM -               E disse.

RAPAZES -   Façam favor de crescer, / está bem?!

UM -               Os dias passaram ... muito devagar,

UM -               Os passarinhos nasceram nos ninhos / e começaram a pedir comida aos pais / que voavam muito atarefados.

TODOS -        E na horta que ficava junto à casa / coberta de musgo.

UM -               O sol aquecia a terra,

UM -               Fazia desabrochar as folhas,

UM -               E as flores.

UM -               E as sementes dos nabos

UM -               Bem estrumadas

UM -               Bem regadas

UM -               Bem mondadas

SETE -            Transformaram-se em pequeníssimos rebentos verdes

MENINAS -   E mais tarde em grandes plantas.

UM -               E numa tarde o velho descobriu que um nabo crescia mais do que os outros,

UM -               Ficou curioso,

UM -               Contou à mulher

UM -               E todos os dias corria para a horta para ver o nabo.

RAPAZES -   E o nabo estava cada vez maior.

TODOS -        Na horta que ficava junto à casa / coberta de musgo.

UM -               E o nabo ia crescendo...

SETE -            Crescendo...

RAPAZES -   Crescendo...

TODOS -        O nabo era gigante.

UM -               O nabo tinha a altura do velho

UM -               O nabo continuava a crescer

SETE -            Hora a hora,

SETE -            Dia a dia.

TODOS -        Na horta que ficava junto à casa / coberta de musgo.          

UM -               E o nabo já incomodava

UM -               As alfaces

UM -               As abóboras

UM -               As couves

UM -               E o velho muito velho

TODOS -        Que morava na casa coberta de musgo,

UM -               Decidiu ir arrancar o nabo.

UM -               E foi para a horta

TODOS -        Que ficava junto à casa coberta de musgo.

UM -               Agarrou-se ao nabo

UM -               E puxou uma vez,

UM -               Duas vezes...

UM -               Três vezes,

UM -               Com muita força.

TODOS -        Mas o nabo não se mexeu.

UM -               E o velho chamou a mulher para o ajudar.

UM -               A velhota veio e puxou o velhinho,

UM -                O velhinho puxou o nabo

TODOS -        Mas o nabo não se mexeu.

UM -               E a velhota chamou uma menina que vivia lá perto.

UM -               A menina veio e puxou a velhota

UM -               A velhota puxou o velhinho,

UM -                O velhinho puxou o nabo.

SETE -            Fartaram-se de puxar.

TODOS -        Mas o nabo não se mexeu.

UM -               E a menina foi chamar o irmão que andava a brincar,

UM -               O rapaz veio e puxou a menina.

UM -               A menina  puxou a velhota

UM -               A velhota puxou o velhinho,

UM -               O velhinho puxou o nabo.

SETE -            Fartaram-se de puxar.

TODOS -        Mas o nabo não se mexeu.

UM -               E o rapaz resolveu chamar o seu cão / que era grande, meigo e muito forte.

UM -                E o cão veio ajudar a puxar o nabo.

UM -               O cão puxou o rapaz.

UM -               O rapaz  puxou a menina.

UM -               A menina  puxou a velhota

UM -               A velhota puxou o velhinho,

UM -               O velhinho puxou o nabo.

SETE -            Fartaram-se de puxar.

TODOS -        Mas o nabo não se mexeu.

UM -               O cão ladrou a um gato

UM -               E o gato veio a correr para ajudar a tirar o nabo.

UM -               E o gato puxou o cão.

UM-                O cão puxou o rapaz.

UM -               O rapaz puxou a menina.

UM -               A menina  puxou a velhota

UM -               A velhota puxou o velhinho,

UM -               O velhinho puxou o nabo.

SETE -            Fartaram-se de puxar.

TODOS -        Mas o nabo não se mexeu.

UM -               O cão ladrou a um gato

UM -               E o gato pôs-se a miar

UM  -              E apareceu um rato muito pequenino.

UM -               O rato puxou o gato

UM -               O gato puxou o rato.

UM -               O cão puxou o rapaz.

UM -               O rapaz puxou a menina.

UM -               A menina  puxou a velhota

UM -               A velhota puxou o velhinho,

UM -               O velhinho puxou o nabo.

SETE -            Puseram-se a puxar...

SETE -            A puxar...

MENINAS -   E de repente...

TODOS -        O nabo saiu da  terra / na horta que ficava junto à  casa / coberta de musgo.

UM -               E o gato caiu sobre o rato,

UM -               E o cão sobre o gato,

UM -               E o rapaz sobre o cão.

UM -               A menina sobre o rapaz,

UM -               A velhota sobre a menina,

UM -               O velhinho sobre a velhota

TODOS -        E o nabo ao lado de todos.

UM -               A velhota era boa cozinheira,

UM -               Cortou o nabo em pedacinhos,

UM -               E fez um cozinhado

UM -               Muito apetitoso,

UM -               Muito saboroso,

TODOS -        Na casa coberta de musgo.

UM -               E o rato,

UM -               O gato,

UM -               O cão,

UM -               O rapaz

UM -               A menina

UM -               A velhota,

UM -               E o velhinho

TODOS -        Comeram um fabuloso cozinhado / feito com o nabo / apanhado na horta / da casa coberta de musgo / na aldeia à beira da montanha.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:38

CHEIRO DE DESERTO

Segunda-feira, 10.02.14

O vácuo da solidão

Carrega o cheiro

De um deserto

Incendiado pelo silêncio.

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publicado por picodavigia2 às 21:07

PROSAS DAS CARTAS E DOS RETRATOS DE FAMÍLIA

Segunda-feira, 10.02.14

Pego nestas cartas tanto tempo guardadas,

desato as fitas dos maços, olho as datas seguidas.

Minha mãe sabia a história de cada uma,

melhor direi cada um dos que escreveram,

parentes nossos que quase todos nunca mais

voltaram para acabar onde nascidos.

 

Esta é talvez a mais antigas de todas:

7 de Setembro de 1872.

António, que a data de Broken Hill, na Austrália,

Não se esqueceu que era véspera da Senhora da Saúde,

mas fala já da abóbora assada de Todos os Santos

e do Natal, do Ano Bom e do Dia de Reis.

Sabia que uma carta de lá às Flores tardava,

e por isso, em bom cursivo, os seus votos

de boas festas “com saúde e na graça de Deos”.

 

Era eu bem pequeno quando veio a notícia

desse António, já sobre além dos oitenta anos,

durar ainda, num asilo velhos, parece-me,

numa cidade que me lembro se chamava Adelaide:

e o que ele queria agora não era saber dos seus

mas se herdara alguma terra e, se tivesse herdado,

que lha comprassem, porque o dinheiro, mesmo pouco

fazia arranjo a quem de seu só tinha a idade.

 

Eu imaginava que Austrália cavavam ouro

E só então fiquei sabendo que também lá os velhos

como tantos nossos não tinham para a sua masca.

 - Foi a minha primeira lição de Geografia.

….

 

De 4 de Maio de 1885

e escrita em Red Bluff, na Califórnia,

esta outra carta é do Raulino, que havia um mês

chegara ali para trabalhar, como diz,

nos moinhos da madeira, onde as soldadas eram

melhores que nas ovelhas, e agora estava

em casa de tio José, tratado como seu filho.

Nada mais que contar senão “hua grande desgraçia”;

um do Mosteiro, que já era para vir para trás,

fora apanhado pela serra e ficou sem pernas;

agora estava em Sacramento no hospital e não

se sabia ainda se escapava ou se morria.

E contando-o põe no fim: “Antes elle morra

porq. hum homem assim sem pernas não é nada,”

 

Pobre moço! Um dia aconteceu-lhe a mesma coisa

e não morreu, mas depois a mulher largou-o

e só então ele compreendeu que a sua vida

sem pernas (e sem mulher) não fazia sentido:

como pôde arrastou-se até ao rio, que lá

é o Sacramento River e vai dar, em Vallejo,

à grande baía chamada de São Francisco –

e sem pernas nem vontade de viver se afogou.

 

Agora o que eu encontro é uma fotografia

onde o casal e seus oito filhos que nela estão

diante de um fundo com colunas gregas e parras

vestem uma solenidade de quem faz de conta

que não vive ao lado, exactamente, do equador.

Foi tirada por Fidanza Phoyografpho, no Pará,

e a data na dedicatória de meu tio-bisavô Inocêncio.

é de 16 de Junho de 1894.

Uma carta tarjada de três anos adiante,

conta que o filho maior, José Luís de nome

e então nos vinte, morreu de febre amarela.

E a última notícia que encontrei guardada

desses que as conversas das tias velhas referiam

como os nossos primos Goulartes brasileiros.

 

Finalmente atinjo o fundo do escaninho e tiro

ainda outra carta, solta e a única no envelope,

no entanto aberto e de que arrancaram o selo,

mas que, mesmo assim, dir-se-ia escondida.

Assina-a Afonso, em Luanda, onde assistia,

em 18 de Fevereiro de 1907.

É à mãe e diz-lhe que está bom, mas que passou

um mau tempo, com as febres (o clima pois claro)

e um retrato que junta, mais diz, é com o filho

(um menino mulato, vê-se) e põe que gostava

de o mandar para cá, onde melhor se educaria.

- Mas afinal quem veio, quinze anos além, foi ele

E, que eu me recorde, pois conheci-o bastante,

nunca falava do filho do retrato na gaveta.

Vinha só de visita, disse, mas foi ficando,

Não trazia dinheiro que luzisse e a sua roupa

eram fatos de caqui, sem falar num chapéu

desses que chamam capacetes coloniais.

Com isso, também lá nos veio um papagaio,

que por sinal era cinzento e não verde, mas

falava como falam os outros, do Brasil.

O papagaio chamava- o “Ó Afonso!” – e depois

Era como se desse gargalhadas enquanto

o dono se embebedava com aguardente de figos.

Também gritava “Chiça!”, e foi mesmo o que fez

Quando primo Afonso, como era de esperar

desfeito, verde, morreu de cirrose hepática.   

 

Este meu primo contava pouco da sua vida

dos anos passados em Angola, ao que parece

comprando pelo sertão borracha e cera que logo

revendia a outros comerciantes, na costa.

Um dia perguntei-lhe como eram as pretas

e ele primeiro riu, mas por fim foi dizendo:

“No princípio a catinga enjoava-me, não podia…”

E explicou-me que catinga é como lá se chama

ao cheiro que deita a pele suada dos negros.

 

E a propósito disto, vem-me à lembrança agora

que de uma vez, em Kowloon, além de Hong Kong

uma puta chinesa me disse, e ria, ria

que os nau soc como chamam aos portugueses

(à letra traduzido, vejam lá, cheiro de vaca)

Mesmo lavados sempre cheiram a morto.

 

Mas deixando esta dos odores corporais

que, havemos de concordar, são antipoesia

reparemos antes, com o melhor daquelas cartas

que desde minha bisavó a minha mãe guardaram

e eu agora, a espaços comovido, fui lendo;

reparemos, dizia eu, que é Maio e a manhã

acordou azul e florida, cheirosa, musical

como a dança dos passos das raparigas quando

ainda não sabem (ou não querem saber) que a vida

também é muita vez o mais amargoso que vem

nas tais cartas que são (elas só) a memória que resta

de tantos mortos meus, tão mortos como esquecidos.

 

Pedro da Silveira, Poemas Ausentes

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publicado por picodavigia2 às 20:37

MÃE

Segunda-feira, 10.02.14

(TEXTO DE CATARINA FAGUNDES – 8 ANOS)

 

As mães fazem tudo para agradar os filhos. Elas dão-lhes carinho e amor. Mesmo que sejam pobres ou ricas, elas têm, sempre, o que é preciso para os seus filhos. Quando eles estão doentes, com gripe ou com uma constipação, têm todo o seu amor.

A tarefa de mãe é muito difícil: fazer o jantar, o almoço e quando há uma ocasião especial, ou de aniversário de um filho, têm um trabalho muito grande que é fazer o bolo, os queques e os biscoitos para os convidados.

Dá uma trabalheira!...

Também tem de fazer a cama dos filhos e a sua.

No dia cinco de maio, é o dia da mãe, por isso, se puderes, dá um ramo de flores à tua mãe

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publicado por picodavigia2 às 11:01

CONTRASTES (R)

Segunda-feira, 10.02.14

O Outeiro, sobranceiro à freguesia, era o sítio habitual paraas brincadeiras e folguedos da garotada, na qual eu próprio me incluía. Quem atingisse o seu cume, desfrutava duma vista fantástica. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha. A encimá-lo, no meio de imensa e diversa vegetação, uma cruz branca, altíssima e robusta, junto à qual, nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse quer ventasse, ajoelhava entoando cânticos e orações diversas e prolongadas. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os velhos telhados dos casebres. Simultaneamente, em todos os lares, famílias inteiras ajoelhavam também e, em convicta e comunitária oração, uniam-se às preces dos cantores, suplicando perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores.

Em véspera de festa, porém, alterávamos o destino do Outeiro. Prescindindo das nossas brincadeirashabituais, procurávamo-lo, na ânsia de cortar os ramos das árvores que se destinariam à ornamentação de ruas e pátios que não possuíam a beleza ou as qualidades julgadas necessárias e adequadas à passagem das procissões.

Naquela tarde sombria de Agosto para lá nos dirigimos mais uma vez, na procura e corte de verdura. Toda a freguesia aguardava, expectante e esperançada, a visita episcopal. Há vinte e três anos que um bispo não visitava a Fajã! Padre Silvestre, preocupado para que tudo corresse da melhor forma e Sua Excelência Reverendíssima fosse recebido com pompa e circunstância, como convinha a um príncipe da Igreja, mobilizou a parte mais crente do rebanho na preparação e arranjo de tão abençoado e santificado evento. À garotada, conhecedora profunda dos meandros do Outeiro, fora atribuída a tarefa de corte da verdura que encobriria e ocultaria a rudez e a pobreza das ruas ou que, depois de picada, formaria, juntamente com as pétalas das flores o tapete multicolor que o digno e legítimo sucessor dos Apóstolos pisaria.

Eu, apesar da pouca idade, incorporei-me voluntariamente na tarefa sem avisar quem quer que fosse. Embora não podendo trazer grande quantidade de verdura, morava ali perto, nas primeiras casas da Assumada e conhecia melhor do que muitos aqueles descampados. A expedição, terminou ao lusco-fusco. Molhos e gavelas de verdura abundavam, agora, no adro da igreja, à espera que no dia seguinte se iniciasse a ornamentação, à qual eu não podia faltar.

Cheguei a casa tardíssimo!

Porém, o ambiente ensombrado, tristonho e dramático que ali reinava, impediu que sofresse qualquer julgamento, repreensão ou castigo. A preocupação era tanta e tão grande que, pese embora a família estar toda reunida, ninguém notou a minha chegada tardia. Depressa me apercebi do que se passava e senti a iminência da tragédia que ameaçava abater-se sobre nós.

Os dias anteriores tinham sido de grande consternação, sofrimento e tristeza. Minha mãe, de cama há um mês, piorava de dia para dia. Quase em fim de gravidez, sofrera a bicada dum galo, precisamente numa variz. Não dando importância, nem fazendo o tratamento adequado, a situação agravara-se, trazendo-lhe complicadas contrariedades. Quando optou por tratamento, já era tarde. Meu pai, em constante rodopio entre Fajã, Fajãzinha, Lajes e Santa Cruz, procurava conselhos e remédiosque a curassem.

Na terça-feira, por feliz coincidência, o Dr. João Alves, o único médico da ilha, habitualmente mais dedicado àcinegética do que propriamente ao exercício da medicina, viera de barco, em passeio, à Fajã. Meu pai, evitando a onerosidade duma consulta ao domicílio que não poderia suportar, conseguiu, no entanto, falar com ele, inteirando-o do estado de minha mãe. Resposta pronta do facultativo:

- Mande-lhe fazer análises à urina. Depois leve-mas e veremos o que se pode fazer.

Por isso, meu pai se levantara alta madrugada, com destino traçado à Vila. Contudo, ao passar na Fajãzinha, encontrara, casualmente, o padre Albano já conhecedor do estado de minha mãe e que o aconselhou antes a ir pelas Lajes. É verdade que era mais longe, mas as análises feitas na Vila pela Dona Silvina eram, na abalizada opinião do reverendo, muito duvidosas.

- Cheguei às Lajes às nove - explicava meu pai quando eu entrei. - A Dona Antónia não tinha ainda aberto a drogaria. Esperei muito tempo, até que me disseram que ela hoje não abria, pois tinha ido passear para as lagoas com uns amigos do Continente. Tive, então que ir para Santa Cruz, mas tive sorte, porque da Lomba para lá um carro pegou-me e cheguei à Vila a tempo de mandar fazer as análises, de as mostrar ao médico e de ser atendido por ele.

Depois, com ar cansado e entristecido, explicava as dificuldades que teve que enfrentar para encontrar e ser atendido pelo doutor.

- Assim que viu as análises - concluía meu pai - franziu os olhos e disse-me logo que tinha que a levar amanhã para Santa Cruz, para ser imediatamente internada no hospital.

Na escuridão da cozinha, fez-se um silêncio sepulcral. Calados, todos reflectiam sem saber em quê. Lentamente, porém, à medida que a noite mais escurecia, começaram a delinear-se duas opiniões contrárias e controversas, sobre o destino da minha dolente progenitora.

Uns, liderados por minha avó, opinavam que nem médico, nem hospital resolvem nada; quando se tem que morrer, morre-se mesmo, pelo que, consequentemente, se opunham à ida dela para o hospital, sem falar nas dificuldades que teriam em transportá-la para a Vila. Outros, porém, contrariando tal ingenuidade, propunham fazer-se cumprir a vontade do médico, concluindo que em casa, sem assistência e sem medicamentos é que ela não melhorava.

Minha mãe fora poupada a tal discussão. Permanecia no quarto, deitada na velha cama de musgo e casca de milho, alheia à contenda que decidiria o seu futuro, ora olhando meigamente para meu irmão, ora embalando maquinalmente o bercito onde ele consubstanciava o sono com o total alheamento da tragédia que se abatia impiedosamente sobre nós. O pequeno espaço do quarto era ocupado por duas camas: a de meus pais e uma outra destinada às minhas irmãs. Entre ambas, apenas um exíguo e apertado espaço, onde com dificuldade, balouçava o pequeno berço, em que havíamos passadoos primeiros meses de vida. Ao lado a sala simples mas muito clara, evidenciando-se uma enorme barra de madeira, onde eu e meus irmãos nos íamos acomodando e aconchegando, à medida que, sucessivamente, éramos desalojados do berço, por imperativos resultantes da vinda de novo rebento e que, conjuntamente com uma cómoda, duas caixas e seis cadeiras a desfazerem-se, constituía a mobília de luxo da casa. Finalmente a cozinha, enorme, velha e escura, contrastando com a clareza da sala, agora, paradoxalmente, transformada em areópago dramático, onde a minha família debatia extenuantemente e decidia o futuro da minha sofredora e desafortunada progenitora. Pendente duma trave negra de carvão, uma pequena candeia, alimentada a enxúndia de galinha, flamejava frouxa e titubeante, lançando no escuro uma luz ténue, baça e pouco clarificante, que confundia pessoas e objectos. No lar evadiam-se, avermelhadas e cintilantes, duas achas de faia que minha irmã afogueara juntamente com uns pequenos garranchos de incenso, para ferver o leite e estufar o pão de milho, rijo, envelhecido e bolorento, cozido há oito dias e que constituiria a nossa parca e frugal ceia.

As vizinhas mais amigas e chegadas acorriam espavoridas, com xailes sobre o cocaruto, a inteirar-se do sucedido, a oferecer préstimos, a disponibilizar recursos e a colaborar na confusão galopante que se tornara epicentro das atitudes de todos.

Meu pai, evadindo-se do desânimo que o dominava, dirigiu-se para o quarto. Fez-se um silêncio profundo e enigmático. De baixo, da loja, dividida entre arrumos e estábulo, chegava, juntamente com os gemidos dum vitelo e o tilintar da campainha da Benfeita, o nauseabundo e fétido cheiro da retrete. Passado algum tempo meu pai regressou. Consubstanciava no rosto a marca indelével da angústia e o alívio da decisão definitivamente tomada:

- Está decidido!...Ela vai!...

De imediato, incapazes de discutir ou contrariar tal decisão, todos se mobilizaram em esforços confusos e desordenados, numa conjugação de lamentos com a vontade de fazer tudo sem fazer coisa nenhuma.

Dirigi-me ao quarto, com meus irmãos, enquanto minhas tias se atarefavam com os preparos da roupa, como se isso fosse o mais importante. Minha mãe já arrancara meu irmão ao berço e aconchegava-o ao peito em soluços profundos. Os olhos encheram-se-me de lágrimas e o peito de dor. Pudera eu alterar o mundo e mudava já, ali, de imediato, o destino da minha mãe. Abraçamo-nos, alternadamente, a ela, misturando as nossas lágrimas. Meu pai reagira ao drama e, tentando superá-lo, procurava homens disponíveis, que, na madrugada do dia seguinte, ajudassem a carregar aos ombros a pesada e provisória maca que a transportaria até aos Terreiros. Era opinião unânime, de que estando minha mãe muito pesada seriam necessários quatro homens para a transportar. Dada as dificuldades da viagem, convinha, no entanto, levar dois suplentes. Minha mãe continuava chorosa e indecisa, ora abraçando-se a nós, ora aconselhando e orientando minha irmã Amélia que, apesar de criança, na sua ausência, teria que assumir a tarefa de gerir os nossos destinos e os da casa.

A noite decorreu num contínuo hipotecar de certezas e esperanças. Alta madrugada fui acordado. Já minha mãe jazia no soalho remendado da velha cozinha, povoado de frestas, por onde entrava um ar matinal tépido, misturado com um bafio de animais e um cheiro a estrume e arrumos. A cozinha, totalmente escura, esperava que a manhã a clarificasse. Minha mãe estava estendida sobre dois grossos cobertores, que seriam amarrados nas extremidades e presos com arças a dois fortes temões, tirados a corções de bois. Um lenço amarelado, de merino, tapava-lhe quase totalmente o rosto triste e humedecido. Dos olhos, salientes e despejados de brilho, emanava, contudo, uma ternura esperançada a contrastar com o desespero bastardo que se apoderara de todos nós. Vestia roupas grossas, escuras e pardacentas a fim de se defender do frio da madrugada que, de certo, encontraria ao longo de todo o percurso. A viagem seria árdua e prolongada. Apenas a partir dos Terreiros, uma camioneta a levaria até à Vila. De certo que lhe passavam pela mente as agruras de tão inóspito trajecto, bem como o internamento no velho hospital de São Francisco, afastando-se de todos nós, por tempo indeterminado. Para cúmulo e porque faltavam poucos dias para o Carvalho, começava a delinear-se a possibilidade de ter que ir para o Faial, caso o tratamento em Santa Cruz não fosse eficiente.

Eu tremia, com os olhos arrasados de lágrimas. Ao mesmo tempo, já sonhava com o seu regresso. Iria esperá-la à Eira-da-Cuada, como tinha ido quando meu pai regressara da Terceira. Era o sítio já institucionalizado para, em dias de vapor, esperarmos os passageiros, quer os que vinham da América, quer os que se deslocavam ao Faial ou à Terceira, por doença. Sentados junto ao calhau de Nossa Senhora, víamos, lá ao fundo a rocha dos Bredos e a Fajãzinha, sendo assim possível adivinhar muito antes a chegada dos próprios viajantes que vinham dos Terreiros, a pé, acompanhados dos familiares mais afoitos, que lhes carregavam as malas. O espectro da partida regressava e os olhos voltavam a encher-se-me de lágrimas que se confundiam com as de minha mãe, de meus irmãos e com a simulada consolação que minhas tias e vizinhas lhe davam.

Chegaram os homens com os temões! Enfiaram-nos nas arças formadas nas extremidades das cordas que prendiam os cobertores. Estas, testadas pelo peso do corpo, rangeram acremente. De repente, um grito enorme, estrondoso e conjunto ecoou nos recantos da velha cozinha. Parecia que toda aquela artesanal, provisória e mal concebida geringonça se desfazia e o corpo inerte estatelava-se sobre as duras tábuas do remendado soalho.

Colocada novamente no chão, minha mãe, vaticinando as dificuldades que a tentativa do levantamento inicial haviam pré anunciado, esperou pacientemente que os homens renovassem todo o sistema de suspensão da provisória maca em que jazia. As cordas foram novamente apertadas e testadas com excessivos cuidados, numa confusa e apressada azáfama, que teve a vantagem de despertar e provocar preocupações que alienaram e anestesiaram uma despedida dolente e sinistra.

Na imensidão escura da noite, a porta da cozinha abriu-se. Lá fora, arrogantemente assustador, o abismo ofuscante da madrugada delineava formas incertas e inseguras que engoliam, sofregamente, o nosso destino e a nossa esperança. Com excessivos cuidados os homens levantaram, novamente, o catre. As cordas adequadas e ajeitadas aceitaram submissas e serenas o enorme peso que se suspendia dos temões arquejantes. Atrás as tias Matilde e Gervásia escalonadas para acompanhar no transporte das roupas e na desventura. Estariam a seu lado, durante a viagem e no hospital, prestando assistência e amparo. As sombras dos corpos e do catre confundiram-se e perderam-se na sinuosidade da Assumada!

E a porta fechou-se!...

Voltei a deitar-me! Mas não conseguia dormir. Ao Outeiro, anunciando o amanhecer, regressavam bandos de cagarras, cujos gritos agonizantes ecoavam sobre mim. Nuvens escuras perdiam-se sobre a imensidade ténue e profunda de um pântano negro e estranho onde me via só, na iminência de me perder. Minha mãe aparecia ao longe, sobre um tapete voador, vestida de branco, cabelos soltos e ao vento, as mãos estendidas para mim, sem, no entanto, me conseguir agarrar ou impedir de cair. Quanto mais eu corria na sua direcção, mais ela se distanciava de mim e caminhava chorosa, sentindo a mágoa e a dor de não poder ajudar-me. Um alto tapume interpunha-se entre nós, e eu ficava só. Rodeava-me um enorme e profundo vale, povoado de árvores sem folhas e sem esperança, ribeiras sem água, caminhos desertos e sem direcção, pássaros sem ninhos, borboletas sem asas e flores sem cor e sem perfume. O próprio Sol perdera o brilho e a esperança era escura. De repente, uma chuva, diluviana, torrencial e gelada, caía sobre o vale e sobre mim e eu não me podia abrigar. Queria fugir e não conseguia. A chuva era tanta que o vale, a pouco e pouco, enchia e quase me afogava. Uma sombra negra e assustadora descia sobre mim! Minha irmã Amélia, assumindo plenamente a responsabilidade que minha mãe lhe confiara de gerir os nossos destinos, acordava-me e, decididamente, decretava:

- Levanta-te! Tens que ir levar as vacas ao Outeiro Grande.

 

Ao meio-dia chegaram notícias de Santa Cruz. Eram muito desanimadoras. Minha avó, matriarca assumida da família, mobilizou, de imediato, todas as minhas tias, candidatas a tias e meus irmãos mais velhos, para se deslocarem para a Vila. O estado de minha mãe era gravíssimo! A viagem fora prejudicial e ela piorava a cada momento.

Partiram todos! Fiquei apenas eu, meus irmãos mais novos, minha avó e as tias Graça e Luzia. Era tal o empenho em que se imiscuíam, desde há muito, em missas, devoções, novenas e outros rituais litúrgicos, que não podiam de forma nenhuma, agora, abdicar da oportunidade de receber as graças, bênçãos e indulgências em que uma visita episcopal era tão profícua, até porque esporádica e pouco frequente.

 

De tarde, toda a freguesia, alheia ao nosso drama, paralisou, na preparação da visita do bispo.

Eu, que, na véspera, colaborara no corte e transporte da verdura, sentia-me, agora, no direito de ajudar na ornamentação das ruas e do adro, embora soubesse que não crismava. Sem que minha avó se apercebesse ou notasse, escapuli em debandada e rumei direitinho ao adro, onde se movimentavam gentes confusas e ideias desordenadas. Ramos de árvores e arbustos, montes de verdura e cestos de flores abundavam por ali, à espera de destino.

Entrei na igreja. Era a hora da confissão!...

O prolongado interregno das visitas episcopais originara que quase metade da freguesia se preparasse para receber o crisma. Os restantes estavam, no entanto, também ligados à cerimónia, uma vez que tinham sido recrutados como padrinhos ou madrinhas. A todos fora imposto, no domingo anterior, a necessidade prévia de lavar culpas e confessar pecados, branqueando costumes e purificando atitudes. Daí uma procura penitencial como há muito se não vira e que ultrapassava, de longe, a desobriga pascal. Tão excessiva e desusada concorrência obrigou padre Silvestre a reforçar notória e substancialmente as estruturas penitenciais de que, habitualmente, dispunha. O número de confessores foi aumentado e, para além dos velhos confessionários laterais, acrescentou dois ralos suplentes, encravados na grade da capela-mor, onde, estrategicamente, colocou padre Albano e padre Pinheiro, mais experientes em Casuística. Ele próprio reforçava o elenco penitencial, sentado ao lado do altar-mor, atendendo a pequenada, menos pecaminosa e dispensada canonicamente do ralo.

O templo convidava à oração e à penitência. Ensombrado numa penumbra clarificante, exalava um cheiro a silêncio, a perdão e a arrependimento simulados. Dos altares, recheados de sécias, gladíolos, azáleas e velas a arder, emanava um perfume doce, atraente e sereno. Das altas janelas suspendiam-se sanefas de damasco vermelho, debruadas a amarelo e cortinas de linho rendado. Homens e mulheres, de joelhos ou sentados, cabisbaixos, entretinham-se, indistintamente, a simular arrependimento e penitência, num esforço improfícuo, de lembrar as culpas de que iriam solicitar perdão. Alguns, menos pacientes, esgueiravam-se, na tentativa de procurar confessor mais benevolente. Outros, já aliviados, bichanavam Padres-Nossos e Ave-Marias, em quantidades variáveis, conforme lhes fora imposto, pelo confessor, de acordo com a quantidade e a gravidade das faltas declaradas. O templo transformara-se, enfim, num epicentro de arrependimento e de perdão! Não havia falta, culpa ou pecado declarado pelo arrependimento dos penitentes, que escapulisse à fúria benevolente e perdoadora dos confessores.

Padre Silvestre, ao ver-me, chamou-me apressadamente. É que desde há algum tempo eu fora iniciado na colaboração e ajuda dos ritos e cerimónias litúrgicas. Cuidando ele que havia muitos penitentes que ainda se não tinha submetido ao julgamento divino e, com receio que se esquecessem, mandou-me tocar os sinos.

Não podia atribuir-me tarefa mais gratificante! De toda a garotada da freguesia, eu era o único que sabia tocar devidamente os sinos. Meu tio Onofre era o sacristão. Casando-se, o que aconteceria em breve, abandonaria o cargo. Desde há muito que eu fora indigitado como seu legítimo e natural sucessor. Por isso, fora já iniciado na prática e no acompanhamento das diversas cerimónias litúrgicas e celebrações religiosas. Já sabia de cor, em latim, o "Confiteor" e as respostas ao "Introíbo" e ao "De Profundis". Apenas um senão pesava contra a minha contratação e que levara padre Silvestre a adiá-la indefinidamente: a exígua altura de que dispunha, na opinião do reverendo, não se adequava às exigências preliminares e posteriores ao Santo Sacrifício da Missa - acender e apagar as velas dos altares. É verdade que eu jurara solenemente resolver o problema, subindo a uma cadeira e, se necessário, até saltar para cima dos altares, actos que o reverendo condenava e reprovava radicalmente, quer porque os considerasse pouco litúrgicos, quer porque, tendo em conta a fama de estroina que eu tinha, corria o risco iminente de, na descida, trazer algum santo embrulhado comigo, estatelando-o no chão, como já fizera, em tempos, com o vidro do relógio.

A minha especialidade, porém, era o toque dos sinos. Era exímio!... Tocava-os como ninguém e de acordo com as exigências de cada festa, celebração ou momento litúrgico.

Feliz, subi a sineira, agarrando-me aos enormes badalos com frenesim diabólico, estonteante e quase artístico. Iniciei, de imediato, um harmonioso repique, que se prolongou enquanto as minhas forças o permitiram. Para além de saborear o som harmónico que emanava dos bronzes gigantes, pretendia que nenhum penitente deixasse de procurar a oferta penitencial que lhe era facultada e que ninguém, na freguesia, permanecesse em pecado, por incúria minha. Toquei tanto, tanto, que, padre Silvestre, fértil em irritação quando os seus desejos não eram concretizados, para suspender a sinfonia, teve que mandar emissário portador da mensagem habitual:

- Vai dizer àquele paspalho que pare de tocar os sinos!

Regressei pela sacristia, para que ele não despejasse sobre mim as iras a que era propenso, sobretudo em vésperas de festa. Lá estava, sobre o velho e envernizado mesão, a casula festiva, de damasco branco, debruada e bordada a amarelo e que o bispo vestiria, ao chegar ao templo, substituindo a capa de asperges que envergaria desde a Casa do Espírito Santo. Ao lado, o cálice, a píxide, a custódia, a caldeirinha com o hissope, o turíbulo e a naveta, tudo muito limpo e areado, brilhando a novo, para que o prelado vendo o empenho que o pároco colocava no asseio e manutenção das alfaias litúrgicas, concluísse do seu zelo espiritual, da dedicação religiosa e dos cuidados e orientação que dedicava ao rebanho que, por mandato canónico, lhe confiara.

No adro, os que já se tinham aliviado dos pecados e cumprido a penitência imposta iniciavam a ornamentação. Bandeiras multicolores suspendiam-se, cruzadas, das varandas e beirais das casas. Muitos portões eram revestidos com verdura, a fim de ocultar a sua rudez e pobreza. Uns picavam ramos e folhas, enquanto outros desfolhavam as pétalas das flores. A azáfama era grande e a confusão ainda maior. Depressa me integrei no frenesim que ali se institucionalizara. Corria, alegremente, de lado para lado, levando ramos a uns e trazendo barbante a outros.

De repente e sem me aperceber, quando corria desalmadamente, carregando um ramo que o Eduíno me pedira, atirei tão grande e tão forte pontapé no gume de um machado que descuidadamente fora deixado por ali. Andava descalço e tinha os pés totalmente desprotegidos. A pancada foi fatal. Senti a lâmina afiada entrar-me na carne, abrindo-me o pé de trás adiante, num enorme golpe. Caí desfalecido, enquanto a meu lado começava a formar-se uma poça de sangue, gerando-se o pânico entre os meus comparsas de ornamentação. Fui conduzido, imediatamente ao passal, cujo quarto de banho, dos poucos existentes na freguesia, em situações similares, se transformava em sala de urgência.

Era a hora do lanche dos senhores padres que, por tal razão, tinham interrompido o confesso. Mas a gravidade do acidente exigiu que padre Albano, tão experiente no exercício da medicina como no do sacerdócio, suspendesse o seu lanche, para me prestar os primeiros socorros.

Tal incidência provocou, na dona Serafina, irmã do pároco e administradora doméstica do passal, uma zanga enorme e paradoxal. Cuidava ela que o lanche do clero, sobretudo em tarde que os reverendos se agastavam em excessivas bênçãos, perdões e penitências, era sagrado e, por conseguinte, não devia ser interrompido por um badameco qualquer. Pesava ainda contra mim, na opinião da ilustre senhora, o facto de, estando minha mãe no hospital, ser meu dever estar em casa, fazendo companhia à minha avó:

- És sempre o mesmo Alvarinho! Tinha que seres tu a interromper o lanche dos senhores padres! Nem estando a tua mãe a morrer no hospital tomas juízo. Antes estivesses em casa, porque a tua avó bem precisa de ti.

Eu chorava desalmadamente!... Chorava de dor, chorava de raiva, chorava de medo!

Depois assoava-me, soluçava e voltava a chorar.

Padre Albano que voluntariamente abdicara do seu lanche para me tratar não a ouvia. Tirara a batina e o cabeção para poder, mais facilmente, prestar-me assistência. Agora, de calças negras e camisa branca, mangas arregaçadas parecia um homem, olhando para mim com blandícia e piedade. Do seu rosto vermelho, altivo e sorridente, emanava um olhar terno, meigo, benevolente e preocupado:

- Não chores! - Exclamava ele, carinhosamente, com voz estridente e bondosa. - Vamos tratar disto! Vais ficar bom e amanhã já podes ir esperar a tua mãezinha.

Depois, desapertando com excessivos cuidados os panos em que me haviam embrulhado o pé ferido, franziu os olhos e, virando-se para padre Joel, que assomara à porta para se inteirar do sucedido, murmurou flacidamente:

- É maior do que eu pensava! Vou ter que lhe dar pontos.

Entrei em delírio excitante e em pânico redobrado. Arrogava-me o direito estapafúrdio de fugir dali imediatamente, vendo-me, no entanto, totalmente impedido de o fazer. Os meus gritos, resultantes, conjuntamente, das dores e dos protestos por não querer ser cosido, foram tais que provocaram o reaparecimento da dona Serafina, que voltou a despejar sobre mim algumas imprecações, que contrastavam com a ternura e o carinho que me dedicava o padre.

Os meus protestos de nada serviram. O padre tinha decidido coser-me e coseu-me mesmo, apesar de o ter feito com grande carinho, delicadeza e ternura. Uma picada fria, seca e destemida acelerou exageradamente as dores. Senti, de imediato, deslizar áspero, agreste e desabrido, por entre as excrescências carnosas que ladeavam o golpe, uma espécie de fio. Gritos estrondosos e tresloucados ecoaram pelos corredores e dependências da casa, com tal intensidade e persistência que todo o clero foi forçado a suspender o lanche, em que dona Serafina pusera tanto enlevo. Até as cozinheiras, contratadas para ajudar a preparar as refeições do prelado, saíram da cozinha e acorreram esbaforidas e sobressaltadas. Levantou-se, em suma, um medonho e descomunal alarido, em nada abonatório e pouco condizente com a calma e tranquilidade de um passal, sobretudo em preparativos de visita episcopal.

Dona Serafina, desesperada, vociferava, culpando-me de ser o crónico e efectivo provocador da desordem sistemática e da confusão permanente, não apenas em minha casa, mas também na casa alheia e até por toda a freguesia.

Terminada a operação, a Genoveva, uma das cozinheiras contratadas e amiga de minha mãe, pegou-me ao colo e, tentando acalmar-me, levou-me para a cozinha, onde nunca tinha entrado. Sentou-me numa cadeira e prometeu-me uma fatia de bolo, do "dos senhores padres" se eu cessasse o meu choro. Calei-me, muito a custo, não tanto pela promessa da Genoveva, mas porque, agora, começava a consciencializar-me da minha dramática, infeliz e triste situação e das consequências que me iria trazer.

Sentado ali, muito quietinho, com as marcas da dor estampadas no rosto e os estigmas da raiva reflectidos no peito, olhava, no entanto, aquela cozinha, tão deslumbrante e tão diferente da minha. Tachos e panelas, tudo brilhava e reluzia, contrastando com a negrura e ferrugem dos caldeirões que povoavam o meu lar. Ali, nem traves negras de tisna, nem linguiças penduradas dos tirantes a pingar graxa, nem frestas ou remendos no soalho, nem balde de porco, nem a velha e pequena candeia de enxúndia, nem cheiro a retreteou a estrume. Tudo era novo, limpo, claro, brilhante e asseado. Era forrada e do tabique esbranquiçado pendiam cachos de papel rendilhado, multicolores, onde as moscas se entretinham e se perdiam, afastando-se dos alimentos e das pessoas. O chão era liso e limpo e ultrapassava, em qualidade, o da minha própria sala. À volta da mesa dispunham-se cadeiras em vez de bancos ou caixotes. A Genoveva deu-me, então, uma enorme fatia de bolo que sobrara do lanche eclesiástico, enquanto me perguntava meigamente:

- E de tua mãe? Souberam mais alguma coisa?

Eu, abanando a cabeça negativamente, deliciava-me com um manjar a que, quer por não estar habituado, quer porque excedente do lanche dos senhores padres considerava celestial. Ao mesmo tempo, continuava pasmado observando a abundância pantagruélicaque proliferava por toda a cozinha: galinhas depenadas, peixes de várias qualidades, carnes de porco e de vaca, massa sovada, bolos, pudins, frutas e muitas outras iguarias que me faziam crescer água na boca. Enquanto me deliciava com tal contemplação, entrou a dona Serafina, informando que alguém me iria levar a casa.

Era o Eduino. Sentira uma certa cumplicidade na minha desventura e disponibilizara-se, imediatamente, para me tirar dali. Subiu o saguão e pegou-me às cavaleiras, levando-me a casa da minha avó. Esta, quando me viu e se apercebeu do sucedido, levando as mãos à cabeça, como se endoidecesse, expeliu gritos alucinantes e lamentações dramáticas tais que provocaram enorme alarido em toda a vizinhança, que, tendo em conta os acontecimentos anteriores, permanecia alerta ao menor ruído, grito ou lamentação:

- Valha-me o "Não-sei-que-diga"!... Não me faltava mais nada!... A Floripes às portas da morte, no hospital!... E eu aqui sem saber de nada!... E tu chegas-me nesse estado!... Eu me benzo do "Coiso-mau»!...

E benzia-se e persignava-se vezes sem conta, como se isso resolvesse alguma coisa.

Eu bem a esclarecia e elucidava, de que tudo acontecera em prol duma causa santa e que até tinha merecido honra de atendimento eclesiástico, sem, no entanto a demover da sua consumição.

 

A noite foi de dor, de enfado e de incerteza!...

Acordei, na manhã seguinte, com o pé túrgido e dormente, totalmente incapacitado de andar ou, sequer, de me mover. Sentei-me à janela da sala, com o pé estendido e muito quietinho, desfrutando duma vista maravilhosa e global sobre grande parte da freguesia. Dali, podia ver não apenas as ruas por onde Sua Excelência Reverendíssima e o seu séquito passariam, mas também o gasolina que o transportaria da Vila até ao cais, uma vez que a casa da minha avó, situada nos contrafortes do Outeiro, na Fontinha, ficava sobranceira ao mar.

Nas ruas circundantes à igreja e no adro, já era grande a azáfama. Uns davam os últimos retoques na ornamentação, enquanto outros já demandavam o cais. A Senhora da Saúde, novinha e em folha, inaugurada ainda não havia um ano e para a qual meu pai também havia contribuído, oferecendo o leite do primeiro domingo de cada mês, expelia, a custo, os primeiros acordes.

Olhei a infinidade azulada do oceano. Lá ao fundo, emergindo da rocha da Ponta, uma mancha escura crescia e, rapidamente, transformava-se em embarcação, que, em breve, ultrapassava a Baixa-Rasa, aproximando-se do cais. Era a "Leta", o melhor e mais rápido gasolina da ilha, requisitado à pesca da baleia, para transporte do eminente visitante. Lembrei-me, então, das dificuldades e agruras por que teria passado minha mãe, doente, sem poder andar, para chegar à Vila. E o bispo, que ainda era novo e gozava boa saúde, vinha de lancha. E, para cúmulo, fora-lhe posta à disposição a melhor e mais rápida embarcação que existia nas Flores. Perguntando à tia Graça, o porquê de tão, em minha opinião, injusta diferença, ela respondia-me simplesmente:

- Ora porquê? Porque é o senhor bispo!... É como se fosse Deus.

Eu, porém, não entendia tão contrastante contraste. E, dentro de mim, germinava uma ingénua e improfícua revolta.

Eu não via o cais de desembarque, mas o estalejar dos foguetes e os sons estridentes e desafinados da Senhora da Saúde eram indicador seguro de que o prelado já estava em terra firme.

Pouco depois, via deslizar, junto ao Matadouro, uma enorme e pouco habitual mole humana, atrás da qual se podia divisar, o vulto “negro-roxo” do bispo. Foguetes perfuravam o céu sombrio, deslizavam o ar sereno e estalejavam, ininterruptamente, destemidos, em sons quebrados e roucos que ecoavam nas rochas das Águas e da Figueira. Os acordes musicais da Senhora da Saúde, sob a batuta presunçosa mas pouco experiente do Alfredo Couceiro, embora desafinados e grosseiros, continuavam a efluir, repercutindo-se pelos vales e pelas encostas dos montes. Na torre da igreja iniciava-se um toque de sinos anunciador de festa e de alegria. A freguesia inteira era um mar de regozijo e satisfação, onde se movimentavam marés de contentamento e ondas de felicidade. O povo todo saía à rua ou acorria às janelas e varandas para ver, saudar e aclamar o Pontífice, que não se poupava a distribuir bênçãos, indulgências e sorrisos.

E eu, ali, sozinho, empalidecido e triste a lamentar a minha sorte, amarrado à dor e preso pelo infortúnio, já não acreditando na esperança, em evidente contraste com o folguedo sagrado, em que toda a freguesia participava e do qual o bispo era cúmplice.

Este, porém, sem que ninguém esperasse, recolheu a casa de padre Silvestre para descansar, enquanto povo continuava a festejar a sua chegada!

«Afinal, tinha vindo da Vila de gasolina e necessitava de descansar?!» - pensava eu, sem entender.

A mente povoava-se-me de ideias confusas. A viagem do bispo a contrastar, não apenas com a da minha mãe, mas com todas as que o meu pai fizera durante aquela semana...

Passado algum tempo, o bispo já paramentado de capa de asperges, báculo e mitra, assumindo a verdadeira razão de ser do epíteto de Príncipe da Igreja, saía da Casa do Espírito Santo de Cima, percorrendo em procissão a rua Direita, toda atapetada e engalanada. À frente, os anjinhos de asas brancas e cestas de flores e as crianças da Cruzada Eucarística, cobertas com a cruz de Malta, desenhada a vermelho, em faixas brancas, atravessadas sobre o peito. A seguir os que iam crismar e os padrinhos. Depois os homens de opas brancas e vermelhas, carregando lanternas, pendões, cruzes e velas. Finalmente o clero, envergando batina preta e sobrepeliz branca e o pálio, sob o qual seguia Sua Ex.cia Reverendíssima, acolitado pelos ouvidores das Lajes e da Vila. A Senhora da Saúde, persistindo nos seus acordes desafinados e, por vezes, abafados pelo toque dos sinos ou pelo ribombar dos foguetes, fechava o cortejo. Das janelas, varandas ou pátios, jovens donzelas atiravam pétalas de flores, que o prelado retribuía com bênçãos e sorrisos.

Chegando à igreja, o bispo pegando no hissope que padre Silvestre lhe oferecia, revestido do poder jurídico e canónico que a qualidade de pároco lhe conferia, levou-o à cabeça e, desenhando cruzes sobre si próprio e no ar, aspergiu o povo, humildemente ajoelhado, submisso e contrito, enquanto o coro, sob a trémula e pouco hábil batuta da Dona Serafina, entoava o "Ecce Sacerdos".

E a porta do guarda-vento fechou-se!...

A freguesia tornou-se um deserto! Parecia toda adormecida. Apenas dois oásis: um a igreja onde pontificava o bispo, onde se evadiam fluxos de santidade e fervilhavam bênçãos e graças por entre cânticos de glória e hossanas de louvor; outro, a casa da minha avó, onde reinava a solidão, a dor e a esperança refulgia cada vez menos incerta e mais confusa.

 

O dia chegava ao fim e a noite aproximava-se lúgubre e tenebrosa. Eu continuava sentado à janela, sem esperança e sem notícias da minha pobre genetriz. Nos caminhos cruzavam-se sombras humanas, estranhas e paradoxais, recolhendo aos lares. Na curva, que ao longe divisava, surgiu um vulto negro, confundindo-se com a noite. Caminhava lento e taciturno. Depois de subir a ladeira subjacente à casa da minha avó pude identificá-lo: era padre Joel, professor no Seminário de Angra e que, todos os anos, ia passar férias à Fajã, donde era natural. Morava na Assumada e era meu vizinho. Aparentando os seus trinta anos, sempre muito limpo, asseado e bem penteado, passava muito do seu tempo em amena cavaqueira comigo e meus irmãos, nos pátios traseiros e contíguos de nossas casas, contando muitas histórias, cantilenas e ditos. Ouvira-os, em criança, a minha avó paterna, há muito falecida, que morara na casa que agora era de meus pais. A sua mãe, a dona Alcinda, chamava-me, frequentemente, para lhe fazer recados, recompensando-me sempre com uma fatia de pão de trigo fresquinho, coberta com doce de pêssego e que me fazia olvidar o pão de milho velho e bolorento, barrado com graxa de porco, simulando sabor a linguiça, a que estava habituado. Outras vezes, o que para mim significava maior satisfação, dava-me um moeda de dez centavos que eu ia cuidadosamente amealhando, até fazer um escudo, com a qual compraria um chocolate, na festa da Senhora da Saúde, único dia no ano, em que me era licito fruir tal prazer. Quando o montante ultrapassava um escudo, era obrigado a depositá-lo nos "cofres" de minha mãe, contribuindo assim para o reforço do nosso escasso e paupérrimo orçamento familiar.

Padre Joel subiu a ladeira e estacou frente à entrada da casa da minha avó, permitindo-me adivinhar que o seu destino terminava ali. Estava triste, cabisbaixo e revelava grande preocupação e desalento. Minha avó, ao vê-lo, sabendo que não era hábito do reverendo circundar-lhe a casa, desatou em altos gritos, profetizando as más notícias de que ele seria portador:

- Foi a Floripes que morreu! Foi a Floripes que morreu! - Exclamava ela, obstaculizando a consolação e a tranquilidade que as tias Graça e Luzia, simuladamente, ousavam transmitir-lhe. Eu, também estranhando a presença comprometedora do padre, quase lhe dava razão e enchia-me de medo.

Tia Graça, nervosíssima, foi destrancar a porta da sala, que apenas se abria em ocasiões mais solenes ou em dias de festa. O padre entrou, cumprimentou-nos a todos e, dirigindo-se a mim, como que a distrair-nos do que ali o trazia, perguntou-me se estava melhor. Eu, porém, nem tempo tive para lhe responder. Minha avó não lhe dava tréguas! Quase tresloucada, exigia:

- Senhor padre! Sei que me vem trazer uma notícia má!...Diga, diga!... Foi a Floripes que morreu!... A minha Floripes morreu?

O padre confirmou, acenando levemente com a cabeça. Não foi preciso dizer qualquer palavra. Minha avó e minhas tias iniciaram, de imediato, tão alta gritaria e tão grande choradeira, que as vizinhas, adivinhando o pior, acorreram apressadas. Eu senti um baque estridente e doloroso, no peito e, segurando a cabeça com as mãos apoiadas nos joelhos, chorei amarga mas silenciosamente...

Padre Joel, sem que ninguém o ouvisse, explicava que minha mãe tinha falecido no dia anterior. Na impossibilidade de trazer o cadáver para a Fajã, tinham decidido sepultá-la em Santa Cruz. Para impedir que a família lá ficasse mais uma noite, tinham realizado o funeral às três da tarde. Meu pai, meus tios e meus irmãos já tinham chegado à Assumada e estavam na nossa casa. Tinham lá ficado pois meus irmãos ao entrar em casa, ao sentir a falta da mãe, tinham começado a chorar e de lá não queriam sair. Tinham-lhe pedido, para ele vir à frente, dar a triste notícia...

Eu já nem o ouvia... Uma enorme e sobressalto e uma desmesurada angústia apoderaram-se de mim. Não podia cessar as lágrimas. Agora e pela primeira vez, sentia a terrível e suprema certeza de não voltar a ver a minha infortunada progenitora...

Passado algum tempo, na curva negra da Fontinha, surgia uma pequena multidão. Eram vultos desconexos, inseguros, desajeitadamente ambulantes, trajando de negro e de dor. Indecisos e tímidos, olhando de soslaio para a casa da minha avó, hesitavam e paravam... Eram meu pai, meus irmãos e meus tios e tias, a quem já se tinham juntado alguns vizinhos e amigos, partilhando a dor, a angústia e a mágoa, oferecendo préstimos e consolação.

E a casa da minha avó, de repente, encheu-se de gente, de pranto, de dor e de escuridão, como nunca. Era uma amálgama confusa, escura, dolente, medonha e hedionda. Choro, pranto e lamentos devoravam todos!

Padre Joel retirou-se, passado algum tempo, com destino ao passal, onde, àquela hora, em flagrante contraste com o que se passava na sala da minha avó, bispo e padres saboreavam o lauto e apetitoso jantar que dona Serafina, ajudada pela Genoveva, prepara com tanto esmero. Soube-se, mais tarde, que o prelado, notou a ausência de padre Joel e, quando este entrou, interrogou-o, sobre as razões do seu atraso, com intenções de o repreender. Apenas quando o meu vizinho explicou, sumariamente, a nossa tragédia e como nela se envolvera, Sua Excelência Reverendíssima lhe perdoou e, continuando o seu jantar, acrescentou piedosamente, referindo-se a minha mãe:

- Coitada! Depois do jantar vou rezar por alma dela.

E como os actos generosos de um bispo não devem ser ocultados, depressa se espalhou, por toda a freguesia, a notícia de que o senhor bispo, ao ter conhecimento da morte da Floripes, rezara por alma dela. Anacronicamente, todo o beatério da freguesia como que invejou a "sorte" da minha pobre e desafortunada genetriz:

- Sorte teve a Floripes! - Exclamavam umas para as outras, as beatas mais exageradamente beatas. - Até o senhor bispo rezou por alma dela! Foi direitinha para o Céu!

 

Nessa noite, não tivemos coragem de regressar à Assumada. Decidimos ficar em casa da minha avó. Como esta era pequena e os tios e tias eram muitos, meu pai, meus irmãos e eu aconchegámo-nos uns aos outros e acomodámo-nos no chão da sala.

Coube-me a mim, talvez por ser o mais pequeno dos maiores, dos que, na opinião de minhas tias, já podiam ficar sozinhos, assumindo a sua incondicional condição de órfão, ficar ao lado de meu pai e sentir a dor e a desventura que ele agora, ao deitar-se, consciencializava e que, julgando que eu não ouvia, sintetizou num desabafo dorido e desastrosamente profético:

-"Ela vai fazer-nos tanta falta!..."

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publicado por picodavigia2 às 00:18

QUEIJO DE CROSTES

Domingo, 09.02.14

Colostro é uma forma de leite de baixo volume segregado pela maioria das fêmeas dos mamíferos nos primeiros dias de amamentação pós-parto. Composto de vários factores para o desenvolvimento e protecção do recém-nascido, como água, leucócitos, proteínas e outros. O colostro vai se transformando gradativamente em leite maduro nos primeiros quinze dias pós-parto.

Dizem os livros que o colostro tem uma importante função na imunidade passiva de algumas espécies de animais, pois nele existe uma grande quantidade de imunoglobulinas, que em determinadas espécies não conseguem passar pela placenta, ficando a cargo total do colostro transferir da mãe para o filho. Além da quantidade de imunoglobulinas, o colostro distingue e diferencia-se do leite normal pela quantidade de sólidos totais. Com o tempo, essas diferenças vão diminuindo e essa secreção vai se transformando em leite absolutamente normal

O colostro é também a única substância capaz de eliminar todos os resíduos de mecónio do trato gastrointestinal da cria recém-nascida, ajudando o intestino a amadurecer e a funcionar de maneira eficiente, além de prevenir o aparecimento de alergias, infecções e diarreia, pelo adequado controle e equilíbrio das bactérias que se desenvolvem no seu intestino. No dia do parto o colostro apresenta-se ainda mais rico, daí se considerar que, para qualquer recém-nascido, as primeiras horas de vida serem chamadas por especialistas de "golden hours".

Como o colostro é rico em células imunologicamente activas, em anticorpos e proteínas protectoras, funciona como uma espécie de primeira vacina, protegendo p bebé contra várias possíveis infecções. O colostro ajuda a regular o próprio sistema imunológico em desenvolvimento, ajuda a proteger os olhos e a reduzir as infecções, a estimular os movimentos intestinais e ajuda na prevenção da icterícia.

No caso das vacas o colostro apresenta-se como um líquido fino, amarelo , semelhante à água-de-coco e tem um sabor adocicado.

Na Fajã Grande, antigamente, ao colostro, ou seja, ao leite dado pelas vacas depois de parir, chamava-se crostes. Acontecia que, depois de dar a cria, a maioria das vacas dava muito leite, pois eram muito bem tratadas, antes do próprio parte nos dias que se lhe seguiam. Alem disso, muitos vitelos nem bebiam o leite todo e, na maioria dos casos não bebiam nenhum, uma vez que naqueles tempos, não era hábito comer a carne dos vitelos, estes eram pura e simplesmente abatidos e enterrados logo após o parto. Apenas um ou outro se criava para fazer dele uma futura vaca ou um gueixo de engorda.

No entanto era necessário retirar o colostro ou os crostes da vaca nos dias que se seguiam ao parto. Mas como este não servia para desnatar ficava em casa, sendo uma parte dele utilizada na alimentação dos humanos e o restante deitado aos porcos. Assim uma parte dos “crostes” era consumida à ceia, em vez do leite tradicionalmente utilizado naquela refeição e comido com pão, bolo ou papas, no caso do pão e bolo sobre a forma de sopas. Outras vezes era, simplesmente, bebido sem nada, mas sempre depois de fervido. Mas ainda sobrava muito que era utilizada para fazer queijos – os tradicionais e célebres “queijos de crostes”. Estes queijos eram fabricados em grande quantidade pelo processo tradicional do fabrico do queijo com o leite normal, amornando um pouco os crostes e juntando-lhes de seguida o coalho líquido, comprado nas lojas e que na Fajã Grande existia em todas as casas. Depois de coalhado o colostro era colocado nas formas de lata, furadas nos lados e em cima duma tabuinha, suspensa numa celha, como se fazia com qualquer queijo.

Os queijos de crostes comiam-se frescos. Mas como se faziam em grande quantidade, sobravam alguns que punham a curar ao sol durante vários dias, ao mesmo tempo que se ia escoando o soro. O queijo ficava mais duro e adquiria a cor amarelada. Quero os frescos quer os curados eram excelentes e tinham um sabor adorável.

 

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publicado por picodavigia2 às 22:16

O JOSÉ DIAS

Domingo, 09.02.14

O José Dias era o filho mais novo de Ti Manuel Luís e da Senhora Dias que moravam na Tronqueira. Faleceu na Fajã Grande, em 1993, com 70 anos. Desde jovem que se se revelou um rapaz simples e trabalhador, habituado ao amanho da terra, a tratar das vacas, a ajudar o pai nos moinhos que possuía na Ribeira das Casas. Namorou e casou com a Maria de Lurdes, filha da Senhora Estulana, que morava na última casa do Cimo da Assomada, no começo do Caminho da Missa.

Ao ser chamado às sortes, ficou apurado e, como a maioria dos jovens, na altura, foi incorporado no Exército, pelo que viajou para a ilha Terceira, onde fez a recruta e onde foi instruído no manejo das armas para, mais tarde, jurar bandeira. Após a recruta, jurou bandeira numa festa solene como era usual fazer-se nesses tempos. Jurou com o coração, dar a vida, se tal fosse necessário, pela Pátria, de braço direito esticado em direcção à bandeira de Portugal.

Tão bem cumpria as suas obrigações de militar e tão diligente se mostrou que, na primeira escola de cabos que houve no Quartel de Angra, foi nomeado para a frequentar e acabou sendo promovido a cabo, exercendo o cargo de quarteleiro chefe da sua unidade. Cumprido o serviço militar, regressou à Fajã Grande disposto a juntar dinheiro para construir uma casa e contrair matrimónio.

Na verdade, passado algum tempo, construiu uma casa no Cimo da Assomada, em frente ao chafariz de Cima e casou com a Maria de Lurdes. Criou o seu próprio negócio de mercearias e artigos variados, estabelecendo-o na Ponta. Nasceram dois filhos e face aos encargos era, então, necessário pensar num outro rumo para a vida, pois o negócio rendia pouco e o rendimento das terras não chegava para o sustento condigno da família. Como a mulher havia nascido nos Estados Unidos da América e tinha papeles, decidiram emigrar para os Estados Unidos. Primeiro partiu a Lurdes, para a Califórnia, onde começou a trabalhar, fazendo, logo que a lei lho permitiu, a carta de chamada ao mardo e aos filhos, juntando assim toda a família no novo país. Ao chegar à América, como muitos outros açorianos, o José Dias começou a trabalhar num rancho, cuidando de vacas, enquanto à noite frequentava a escola, a fim de aprender o inglês suficiente não só para ganhar o pão de cada dia como, também, poder naturalizar-se cidadão americano, até porque era casado com uma americana.

Uma vez aprovado na escola havia que passar à formalização da cidadania. Com os papéis tratados e em ordem foi-lhe marcado o dia para fazer o juramento de bandeira numa cerimónia simples, mas carregada de significado, pois era levada a cabo diante de um juiz, devidamente empossado para esse efeito. Prestadas as primeiras provas, demonstrado que falava, lia e escrevia com alguma fluência na língua inglesa, interrogado sobre a Constituição Política dos EUA, foi convidado a, frente à bandeira, a estender o braço e fazer o juramento. Muito comovido o José Dias não conteve as lágrimas e, entre soluços profundos, disse as palavras que o obrigavam a honrar nova a pátria de adopção.

Admirado o juiz perguntou-lhe qual o motivo das suas lágrimas e da dificuldade de dizer a fórmula de juramento. Na sua simplicidade o José Dias disse:

- Chorei, pois Deus sabe como me senti, porque há anos jurei dar a vida pela minha Pátria, Portugal, e agora estou a fazer um novo juramento semelhante! Sinto-me um traidor!

Retorquiu o juiz, com a sabedoria de muita experiência, de muita diplomacia aprendida e com o sentimento da verdade: —

- Fique sabendo que de muitos homens como o senhor precisam os EUA, porque esses sabem o valor de um juramento!

 

NB - Alguns dados deste texto foram retirados do blog «Fio de Prumo», de Manuel Luís de Fraga, filho do irmão mais velho do José Dias                                 

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publicado por picodavigia2 às 10:32

DESCUBRO

Domingo, 09.02.14

“Eu não procuro, descubro.”

Pablo Neruda

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publicado por picodavigia2 às 09:48

A PRIMEIRA CARTA DAS FLORES

Domingo, 09.02.14

Um mês depois da minha chegada ao Seminário Menor, o Carvalho proveniente das “ilhas debaixo”, incluindo as Flores e o Corvo, voltou a escalar Ponta Delgada. Na tarde do dia seguinte, um dos perfeitos circulando por entre as carteiras do salão de estudo, ia distribuindo a correspondência. Num misto de ansiedade e inquietação, aguardava que o prefeito parasse junto à minha carteira… E parou, atirando para cima do tampo envernizado, não uma, mas duas cartas. Uma da minha irmã e outra da minha avó. Para além do remetente, que trazia o nome de meu pai e não o dela, reconheci, num dos envelopes, a caligrafia da minha irmã, muito redondinha, muito benfeita e sem erros, ao contrário do outro sobrescrito, que apresentava o nome da minha avó no remetente, mas escrito com a desajeitada e quase imperceptível caligrafia da minha tia.

Abri, de imediato, a carta da minha irmã li-a e reli-a três vezes, antes de ler a da minha avó:

Meu caro irmão:

Espero que estejas de boa saúde e que tenhas feito uma boa viagem e que estejas a gostar de estar no Seminário. Sentimos muito a tua falta desde que embarcaste, mas agora não há nada a fazer. Oxalá que o ano passe depressa para vires de férias,

Por aqui estamos todos bem. O António e o José lá se vão amanhando sem ti e andam sempre a trabalhar e têm que atender a tudo e o Francisco ainda é muito pequeno e pouco os pode ajudar e para o ano já entra para a escola. A Toucada já deu uma bezerrinha e pai diz que a vai criar para fazer vaca. O José cortou-se num dedo com a foice, enquanto ceifava erva nas Covas. Deitou muito sangue e foi a Senhora Mariquinhas do Carmo que lhe fez o curativo. Os milhos já estão todos desfolhados e já apanhámos o das Furnas e o do Porto. O tio Luís veio ajudar-nos a apanhar o do Porto que este ano deu cinco carradas. Prá semana, se Deus quiser, vamos apanhar o do Mimoio mas este vai dar muito mais trabalho, pois como o corsão não chega à terra, tem que ser acarretado às costas ou à cabeça, até ao caminho. Pai já disse que este ano vamos acarretá-lo para o Calhau Miúdo, porque é mais perto, mas eu não concordei. É que a canada do Calhau Miúdo é muito perigosa, ao descer todos aqueles degraus, carregando os cestos à cabeça ou mesmo às costas. Mas se ele quer assim, há-de se lhe fazer a vontade. Ele depois de tu te ires embora parece que tem andado mais triste e mais preocupado. Temos que lhe fazer as vontades para ele não se arreliar.

Muita gente tem perguntado por ti, por isso espero que este barco traga notícias tuas. Quem vem cá perguntar por ti quase todos os dias é o Jaime do primo Antonino. Também não é de admirar pois vocês andavam sempre juntos. A vizinha São João e a vizinha Rosário e a vizinha Floripes e muitas outras pessoas mandam-te muitos abraços.

Recebe também um grande abraço de todos nós.

Tua irmã.

PS – Esqueci-me de te dizer que até a tua ovelha parece que ficou triste com a tua partida. O Francisco, agora, é que trata dela, mas podes estar descansado que ele trata-a muito bem.

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publicado por picodavigia2 às 09:32

ANOS CINQUENTA – 3ª PARTE

Sábado, 08.02.14

(Continuação)

 

Outra actividade a que se associava mais uma espécie de festa familiar já referida, era o apanhar do milho. Também se iniciava de madrugada com a apanha das maçarocas dos milheiros, a qual, por vezes, até se fazia de noite, sobretudo, quando havia luar. O milho depois de apanhado e colocado em cestos, era acarretado em carros de bois ou nos corsões para as casas e colocado em lugar de honra: na cozinha ou na sala, no caso desta ser muito pequena. Depois todos se sentavam à volta do monte de milho para encambulhar, ou seja, fazer pequenos conjuntos em que as maçarocas eram presas por uma folha, juntando-se umas às outras e amarrando-as nas pontas. Os mais pequenos acarretavam os “cambulhões” para junto do estaleiro, onde os homens mais experientes os iam pendurando de modo a que resistissem à chuva e ao vento, ao longo do ano. O milho que não servia para encambulhar era descascado, o melhor era encambulhado sem casca e pendurado na parte interior do estaleiro ou nas traves da cozinha ou duma casa velha, O restante era debulhado, às vezes posto a secar, e guardado para ser usado em primeiro lugar. O milho das maçarocas mais verdes, ainda a “verterem leite”, era moído em pequenos moinhos manuais ou “pedras de moer” e, com ele faziam-se as tradicionais e típicas papas grossas,. À noite depois de realizado todo o trabalho havia serão, com estórias e jogo de cartas.

Importante acrescentar que decerto não estava alheio a este espírito festivo a importância, quer do porco, quer do milho na alimentação desta população. Era imperioso venerar e festejar aquilo que, quase de forma divinal e misteriosa, era fundamental para a própria existência. Esta dependência das pessoas do porco e do milho, como que se prolongava para além da morte. Dois pequenos factos o comprovam. Primeiro o que acima referi, ou seja o de ninguém na freguesia comer a língua do seu próprio porco, uma vez que a oferecia para as almas. Estas tinham um mordomo que as leiloava e com o dinheiro mandava celebrar missas pelas almas dos defuntos de toda a freguesia. Algo de semelhante acontecia com o milho. Depois da época das colheitas, no dia um de Novembro, mês das almas, o referido mordomo chefiava um grupo de homens que andavam pelas portas de todas as casas da freguesia a pedir o milho para as almas. Cada qual dava uma parte do que havia colhido, consoante quisesse e entendesse. O milho que se recolhia era vendido, tendo o produto de tal venda destino igual ao da língua dos porcos.

Festa familiar também era a do dia em que se ceifava o Bracéu, embora nem todas as famílias a realizassem, simplesmente porque, na década de cinquenta, muitas famílias já não tinham bracéu. Bracéu era uma espécie vegetal, do tipo junco, mas muito mais fino, chamado cientificamente de “Fetusca jubata”, que crescia nas terras do mato, acima da rocha. As famílias que iam para a apanha do bracéu também marcavam o dia, com alguma antecedência e para lá se deslocavam, alta madrugada, com o respectivo e devidamente preparado jantar. Lá passavam o dia, uns ceifando, outros acarretando aos ombros os molhos de bracéu para cima da rocha. Aqui verificava-se um fenómeno muito curioso Estes molhos eram colocados e presos com ganchos num arame grosso, propriedade de todos, que em poucos segundos os fazia deslizar pela rocha até cá abaixo, junto do povoado, onde alguém os ia tirando da verga e arrumando, acarretando-os depois em carro ou corsão para o palheiro ou casa velha, onde devia ser guardado. O bracéu depois de seco destinava-se a fazer cama ao gado no Inverno, substituindo os fetos, que, por vezes, rareavam. Era também com este bracéu que se faziam os pincéis para caiar as casas, mas, neste caso a quantidade necessária era muitíssimo pouca, mas era sempre ir busca-lo ao mato ou pedir a alguém que o trouxesse.

Em relação às festas comunitárias, realizadas na freguesia, pode dizer-se que tinham duas variantes: uma religiosa e outra profana.

As festas religiosas estavam, obviamente, marcadas por padrões religiosos e costumes cristãos comuns a outras regiões do país e eram orientadas por normas canónicas ou litúrgicas e por orientações e decisões do pároco, obedecendo a cânones preestabelecidos. Apenas as festas do Espírito Santo, realizadas nos seis impérios existentes na freguesia, tinham um carácter mais laico, uma vez que o pároco não intervinha na sua orientação e, além disso, adquiriam aqui e em toda a ilha das Flores, matizes próprias e características, diferentes das outras ilhas açorianas, tendo, no entanto, mais de profano do que de religioso. Estas festividades traduziam, fundamentalmente, a pobreza e as carências alimentares da população, para as quais procuravam ser uma resposta. Isto porque na sua génese estavam os jantares de Espírito Santo, que implicavam a distribuição de pão de trigo e de carne pelos pobres, manjares raros nos cardápios diários da maioria da população. Estas festas também adquiriam um cunho notavelmente clubista. A freguesia tinha quatro impérios de adultos e dois de crianças, os quais representavam uma espécie de agremiações ou clubes, destacando-se dois, mais fortes, mais poderosos e maiores e que eram: a Casa de Baixo e a Casa de Cima. Quase toda a população ou pertencia a um ou a outro império, o que implicava uma acentuada rivalidade, fazendo cada um deles a sua festa em dias diferentes, devendo ser sempre maior e melhor do que a do outro, em autêntico espírito competitivo. As festas de cada um dos seis impérios eram precedidas de oito dias de alvoradas e folia, reunindo-se toda a população na sede de um ou outro Império. Os foliões acompanhados por tambor e pratos dançavam diante da coroa, cantando loas e imprecações ao Divino Espírito Santo. A cantoria das alvoradas iniciava-se fora da porta da casa e terminava em frente ao altar onde estavam os símbolos do Senhor Espírito Santo: a coroa e a as bandeiras, uma vermelha símbolo da carne e outra branca a simbolizar o pão. Depois da folia e das Alvoradas iniciavam-se jogos populares variadíssimos, sendo alguns de canto e dança. No dia da festa realizava-se um majestoso cortejo com destino à igreja, precedido pelas coroas e bandeiras de todos os impérios que assim se associavam nas festas, uns aos outros. Depois da missa o cortejo voltava para a sede. De seguida o povo recolhia às suas casas para o jantar. Este jantar fora, porém, cuidadosamente preparado e era parte integrante da festa. Incluía dois alimentos que a população habitualmente não comia: o pão de trigo e a carne de vaca. O pão era mandado cozer pelos “cabeças” da festa e oferecido aos mais pobres. Quanto à carne todos os irmãos de cada império se inscreviam antecipadamente, indicando a quantidade que pretendiam para a festa. Os “cabeças” calculavam, então, a carne necessária e compravam os animais. Estes, na sexta-feira antes da festa, eram conduzidos para o local apropriado, que por isso mesmo recebera o nome de Matadouro, em cortejo e devidamente ornamentados e acompanhados, pelo repicar dos sinos, pelos foliões, pela coroa e bandeiras por muito povo, onde eram abatidos. Na noite seguinte a carne era partida e eram feitos os quinhões de cada irmão ou mordomo. No sábado organizava-se novo cortejo, com coroa, bandeira e foliões e sinos sempre a repicar. Percorriam as casas de todos os mordomos, enquanto meninos e meninas iam distribuindo, em cestinhas e açafates, a carne e o pão. De tarde, depois do jantar, continuava a festa com jogos, arraial, quermesse, bailes, terminando tudo ao anoitecer com as sortes. Para a realização das sortes, ou seja, da escolha dos “cabeças” do ano seguinte, punham-se na coroa bilhetes enrolados, com o nome de cada um dos irmãos que tinham capacidade para serem cabeças. Eram então tirados dois nomes à sorte. Mas podia acontecer algo de insólito: eram os “cabeças” que efectuavam a operação das sortes e se o povo tivesse gostado deles se tivessem feito uma boa e bonita festa, enquanto estavam a tirar as sortes, os presentes tentavam cobri-los com a bandeira. Se o conseguissem antes de saírem as sortes, estas já não se efectuavam, eles seriam os novos “cabeças” para a festa do ano seguinte. A festa terminava com o levar as sortes, isto é, com uma visita a casa dos novos “cabeças” com coroa, bandeia e foliões. Esta festa podia repetir-se várias vezes durante o ano no mesmo império, embora com matizes diferentes. Isto acontecia quando alguém, geralmente um “calafona”, prometia e dava um jantar. A festa repetia-se quase nos mesmos moldes, só que, neste caso, não eram os irmãos a pagar a carne, mas sim aquele que tinha prometido o jantar.

Outras festas religiosas importantes eram a da Senhora da Saúde, uma das maiores da ilha das Flores, a do padroeiro, São José e ainda outras menores como a de Santo Amaro, da Senhora do Rosário, a do Senhor dos Passos e a de Nossa Senhora do Carmo, na ermida do lugar da Ponta.

 Das festas estritamente profanas e ligadas ao trabalho, era digna de menção o Fio, ou seja, a tosquia colectiva dos ovinos. Estes eram criados em conjunto na zona do “concelho”, grande espaço comunitário de pastagens no mato, onde se juntavam indistintamente todas as ovelhas do povoado. A festa também tinha à sua frente dois “cabeças”. Estes antecipadamente faziam anunciar o dia do Fio, duas vezes por ano, uma em Abril e outra em Setembro, geralmente através de um edital colocado à porta da igreja. Na véspera preparava-se o jantar ou a merenda e amolavam-se as tesouras para a tosquia. No dia de manhã, bastante cedo, os primeiros a partir para o mato eram os homens. As mulheres e as crianças seguiam mais tarde, subindo a rocha em autênticos bandos. No povoado ficavam apenas os velhos, os doentes, as crianças de berço e quem não possuía ovelhas. As mulheres levavam à cabeça os cestos com os alimentos para todo o dia. Os homens, ajudados pelos cães e orientados pelos “cabeças”, distribuíam-se em grupos, por uma ampla zona, fazendo cerco às ovelhas, conduzindo-as e juntando-as todas num curral apropriado - o Curral das Ovelhas, que dera nome ao local onde se situava. Quando aí chegavam com o enorme rebanho, já os esperavam as mulheres e as crianças. Todos se sentavam sobre a erva, em lugares previamente escolhidos e nos quais haviam de permanecer até ao fim do dia. Terminada a primeira refeição, os homens saltavam para o curral a fim de que cada um procurasse as suas ovelhas que eram identificadas através de sinais convencionais que lhes tinham sido marcados nas orelhas. Cada chefe de família tinha o seu sinal, diferente dos outros todos, distribuído pelos “cabeças” e guardado por estes, a fim de não haver confusão e, assim, cada um identificar apenas e tão só os seus animais. Exemplifiquemos um destes sinais: orelha direita – forcada e troncha; orelha esquerda – troncha fendida com três moças.

Uma vez escolhidas e retiradas as ovelhas do curral, seguia-se a tosquia, finda a qual os animais eram soltos e enviados para o “concelho”, de novo. No curral apenas ficavam os que não tinham sinal, ou seja, as crias pequeninas e algum animal adulto, nunca assinalado e que não era de ninguém. Estes eram arrematados, ficando o dinheiro para a organização. Os cordeirinhos eram identificados pelas próprias mães. Era a petizada que de tal se encarregava. Se uma ovelha desse leite, tinha cria. O dono assinalava-a com uma peça de roupa e colocava-a de novo no curral, sob a vigilância, geralmente, de um filho mais novo. Dentro em pouco a cria procurava a mãe para mamar e logo eram apanhadas: mãe e cria. Esta, então, era assinalada nas orelhas com o sinal do dono, ficando apta a ser identificada nos próximos Fios. Terminada a tosquia todos regressavam a casa, desta feita em conjunto. A freguesia povoava-se de novo e em quase todas as casas berrava um carneirinho que seria refeição nos dias seguintes.

Outra festa, ou melhor outro trabalho festejado era o sargaço, cuja efectuação, no entanto, dependia do mar. Algumas vezes, durante o ano, certas marés traziam para a costa enormes quantidades de algas marinhas que tinham grande utilidade para estrumar e adubar os campos. A sua recolha era feita quase como se fosse uma festa. O Rolo, onde saía o sargaço, era dividido aos pedaços e assinalado pelos que primeiro iam chegando. Mas tinha que dar para todos. Cada qual, munido de um garfo de tirar esterco dos palheiros, tirava o sargaço no seu sítio, conforme podia, por vezes esquivando-se às ondas bravias, para um monte onde o mar não chegasse e donde mais tarde seria acarretado para os “lagos”, às costas e em cestos, num contínuo vai e vem do qual resulta um extraordinário espectáculo de movimento e cor. Aí se passava o dia, aí se jantava e aí se ceava, prolongando-se a azáfama pela noite dentro, transformando o espectáculo numa movimentação sublime de luzes e luzinhas que se reflectiam na tranquilidade das águas do Atlântico.

Outra festa estritamente profana, mas não ligada ao trabalho, era o “Intrude”, que durava três dias. Eram célebres as danças realizadas nesses dias.

Eram estas festas de trabalho ou às quais o trabalho se associava ou talvez ainda mais correctamente, este dar-se ao trabalho um sentido de festa que, juntamente com as restantes festividades religiosas que, de alguma forma destruíam e destronavam o isolamento e a monotonia do quotidiano desta população. Começando a trabalhar, geralmente, antes do amanhecer e até muito depois do pôr do Sol, estes homens e estas mulheres eram limitados por natureza e sentiam que algo lhes faltava. Daí a necessidade de criarem ainda outros meios de lazer e outras formas estruturais de sociabilidade que ultrapassassem, sobretudo em frequência, as próprias festas. Era aqui que tinham grande significado os serões, sobretudo os das longas noites de Inverno, nas casas uns dos outros. Fazer serão, em casa de um amigo ou de um parente ou familiar era um hábito corrente. As mulheres, numa quase perfeita cadeia de moderna montagem industrial, trabalhavam a lã em série: umas depenicavam-na retirando-lhe a sujidade, outras cardavam, outras fiavam e outras dobavam-na em novelos. Os homens geralmente deitavam-se cedo e quando o não faziam, jogavam às cartas. Também se contavam estórias maravilhosas e fantásticas, rimances antigos em forma de poesia ou então narravam-se as antigas viagens por terras da América. Às vezes, até se cantava.

Sair à noite sozinho, porém, era perigoso, sob o ponto de vista de “medos” e pouco aconselhável. Só os mais “anamudos” o podiam fazer, isto porque “as almas do outro mundo” proliferavam por toda a parte e apareciam, a torto e a direito, por tudo o que era sítio escuro. Já muitos as haviam visto e contavam-se coisas terríveis e tenebrosas que a todos assustavam. Nos serões muitas destas histórias eram repetidas vezes sem conta. A meia-noite era a hora pior e a mais perigosa, pois era a hora do diabo. Este era mesmo designado pelo epíteto de “o que anda â meia-noite”. O seu nome nunca devia ser pronunciado, por isso também era designado pelo “não dei que diga”, o “coiso mau”, o “cão da noite”. Invocava-se Lúcifer, sem no entanto pronunciar o seu nome. “Entregar”, isto é, dizer o nome do diabo ou chamar diabo a alguém era uma palavra feia, proibida de ser pronunciada por uma criança, um pecado muito grave. Na origem das estórias contadas, estava geralmente a aparição do próprio diabo.

Que sofrida que era a vida desta gente. Sacrifícios e mortificações faziam parte do seu quotidiano e consubstanciavam-se de forma permanente e contínua com o viver deste povo. Esta vida sofrida talvez também tivesse alguma relação com os medos e com as crenças do além que povoavam o seu imaginário. Uma das manifestações desse sentimento de sacrifício, perdão, ou até de expiação, de que a igreja e o clero tinham a sua cota parte de responsabilidade, estava exemplificada no “cantar no Outeiro”. Tratava-se duma cerimónia de cariz religioso, muito curiosa e interessante, em que directa ou indirectamente se envolvia toda a população, realizada todas as segundas, quartas e sextas-feiras da Quaresma. Nesses dias, por volta das nove horas da noite, um grupo de homens, alguns já de avançada idade, dotados de boa voz e ainda melhores pulmões, quer chovesse ou fizesse vento, subiam o Outeiro sobranceiro à freguesia e de joelhos, junto a uma cruz que ali ainda existe, cantavam em altas vozes, orações apropriadas e antigas. Pediam a Deus clemência para os infelizes e abandonados, perdão para os pecadores, porto de salvação para os perdidos no mar, auxílio para os desamparados, saúde para os doentes e salvação para os agonizantes. As suas fortes vozes faziam-se ouvir ressonantes sobre as casas da freguesia e, por isso, ao mesmo tempo, todas as pessoas ajoelhavam nos seus lares e em silêncio iam acompanhando as preces dos cantores, intercalando-as com orações de acordo com as suas ordens. Só terminado o canto se voltava à conversa.

Muitas expressões, provérbios e adágios deste povo, permitem ajudar a compreender esta específica e muito especial a maneira de ser bem como as agruras, as atrocidades, o sofrimento e o trabalho árduo do seu dia-a-dia.

Eram estas, em linhas gerais, as características duma população situada quase no meio do mar, apesar de pouco influenciada por ele, que até ao início dos anos cinquenta mantinha uma idiossincrasia, própria e específica de um povo cujo quotidiano era dominado pela insularidade e, dentro desta, por um isolamento que quase a fazia única no contexto insular açoriano.

Tudo isto, porém, a partir de meados da década de cinquenta, aproximar-se-ia do início do seu fim. Grandes e importantes transformações se verificaram, a todos os níveis, no viver, no sentir, nos costumes e, sobretudo, nos anseios e aspirações desta gente, perdendo-se assim, no entanto, uma originalidade de vida, uma pureza de costumes e uma singularidade vivencial que, não sendo única, pelo menos era rara. Vários foram os factores que contribuíram para tal mudança, sendo de destacar como mais importantes os seguintes:

1) O grande surto emigratório para os Estados Unidos e para Canadá, verificado a partir da década cinquenta, uns por que encontraram no fundo dos baús e de velhas gavetas os tão almejados “papeles” que os seus antepassados, outrora, haviam obtido naqueles países e lhes garantiam a entrada no novo “el-dorado, outros por carta de chamada que os parentes lhes faziam.

2) A chegada da Telefonia e Rádio, que a partir dos finais dos anos cinquenta começa a ser uma presença continua em todas as casas.

3) A construção duma estrada, aparentemente e outrora quase impossível, ao longo da rocha e que passou a ligar este povoado ao resto da ilha, também nos finais da década de cinquenta.

4) A implantação de uma fábrica de Agar-Agar nos Açores, cuja matéria-prima, as algas, passaram a ser compradas a preços muitíssimo altos. Muitos dos habitantes da freguesia abandonam por completo a agricultura, alguns vendendo as próprias terras para se dedicarem à apanha e recolha das algas, das quais outros se tornam intermediários, arrecadando sofríveis fortunas.

Em menos de cinco anos, o progresso, a técnica, o desenvolvimento industrial e a emigração transformaram totalmente esta micro sociedade, fazendo-a abandonar e até esquecer alguns dos seus usos e costumes, uma boa parte da sua própria cultura, impondo-lhe um ritmo, uma maneira de ser e de viver quase totalmente diferente da antiga e primitiva

Era uma sociedade agrícola que sentia aproximar-se o princípio do seu fim e o início da sua passagem a uma quase sociedade industrial. Essa mudança, porém, será longa e morosa.

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ANOS CINQUENTA - 2ª PARTE

Sábado, 08.02.14

(Continuação)

 

Paralelamente à agricultura e dela dependente mas também ajudando-a estava a pecuária. No que respeita aos bovinos, a sua criação, na Fajã Grande, adquiria foros de originalidade impar no arquipélago açoriano. O calor excessivo que se fazia sentir ao longo do verão, proveniente da concentração e incidência do Sol na rocha e da sua projecção sobre o povoado, não permitia a permanência dos animais, sujeitos a um calor excessivo, durante o dia, nas relvas, daí a necessidade de ser guardado nos palheiros os quais, na maioria dos casos, se situavam na loja ou parte baixa da habitação. Apenas durante a noite o gado podia ficar ao ar livre, nas relvas, pelo que todos os dias, à tardinha, era conduzido às relvas e de madrugada recolhido aos estábulos. No inverno, passava-se, precisamente, o contrário: o gado era conduzido às pastagens de manhã e recolhido aos palheiros à noite, a fim de ser poupado aos rigores invernosos, às tempestades e aos temporais. Assim ajudava também a aquecer a casa nos friorentos dias de inverno. Esta espécie de transumância traduzia-se numa enorme protecção dada aos animais, sobretudo, às vacas leiteiras. Por outro lado, esta constante movimentação do gado fazia com que se processasse nas várias ruas e caminhos da freguesia, uma agitada e quotidiana azáfama, em que os bovinos, ornamentados com as suas campainhas de harmoniosos e diversíssimos sons, penduradas ao pescoço, davam ao povoado um maravilhoso e inédito espectáculo de movimento, de cor e de som. Curioso era o facto de estas campainhas serem diferentes, no que ao som dizia respeito, variando de proprietário para proprietário e, entre estes, de animal para animal. Neste caso os sons agrupavam-se, geralmente, em pares cuja agudeza se relacionava com o lugar que o animal ocupava durante os trabalhos agrícolas ou no puxar do carro ou corsão. Assim o animal que trabalhava do lado direito (os animais eram eximiamente ensinados a trabalhar desde de pequenos) usava uma campainha com o som mais agudo do que a do animal que trabalha pela esquerda. Este era consequentemente um animal mais calmo, mais tranquilo, mais vagaroso e quando caminhava em fila tinha a tendência a seguir em último lugar, enquanto o seu parceiro mais vivo, mais rápido, mais “triqueiro”, caminhava à frente. A vantagem de tal diferença verificava-se sobretudo na lavoura, dado que os campos eram lavrados no sentido contrário ao dos ponteiros de um relógio, o que fazia com que fosse o animal da direita a contornar as paredes e cantos e a movimentar-se mais rápido. A agudeza do som provavelmente provocaria um efeito psicológico persuasivo em cada animal.

O acarretar dos produtos agrícolas e dos alimentos para os animais, quando não às costas, era feito em carro de bois ou, mais frequentemente, em “corsão”. Este era típico da freguesia e consistia num conjunto de dois grossos e trabalhados paus, ambos com uma espécie de proa, à maneira dos barcos, unidos por diversas travessas, deslizando sobre os próprios paus ou sobre duas “alabaças”  ou seja duas tiras de madeira colocadas por de baixo dos mesmos e substituíveis quando gastas. A ele se prendiam os animais por um processo semelhante ao dos carros. Sobre ele se colocam os produtos que se pretendiam acarretar, segurados pelos fueiros, sendo estes presos a meio da sua altura, com a “atiradeira” e a carga amarrada com os “cabos”, os quais eram apertados com os “trambolhos”: um direito que se enfiava na carga e outro torto que se ia enrolando â volta do primeiro para apertar bem o cabo. Todo este esquema era substituído por uma “sebe” feita de vimes, para acarretar produtos como o milho, as batatas, os inhames e o estrume.

O trigo era pouco e cultivava-se apenas nas terras próximas do mar. A sua apanha processava-se de forma muito diferente da do milho, mas ambas obedeciam a um ritual interessante e com alguns resíduos de um sistema de trabalho comunitário. Estes dias, apesar de dias de trabalho árduo, tinham um certo sentido de festa. O trigo, uma vez ceifado, era levado para a eira onde se procedia à debulha, a qual era feita com uma grade própria, que rodava à volta de um moirão de ferro espetado no meio da eira, puxada por dois animais “encangados”. A eira era dos poucos espaços de uso comunitário, existentes na Fajã Grande. A sua utilização obedecia a um calendário. A família que apanhava o trigo e os amigos e familiares que a ajudavam faziam uma autêntica festa, não faltando o almoço na eira.

O milho, ao contrário do trigo, depois de apanhado, era levado para as próprias casas e colocado em lugar de honra: na cozinha ou na sala. Depois juntavam-se os amigos, os familiares e um ou outro vizinho para ajudar a “encambulhar”, isto era, a juntar as “maçarocas” com a própria casca em conjuntos, puxando uma fita de casca mais resistente de cada maçaroca, enrolando-as em conjunto nas pontas e, por fim amarrando-as com um fio de espadana, formando os “cambulhões” que eram pendurados nos estaleiros, para tal construídos, geralmente na courela, junto da casa, também chamada “terreno da porta”. Apenas e à medida que ia sendo usado ao longo do ano, lhe era tirada a folha ou casca. A apanha do milho, produto fulcral na alimentação de pessoas e animais também era um dia de festa. 

A criação do porco por cada família também era fundamental para a sua sustentabilidade alimentar. Criado num curral junto de casa, o porco alimentava-se com restos de comida da cozinha que se iam juntando no “balde do porco”, utensílio obrigatório em todas as habitações.

Para além da agricultura e da pecuária não existiam outras actividades de relevo ou de interesse na economia fajãgrandense. Todos os habitantes da freguesia, geralmente, eram agricultores e criadores de gado, incluindo os que eventualmente se dedicavam a outras actividades, sobretudo as de carácter artesanal e que eram as estritamente necessárias. As únicas excepções eram os “serviços” que se resumiam ao pároco, ao professor, ao faroleiro e aos comerciantes, sendo que alguns destes também se dedicavam à agricultura. As actividades artesanais eram poucas e ninguém a elas se dedicava em regime de exclusividade. Estas actividades estavam distribuídas individualmente, havendo apenas um sapateiro, um latoeiro, um relojoeiro, um barbeiro, um relojoeiro e um ferreiro que ao mesmo tempo eram agricultores. Apenas carpinteiros havia mais do que um, mas nenhum em regime de exclusividade. O seu serviço, por vezes era pago em dias de trabalho. Apenas o comércio se distribui por alguns proprietários. A pesca poderia ser uma actividade importante mas, na altura, não o era, provavelmente devido à riqueza do subsolo e ao contínuo mau estado do mar e aos temporais que assolavam a freguesia com frequência. Os poucos pescadores que existiam também eram agricultores, pois embora houvesse abundância de peixe no mar, cada qual podia ir pescar para si. A única pesca digna de tal nome é a da baleia.

A pesca da baleia efectuava-se apenas no Verão. Para a freguesia deslocavam-se uma lancha e os botes, alguns vindos das Lajes, trazendo umou outro baleeiro especializado, sobretudo os mestres dos botes. Os interessados em arrear nesse ano inscreviam-se. Um vigia colocava-se, diariamente, no cimo de um monte, onde havia sido construída uma casota adequada, chamada vigia. Com um potente binóculo e com o seu ajudante, desde de o amanhecer até à tardinha, olhavam permanentemente o mar à procura de baleia. Quando alguma aparecia à tona de água, atirava, imediatamente, um foguete ou uma bomba se fosse cardume. Toda a freguesia se alvoroçava. Os homens baleeiros e outros por simples curiosidade ou para ajudar no arrear dos botes, encaminhavam-se apressadamente para o Porto. As mulheres corriam atrás com os sacos da comida: pão de milho, queijo, uma torta de ovo ou conduto de porco e café. Vinho havia pouco na freguesia e tinha que ser comprado nas lojas. Uma vez no mar, botes e lancha navegavam na procura da baleia. Os botes eram orientados por um pano branco que o vigia e o seu ajudante colocavam aqui ou acolá, indicando o presumível local do mar em que o cetáceo havia sido avistado. Se a baleia fosse apanhada tinha que ser levada à fábrica, na Vila, sendo a ausência dos baleeiros mais prolongada, mas, em contrapartida, compensada com maior ganho, uma vez que os baleeiros eram pagos às soldadas.

As actividades artesanais, em geral, também não tinham grande significado económico, mas eram várias e diversificadas. Geralmente cada família fabricava o que necessitava. Apenas os artigos de sapataria como galochas e chinelos eram fabricados pelo sapateiro, que também procedia ao restauro e amanho do calçado. As latas, fundamentais para o transporte do leite, bem como objectos de carpintaria e poucos mais eram fabricados por especialistas. As mulheres que em muitos casos ajudavam na vida agrícola, dedicavam-se, nas horas vagas, às rendas e aos bordados, para uso pessoal ou aos trabalhos de preparação da lã: cardar, fiar e tecer. Trabalhos em vimes, incluindo mobiliário, cestos e sebes para os carros e corsões, também eram fabricados por um ou outro especialista. Os capachos de casca de milho ou de espadana e chapéus de palha eram feitos por quem os havia de usar ou por um seu familiar ou parente. O único produto, considerado talvez mais industrial do que artesanal, embora uma indústria extremamente rudimentar e que a freguesia comercializa e até exportava era a manteiga. Era fabricada apenas por um trabalhador, numa espécie de zona industrial situada no lugar do Alagoeiro. Ali havia a casa da manteiga, na qual trabalhava apenas um funcionário, com a colaboração do latoeiro e de um carpinteiro que trabalhava num casebre mais pequeno, ao lado do primeiro. Na recolha e desnatação do leite, nas máquinas, trabalhavam dois funcionários, mas apenas duas horas de manhã e outras duas à tarde. O queijo, produzido em grande quantidade, era fabricado apenas para uso caseiro, assim como o pão que era cozido por cada dona de casa, dado que geralmente cada cozinha tinha o seu forno. Quando comercializados estes produtos eram-no, através de troca directa que se traduzia geralmente na troca de um produto por um outro equivalente ou por um determinado tempo de trabalho agrícola ou então por produtos agrícolas, mais concretamente por milho. Na Fajã Grande, um dia de trabalho equivalia a um alqueire de trigo e este a dezasseis ou dezassete escudos.

A administração da freguesia, em primeiro lugar e teoricamente, estava dependente do Administrador do Concelho, mais vulgarmente conhecido por presidente da Câmara, neste caso da Câmara Municipal das Lajes, autarquia a que a Fajã Grande pertencia. No entanto, dado o isolamento verificado e a escassez de meios de vias de acesso e de transporte, a administração da freguesia era da responsabilidade do presidente da Junta que, simultaneamente, também era Juiz de Paz. Estes cargos, praticamente, eram vitalícios e quase, tendencialmente, hereditários. Por sua vez, a administração da justiça era feita pelo Regedor, figura respeitável e como que temida por todos e que detinha poderes para prender, quem disso fosse merecedor.

Nos anos cinquenta, na freguesia da Fajã Grande, eram ainda extremamente palpáveis vestígios de uma gerontocracia, outrora, porventura mais enraizada e com forte peso administrativo, como é próprio das sociedades agrárias. Mantinha-se ainda o costume de, nos momentos de grandes decisões ou de difíceis contendas, se chamar um ou mais homens mais velhos, carinhosa e docemente tratados por “Ti”. Na realidade, permanecia ainda o hábito da chamar um ou mais “homem velho”, por exemplo, a quando das partilhas de uma herança ou da demarcação dos limites de uma propriedade, ou ainda por questões de água. As questões de água eram frequentes, pois correndo a água em regos com destino a várias propriedades, por vezes era cortada por um, prejudicando outro. Era geralmente um “homem velho” conhecedor como ninguém dos usos e costumes da terra que era chamado para resolver estas questões, para dizer quem tinha razão e o que devia ser feito. Muitas destas questões de água, relacionavam-se com os moinhos que proliferavam nas margens da Ribeira das Casas. Movidos a água, estes moinhos tinham uma engrenagem bastante complicada, à base da movimentação de rodas dentadas. Eram explorados por proprietários particulares a quem os outros pagavam a maquia para terem as suas “moendas” de milho transformadas em farinha.

Nesta sociedade, mão havia, na verdade, uma divisão social. Mas havia um grupo de famílias dominante, mais ricas e poderosas, vulgarmente designadas pelos “quarenta maiores”. Eram os mais importantes, mais respeitados, os que mandavam em tudo, que estavam à frente de tudo, que detinham maior poder económico, que levavam os andores nas procissões, que eram os “cabeças” das festas, enfim, os que punham e dispunham de tudo e de todos. Isto criava, necessariamente, uma certa divisão social que se manifestava em certas guerrilhas originadas a partir de outras questões mas que eram, ao fim e ao cabo, fruto de tal desigualdade. Três pessoas, porem, se distinguiam, de sobremaneira, neste micro universo social: o pároco, o professor e o faroleiro. A sua abastada situação económica comparativamente com a maioria da população, a não necessidade de se dedicarem à agricultura e à criação de gado, dava-lhes um estatuto especial, aureolando-os com uma situação de privilégio e bem-estar, de bem vestir e descansar, a todos os níveis invejáveis. Mas como eram necessários a todos com as suas actividades e como toda a freguesia lhe devia favores, todos lhes enchiam as casas do necessário para os alimentar abastadamente. Eles como que também eram uma espécie de factor de produção nesta sociedade. Extremamente isolada da restante parte da ilha e, sobretudo, do mundo, a população da Fajã Grande tinha que criar os seus passatempos e distracções, os seus jogos e brincadeiras, os seus momentos de lazer. Tinha que procurar aliciantes, por um lado, para aliviar o seu árduo, difícil e cansativo trabalho quotidiano e, por outro, para ocupar os seus raros e escassos tempos livres. O trabalho agrícola era muito duro, pois grande parte das colheitas e alimentos dos animais e dos homens eram acarretados aos ombros dos homens ou à cabeça das mulheres. Eram os molhos enormes e pesadíssimos, os cestos a abarrotar e os sacos cheíssimos que os homens acarretavam às costas e as mulheres à cabeça, muitas vezes debaixo de chuva torrencial, outras, assolados por tempestades e ventos fortíssimos. O burro era monopólio dos mais ricos e os bovinos destinavam-se, sobretudo à produção de leite. Era preciso poupá-los, porque, quando encangados, a puxar o carro, o corsão ou o arado, a produção de leite diminui, levava-se menos para máquina e entrava menos dinheiro em casa. Daí que o homem se tornasse num autentico “animal de carga”, para além de ainda executar todas outras tarefas agrícolas: cavar, sachar, semear, ceifar erva, fetos e cana roca, etc. Deste árduo e difícil trabalho surge a necessidade desta sociedade criar por si formas de lazer. Primeiro surgiam as de carácter familiar, as que cada família realizava na sua própria casa e que se resumiam praticamente aos dias a matança do porco e a apanha do milho. O porco e o milho, juntamente com o leite, eram a base da alimentação e, por isso, os seus dias maiores são dignos de festejos. Transformavam-se assim, os dias de trabalho em dias de festa. Não havia festejos de aniversários, nem datas comemorativas ou o que quer que fosse. Nos próprios dias das grandes festas religiosas e nos domingos e dias santos havia mesmo que realizar algumas tarefas obrigatórias, como tratar do gado, tirar-lhe o leite, levá-lo à máquina, bem como tratar do porco e das galinhas. A matança do porco tinha um ritual interessante e uma duração bastante prolongada. Primeiro marcava-se o dia, dentro de uma espécie de calendário muito tempo antes estabelecido e que tinha em conta as matanças dos outros, sobretudo dos que haviam de ser convidados. Depois, convidavam-se os parentes, os vizinhos e os amigos, serrava-se e rachava-se a lenha para derreter os torresmos e afoguear as linguiças, iam apanhar-se as queirós ao Mato para o chamusco e cortava-se a cana roca para enxugar o curral, guardando-se as folhas mais verdes e mais frescas para colocar debaixo da carne. O ritual da matança propriamente dita, iniciava-se na véspera, com o amolar das facas e o picar das cebolas, tendo-se antes adquirido e comprado tudo o necessário para um acto de tal import¬ância, nomeadamente o sal, os temperos, uma ou duas garrafas de aguardente “Cinco Estrelas”, jocosamente designada pelo “chichi do porco”. No dia da matança todos se levantavam muito cedo. Como ainda era Inverno, acendiam-se todas as luzes, lanternas e candeias existentes na casa. Nas primeiras o combustível já era o petróleo, nas candeias, colocadas exclusivamente na cozinha, a enxúndia de galinha. O porco era apanhado no curral, ainda de madrugada e conduzido à mesa da imolação. Metia-lhe a faca o homem com mais experiente, uma espécie de profissional da modalidade. Tratava-se duma faca enorme, muito bem afiada, exclusiva e própria para este acto e que era conhecida por “faca bengala”. Acrescente-se que esta designação, muito provavelmente não seria alheia a uma outra que se usava para designar os bovinos exportados para Lisboa e que era a seguinte: “Iam ver os senhores de bengala”, expressão que designava o destino do animal: morrer para alimento dos senhores ricos de Lisboa, “senhores de bengala”. Daí que a morte dos animais ou a matança se ligasse à bengala. Enquanto o matador efectuava a delicada operação de enfiar a faca certeira no cachaço do suíno, depois de bem lavado, os outros homens seguravam o animal de maneira a que não escapasse. As mulheres com os seus aventais novos e apropriados e alguidar em punho, aparavam o sangue para as morcelas. De seguida iam preparar o jantar, a seguir ao qual, faziam as morcelas, depois de lavarem muito bem as tripas, na Ribeira, esfregando-as com ervas aromáticas e laranjas azedas. As morcelas eram um misto de sangue, cebola e arroz cozidos, a que se juntava um pouco de gordura da barriga. Os homens, depois de o chamuscarem, rasparem e lavarem muito cuidadosamente, abriam o porco de cima abaixo, primeiro pela frente, tirando-lhe as vísceras e, de seguida, pelas costas para que arrefecesse, tarefas também feitas por um especialista e “desfranchavam-no” de seguida. De tarde enquanto as mulheres continuavam a trabalhar na cozinha, os homens jogavam às cartas e os rapazes à bola com a bexiga do porco. À noite, depois da ceia, em que já se comiam morcelas e caçoila, havia serão com “estórias” e jogo de cartas. Passados três dias faziam-se as linguiças, picava-se a carne, temperava-se com azedas e outros temperos, enchiam-se as tripas finas e depois afogueavam-se ao longo de vários dias, sobre o lar, dentro da própria cozinha. Uma vez frita, estava pronta a comer, sendo as restantes guardadas juntamente com os torresmos, debaixo de banha. Só então termina a festa da matança.

Acresce dizer-se que havia uma tradição na freguesia, segundo a qual cada família não devia comer a língua do seu porco, antes devia oferecê-la pelas almas seus parentes e e todos os defuntos. Assim as línguas eram levadas para a igreja e arrematadas aos domingos, depois da missa. O dinheiro resultante do leilão destinava-se a celebrar missas pelas almas.

 

(Continua)

 

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ANOS CINQUENTA – 1ª PARTE

Sábado, 08.02.14

Quando fiz o estágio pedagógico, integrei um grupo, cujos elementos eram oriundos das mais diversas regiões e localidades. Na altura o referido estágio, condição necessária para se obter a profissionalização no ensino e concorrer aos chamados lugares efectivos do quadro das escolas, chamava-se “profissionalização em exercício” e tinha a durabilidade de dois anos. Para além da componente lectiva, a “profissionalização em exercício” implicava duas outras vertentes de actividades que deviam constar nos planos individuais de trabalho de cada formando: a escola e a formação. Relativamente a esta, exigia-se a cada estagiário que apresentasse ao longo de dois anos, uma série de trabalhos de estudo, pesquisa e aprofundamento de alguns temas relacionados com as disciplinas que leccionavam, que seriam apresentados semanalmente, alternando-se, obviamente, a participação dos vários estagiários.

Por sugestão de alguns estagiários, com a aprovação do Orientador, dado que os elementos do grupo, na realidade, pouco conheciam dos mais remotos recônditos rurais açorianos, foi-me proposto que, numa das várias sessões semanais destinadas à formação que eu devia orientar, apresentasse uma síntese em que lhes desse a conhecer aquilo que eram os Açores, na sua pureza original, na sua ruralidade mais genuína, descortinando um pouco dos seus costumes, tradições, vivências, actividades, etc. Com esse objectivo, elaborei, na altura, um pequeno texto sob o título em epígrafe, através do qual tentava dar a conhecer aos outros estagiários, um pouco da vida, dos costumes, do trabalho, das tradições, das pessoas e suas vivências, numa das mais singulares e genuínas freguesias dos Açores e, talvez de Portugal, nos anos cinquenta – a Fajã Grande, a minha freguesia de origem.

Na altura ainda não tinha sido generalizado o uso do computador, sendo o trabalho “batido” no teclado duma velhinha máquina de escrever, pois dele tinha que “dar prova provada” no dossier que nos era imposto organizar. Há dias encontrei-o no meio de outras papeladas, Trata-se de um texto de cerca de quinze páginas, escrito em Maio de 1983. mas que, na realidade, se enquadra perfeitamente dentro da temática proposta para o bem mais recente blogue “Pico da Vigia”.

Decidi passá-lo no computador, dar-lhe alguns retoques, fazer uma ou outra correcção, dividi-lo em capítulos a que dei um título e divulgá-lo no Pico da Vigia, durante o mês de Fevereiro, dando assim uma sequência integral a um texto que, apesar de prolixo e sintetizador, se publicado globalmente, correria o risco de se tornar maçador e pouco atraente.

Situada no Oceano Atlântico, integrando, juntamente com a ilha do Corvo, o grupo ocidental do arquipélago dos Açores, a ilha das Flores constitui a última e a mais ocidental parcela do Continente Europeu, sendo a longitude do seu ponto mais ocidental – a ponta do Baixio na Fajã Grande – de 31º 16’ e 15’’, ou seja, a máxima da Europa.

Pouco se sabe sob a sua descoberta, onde a lenda se mistura com a história. Se representa um dos últimos resíduos da Atlântida, se por ela passaram os Fenícios, se até ela chegaram os lendários “maghuri” referidos por Abu Abdala hMohamed Ibne Idrisi, no seu livro “Al Rojari”, do século XII, se foi descoberta, como confirmam vários historiadores, entre os anos de 1317-1399, altura em que já aprece desenhada em Atlas e Portulanos diversos, não está ainda suficientemente esclarecido.

Certo, certo, porém, é que a ilha das Flores já vem referida no testamento do Infante Dom Henrique, de 13 de Outubro de 1460, embora com o primitivo nome de “Ilha de São Tomás”. Em 1475, no entanto, numa carta de doação de D. Afonso V já é chamada de “Ilha das Flores”, designação que também incluía a actual ilha do Corvo, na altura considerado como um ilhéu das Flores. A designação de “Ilha das Flores”, para designar exclusivamente a ilha que actualmente mantém esse nome, é do tempo de D. João III.

Em relação às restantes ilhas do arquipélago, com excepção do Corvo, o povoamento da ilha das Flores parece ter-se processado bastante mais tarde e ter-se-á encetado com um flamengo de nome Guilherme Van der Haegan da Silveira, provavelmente entre 1481 e 1485, acabando este por abandonar a ilha ao fim de oito anos de ali permanecer, devido ao isolamento e dificuldades de comunicação.

O segundo e definitivo povoamento ter-se-á feito por volta de 1510, estando à sua frente João da Fonseca, acompanhado por gente do norte do país, mais concretamente do Minho e talvez de alguns açorianos que já se haviam fixado noutras ilhas do arquipélago. O primeiro povoamento ter-se-á verificado nas zonas costeiras de Santa Cruz, Lajes e Ponta Delgada. Mais tarde, alguns colonos, atravessando a ilha, apesar de extremamente montanhosa, desceriam as rochas que delimitam a zona das Fajãs, do lado poente, e fixar-se-iam numa das zonas mais férteis da ilha e que, exactamente, por ser uma zona de terras baixas, junto ao mar e rodeada por altas rochas, recebeu o nome de “Fajãs”. Seria a quarta povoação da ilha, em importância, adquirindo em 1676 o estatuto de freguesia. Tratava-se, porém duma povoação dividida em dois grandes aglomerados populacionais, entrelaçados por meia-dúzia minúsculos lugares povoados, geograficamente distintos e que só em 1861 se haviam de separar administrativamente, originando assim duas freguesias; Fajãzinha e Fajã Grande. O lugar da Ponta, até 1676, pertencia à freguesia de Ponta Delgada, da qual foi separado a quando da criação da freguesia das Fajãs, passando, a partir de 1861 a fazer parte da freguesia da Fajã, assim como a Cuada. É o lugar que, apesar de não ser a sede inicial da freguesia das Fajãs, adquire, a quando da divisão, o qualificativo de “Grande”, enquanto para a antiga sede da freguesia, onde inclusivamente se situava a igreja matriz, de grande dimensões, ficou reservado o sufixo diminutivo.

Crê-se que entre as primeiras pessoas que ocuparam o actual solo da Fajã Grande, provavelmente a chefiá-las, se encontrava o casal, ele, Gomes Dias Rodovalho, ela, Beatriz Lourenço Fagundes.

Ocupando quase metade do território de toda a freguesia das Fajãs, que incluía também os lugares do Mosteiro, da Caldeira, da Ponta, da Cuada e ainda os actualmente desabitados lugares da Ribeira da Lapa, da Fajã dos Valadões, do Pico Redondo e de Pentes, a actual freguesia da Fajã Grande tinha a delimitá-la das freguesias vizinhas, pela vertente norte e este, uma rocha de uma altura média de mais de 300 metros, que a separava da freguesia de Ponta Delgada e da Vila de Santa Cruz, A sul, estava separada da Fajazinha pela Ribeira Grande, o maior e mais caudaloso curso de água da ilha das Flores. Finamente, do lado oeste ficava o mar. Daí um isolamento total e absoluto. As deslocações para fora da freguesia, nomeadamente para a sede do Concelho, a vila das Lajes, eram morosas e difíceis. Para Santa Cruz não havia caminhos directos, fazendo-se o trajecto pela rocha e pelos matos. Há relatos antigos de que muitas das pessoas que faziam essa travessia, ao chegar à caldeira da Água Branca, atravessavam-na numa jangada, não tanto para encurtar caminho mas sobretudo para descansar de tão longo e sinuoso percurso. Para Ponta Delgada havia apenas a perigosa vereda da rocha da Ponta a que se seguiam, nos matos, algumas veredas e atalhos, sendo que estes, em muitos sítios, resumiam-se a um atravessar as pastagens, por entre animais, pulando grotões e saltando tapumes. Apenas para a Fajãzinha existia um caminho “O Caminho da Missa”, opondo-se, apenas, à passagem dos interessados, as fortes e frequentes cheias da Ribeira Grande, sobretudo, no Inverno.

Com todos estes condicionalismos históricos e geográficos, nos princípios dos anos cinquenta, rondava a sua população Fajã Grande, pouco mais de 550 habitantes. O povo que a habitava desconhecia o desenvolvimento tecnológico mundial que a década de cinquenta já comportava. Não existindo estradas, não existiam automóveis nem qualquer outro veículo motorizado e o único meio de locomoção dos que eram forçados a se deslocarem em longas distâncias e não o podendo fazer a pé, viajavam de “maca”. Tratava-se de um meio de transporte utilizado geralmente para doentes, velhos e acamados e que consistia em amarrar dois cobertores aos extremos de um forte pau, geralmente o cabeçalho de um corsão, que era carregado por dois homens, um em cada extremidade. Por vezes e para aliviar o esforço destes e o bem-estar do transportado, cruzava-se um segundo pau, de maneira a formar um X com o primeiro, sendo este Inicialmente ocupado por uma floresta selvagem, o solo das fajãs foi sendo desbravado aos poucos pelos primeiros povoadores que viviam sobretudo de actividades que lhe garantiam a subsistência, entre as quais a agricultura e a criação de gado, uma vez que a produção de produtos por exportação, como acontecia noutras ilhas, lhes estava totalmente impedida devido à escassez de meios de transporte.

Na zona mais propícia, entre dois pequenos montes e o mar foram-se construindo as primeiras habitações, embora se creia que inicialmente o povoado se terá situado no lugar chamado de Ribeira das Casas. Essas construções primitivas de pedra soloto e cobertas de colmo, deram origem a habitações caiadas de branco e cobertas de telha. Tratava-se de um tipo de habitação com características arquitectónicas muito semelhantes às da casa nortenha, mas relativamente à sua organização e distribuição, muito idênticas à dos burgos medievais, isto é, um povoamento concentrado ao redor da igreja, o maior, mais alto e mais importante edifício da freguesia, na direcção do qual estavam orientadas todas as ruas. À volta da igreja situavam-se os maiores e mais ricos edifícios que, como que iam diminuindo de dimensões, de grandiosidade e de qualidade, à medida que se vão afastando do templo. Mesmo as casas mais simples eram, geralmente, de dois pisos, sendo o inferior ou “loja” destinado ao gado bovino que aí permanecia durante todo o ano, no inverno de noite, no verão de dia. No piso superior habitava a família, numa espécie de comunhão com os animais dos quais, dependiam em grande parte, pois o leite era a base da alimentação. Estas casas tinham geralmente duas ou três divisões, dado que muitas só possuíam cozinha e sala. A cozinha, geralmente a maior dependência da casa e que também servia de sala de jantar e onde se fazia serão, a casa de fora ou a sala onde geralmente dormiam os filhos mais velhos e onde se recebiam as visitas e, nalgumas, o quarto onde dormiam o casal e os filhos mais pequenos. Para além de terem alguns anexos, geralmente em frente à porta de trás e da cozinha, um pátio, o curral do porco, a cerca das galinhas, o estendedouro para corar a roupa, cada casa tinha a sua courela ou pequeno terreno onde se cultivavam os produtos agrícolas mais utilizados na alimentação diária, especialmente couves e cebolas. Era nelas também que se fazia o “canteiro” ou seja o sítio onde germinava a planta da batata-doce, que depois de vingar e crescer era cortada e plantada nas terras mais distantes e que também tinha grande importância na alimentação das pessoas e até dos animais. A importância da “courela” era tal que acabou por influenciar e entrar na toponímia da freguesia, havendo uma rua com o nome de “Courelas”, popularmente designada por “Escourelas” A restante parte do solo, nos arredores do povoado, e em toda a zona até à rocha era ocupada em termos de propriedade privada, o que naturalmente resultou da ocupação inicial e do desbravamento da população primitiva., também, carregado também, nas extremidades por outros dois homens. Que a propriedade era, sempre foi e, provavelmente, será sempre privada, atestam-no as grossas, altas e históricas paredes que separavam as “terras”, as “relvas” , umas das outras e que, geralmente, eram fruto do desnivelamento do terreno, como era o caso das “belgas”, situadas e encravadas nas encostas das colinas, como que encastoando-se em formas de degraus gigantes. Em determinadas zonas, sobretudo nas que predominam as “relvas” ou pastos, ou seja nas pastagens onde cada proprietário soltava os seus bovinos, enquanto os tinha “à porta”, essas paredes delimitativas de cada propriedade, revelavam uma estrutura deveras impressionante, tendo sido construídas, em muitos casos, por enormes pedras que hoje apenas poderosos guindastes ali as colocariam, sendo notáveis as de um local chamado Batel. Como lá foram postas, pois que o foram não há dúvida, é explicação ainda não encontrada. Acrescente-se que estas paredes não deixavam de estar, na maioria dos casos, relacionadas com a rocha. Sendo esta a prumo, eram frequentes e ainda hoje, pelos vistos, o são e, muito provavelmente, o terão sido mais outrora, as quedas quer de pedras isoladas que daqui e dali se desprendem, quer de “ribanceiras” ou seja, quedas conjuntas de terra, pedras, árvores e pedregulhos. Crê-se que, inicialmente, as casas de um povoado primitivo teriam sido construídas noutro sítio, ainda hoje conhecido pelo nome de “A Ribeira das Casas”, as quais devido a uma enorme ribanceira terão sido totalmente soterradas, sendo então o povoado deslocado para um sítio mais distante da rocha, ou seja, aquele onde actualmente se encontra. Trata-se, no entanto, de uma mera hipótese que apenas aquele topónimo permite formular. Que os vestígios claros de uma fatídica e enorme ribanceira ou quebrada lá estão, não há dúvida, se por baixo dos escombros da mesma se encontram os restos duma povoação é facto que só um dia muito longínquo e talvez nunca existente a arqueologia possa vir a demonstrar. Mas não há dúvida que das pedras caídas da rocha, como aliás ainda acontece actualmente, surgiu, noutros tempos, a necessidade de as arrumar e de, consequentemente, fazer com elas as paredes divisórias das propriedades ou construindo os tradicionais e típicos “maroiços”.

Na Fajã Grande, as propriedades tinham aproveitamentos económicos diferentes. Poder-se-ia mesmo dizer que, em função dessa diferença, formavam três semicírculos à volta do povoado, com o mar e as terras circundantes a este ou seja as da beira-mar, do outro lado, tendo cada um dos respectivos semicírculos as suas características e o seu aproveitamento próprio e específico. No primeiro semicírculo, o mais próximo das habitações, situavam-se as “terras” propriamente ditas, ou seja, as que tinham um aproveitamento exclusivamente agrícola, cultivando nelas o milho, a batata-doce e a branca, as couves, e as culturas forrageiras. No segundo semicírculo ficam as “relvas” constituídas por terrenos de pastagens, de pequenas proporções, separadas umas das outras por altas paredes, onde se soltavam os bovinos, de noite no verão e de dia no inverno, enquanto no terceiro e último se localizavam as “terras de mato”, onde cresce uma vegetação arbórea, luxuriante, constituída pelo incenso, a faia, o pau-branco, o sanguinho, o loureiro e por pequenos arbustos, onde sobressaiam os fetos, a cana roca e a erva-santa, os primeiros considerados um flagelo, esta aproveitada para alimento dos animais, sobretudo das galinhas. Apesar de tudo os fetos, depois de ceifados e secos serviam de cama ao gado nos palheiros, enquanto a cana roca, mesmo verde era deitada nos currais dos porcos, para aliviar a sujidade ali muito frequente. Destas terras, sobretudo do incenso e da faia, era extraída, do tronco e ramos, a lenha para o lume e, das folhas, o alimento para os bovinos, sobretudo no inverno, altura em que rareava a erva e as forrageiras. Em muitas destas terras, devidamente trabalhadas, cultivava-se o inhame e as árvores de fruto, nomeadamente laranjeiras, macieiras e ameixeiras. Eram as “hortas” muito frequentes sobretudo no Delgado, na Cuada, na Cabaceira e na Cancelinha.

Apenas a Rocha, na sua quase totalidade e sobretudo nas zonas mais altas não era de ninguém e era de todos. Não que houvesse qualquer sentido comunitário nesta posse colectiva, mas por que o seu valor produtivo era fraco e a sua exploração acarretava bastante perigo, pelo que não justificavam a quem quer que fosse apropriar-se dela. Por cima da Rocha e a uma altitude superior a 500 metros ficava o “mato” ou seja, a zona das enormes e quase latifundiárias pastagens. Eram grandes extensões de erva em que o gado bovino, geralmente o alfeiro, e o ovino podiam permanecer durante longos meses ininterruptamente, sem ter que lhes ser acrescentado nenhum outro alimento e para onde era levado, geralmente, no início do verão, no caso do gado bovino alfeiro ou o que estava para a “engorda”. As ovelhas andavam soltas e abandonadas por estas e outras pastagens. Grande parte destas terras, sobretudo as mais próximas do cimo da rocha, pertenciam a particulares, mas a maior parte não. Pelo contrário eram de todos, constituindo o chamado “Concelho”, onde se criava sobretudo o gado ovino, num sistema que tem bastante de comunitário e muito de original. No entanto, quem assim o entendesse também poderia criar gado vacum no concelho, o que raramente acontecia.

Era neste contexto de propriedade individual e de divisão da propriedade numa perspectiva funcional que se fundamentava a economia desta população que ocupava o espaço das fajãs, neste caso a Fajã Grande. Tratava-se de uma economia baseada fundamentalmente na agricultura, mas uma agricultura de subsistência e à qual estava necessariamente ligada a criação de gado. Nesta agricultura de subsistência, a principal cultura era a do milho, cultivado nas terras baixas, próximas do mar e das que ficavam mais próximas do povoado e da qual dependia, em grande parte, a alimentação da população. À cultura do milho ligavam-se diversíssimos costumes e tradições. Simultânea e juntamente com o milho, cultivava-se a batata-doce que também tinha enorme importância na alimentação, bem como a bata branca e o inhame. Este, porém, era cultivado nas terras de mato, juntamente com as árvores de fruto, ou então nas “lagoas”, neste caso chamado “inhame d’água”. “Lagoas” eram as propriedades integradas na zona das relvas, geralmente perto da rocha, ladeadas por grotas e ribeiras, cujas águas, conduzidas através de regos, as alimentavam ou então elas próprias tinham nascentes no seu interior das quais a água brotava espontaneamente, pelo que eram terrenos extremamente alagados, permitindo um notável desenvolvimento e um rápido crescimento não só da erva mas também do agrião e do inhame. Enquanto os dois últimos eram utilizados na alimentação humana, a erva era cortada ou ceifada de madrugada e trazida às costas para os palheiros, para alimento dos animais, sobretudo das vacas pejadas ou para as que já haviam dado cria. O corte da erva efectuava-se sempre de madrugada, porque, sendo um alimento base para as vacas leiteiras a sua frescura era fundamental e reflectia-se na produção quantitativa do leite.

 

(Continua)

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publicado por picodavigia2 às 00:33

QUEM SOMOS?

Sexta-feira, 07.02.14

 (OLINDA BEJA – SÂO TOMÉ E PRÍNCIPE)

O mar chama por nós, somos ilhéus!

Trazemos nas mãos sal e espuma

cantamos nas canoas

dançamos na bruma

 

somos pescadores-marinheiros

de marés vivas onde se escondeu

a nossa alma ignota

o nosso povo ilhéu

 

a nossa ilha balouça ao sabor das vagas

e traz a espraiar-se no areal da História

a voz do gandu

na nossa memória...

 

Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar

ao universo a nossa cor tisnada

resistimos à voragem do tempo

aos apelos do nada

 

continuaremos a plantar café cacau

e a comer por gosto fruta-pão

filhos do sol e do mato

arrancados à dor da escravidão

 

 Olinda Beja

 

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publicado por picodavigia2 às 10:32

RODRIGO GUERRA

Sexta-feira, 07.02.14

O escritor açoriano Rodrigo Alves Guerra Júnior nasceu no lugar da Areia Larga, vila da Madalena, ilha do Pico, em1861, tendo falecido em Lisboa em 1924. Estudou no Liceu da Horta mas, o mais da sua cultura foi adquirido pela leitura de obras de autores clássicos e modernos, portugueses, franceses e ingleses. Integrou a geração renovadora da tradição literária açoriana que incluiu Ernesto Rebelo, Florêncio Terra, Garcia Monteiro, Manuel Zerbone, e, um pouco mais tarde, António Baptista, Marcelino Lima e Nunes da Rosa.

Escreveu nos jornais O Faialense, Grémio Litterario e O Açoriano de que foi redactor, com Florêncio Terra e Henrique das Neves. Também colaborou em vários jornais de Angra do Heroísmo, de Ponta Delgada e de Lisboa. Também escreveu para o teatro e a sua peça O Ideal da Prima foi representada no Teatro Faialense. Todavia, os seus contos são o mais relevante da sua obra. Encontra-se incluído em Contos Açorianos e na Antologia Panorâmica do Conto Açoriano. Luís M. Arruda

As suas obras são, para além de O Ideal da Prima: A Americana e Trutas.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 09:57

O PICO EM FEVEREIRO

Sexta-feira, 07.02.14

O Pico, em Fevereiro, pese embora assolado por ventos e tempestades, fustigado por chuvas e intempéries ou assediado por nevoeiros neblinas, continua detentor da uma beleza e originalidade ímpares, duma graça e singeleza endémicas, e de uma excêntrica e indomável singularidade. A sua imponente e vulcânica Montanha, erguendo-se altiva e altaneira sobre lavas e fumarolas, ora se esconde bem lá no alto, por cima das nuvens, ora se cobre da caramelo ou se reveste da sua mais enigmática singularidade – de neve. O mar, na sua altivez e transcendência, revolta-se indignado e altivo, rugindo contra os baixios magmáticos, como que impedindo barcos e pescadores de se arrastarem sobre pedregulho e tiras de madeira, obrigando-os a permanecerem varados, no cais. A terra, entrelaçada entre maroiços e estreitas canadas, continua ávida de enxadas e aluviões e os campos, repletos de erva da casta, enchem-se de bovinos à espera que lhe mudem a cordada. As vinhas desvanecem mas não morrem e aguardam, expectantes, a tesoura de poda. No Pico, em Fevereiro ainda se adormece embalado pelo canto dos pássaros e acordamos com o corococó dos galos. A escuridão vai-se desvanecendo muito lentamente, ouve-se o arrastar de cadeiras em casa de um vizinho, os “bons-dias” dos que se levantam mais cedo. Finalmente o Sol! Mas esse sim, é que umas vezes nem aparece outras demora a aparecer e mesmo quando o faz, é para logo desaparecer, não fosse ele o “sol de pouca dura”.

Mas afinal, no Pico em Fevereiro, com sol ou com neve, com neblinas ou mar agitado, com isto ou com aquilo, ainda se mata o porco, ainda se amarram as vacas nos campos, ainda se podam as vinhas, ainda se apanham sargos e chicharros, ainda se coze bolo no tijolo, ainda se faz caldo de peixe, ainda se bebe bagaço com groselha, ainda se conservam os maroiços, ainda se arrastam os barcos nos varadouros, ainda se baila a chamarrita, ainda se desperta com o cantar dos galos, numa palavra, no Pico, em Fevereiro, ainda se está no Pico, embora este se modernize cada vez mais, agora aureolado com os recentes galardões de “património mundial da humanidade”, obtido pela sua paisagem vulcânica e de vinha e “maravilha natural de Portugal” conquistado pelo imponência e singularidade da sua montanha

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publicado por picodavigia2 às 09:26

O MARTÍRIO DO GLORIOSO BONABOIÃO

Quinta-feira, 06.02.14

Passaram-se alguns anos. D. Paio de Farroncóbias foi avisado de que deveria voltar para norte. D. Afonso Henriques havia sido gravemente ferido em Badajoz. Ao tentar conquistar uma praça fulcral na linha do Guadiana, caiu numa armadilha, sendo ferido e preso pelo rei de Leão. Era necessário estabelecer conversações com o inimigo para obter a libertação do rei. De tal tarefa foi encarregado D. Paio de Farroncóbias, que para tal se deslocou à Galiza. Celebradas as condições de resgate, D. Paio no regresso pernoitou em Cangas, onde Iluminata tinha um grandioso palácio, tendo lhe sido apresentado um canudo de sabugueiro, que tinha sido encontrado na praia e que se destinava ao nobre alcaide de Trancoso. D. Paio, apreensivo, abriu-o. No interior havia um pergaminho, que continha, de um lado excertos da crónica de Johannes Beltrasanas e do outro escrito em letrinhas góticas, uma mensagem de Iluminata, onde ela proclamava a sua inocência e se queixava da injustiça que o seu esposo havia cometido para com ela, jurando pela sua honra que estava inocente, que Gemildo é que a tentara e que com todas as suas forças se opusera aos seus intentos maldosos, por fidelidade a seu marido e senhor. Fora por não ceder, que Gemildo, por vingança, a caluniara. Como prova da sua inocência estava ali, depois de tantos e tantos anos, sem ter sido contagiada pela lepra, milagre operado por Deus, comprovativo da sua inocência. Por fim, solicitava a D. Paio que dali a tirasse.

Ao receber tal notícia o coração de D. Paio de Farroncóbias encheu-se de remorsos e arrependimento, de ternura e de saudade. De imediato, mandou preparar um escaler o mais luxuoso que encontrou em Cangas e arredores e demandou a ilha dos leprosos, com intenção óbvia de recolher a que fora a sua amada esposa, Iluminata. Perdoaram-se reciprocamente, caíram nos braços um do outro, perante o olhar estupefacto e triste de Banaboião, que desistira de matar D. Paio, como havia combinado com Iluminata. D. Paio de Farroncóbias e Iluminata regressaram a Cangas. Iluminata partiu para Trancoso, enquanto D. Paio de Farroncóbias, agora que el-rei D. Afonso Henriques havia sido liberado das prisões do rei de Leão, pese embora, devido à fractura que contraíra na peleja, ficasse incapaz de combater por algum tempo, regressou, rapidamente, para o Alentejo, pois chegara-lhe notícia de que os sarracenos infiéis haviam, de novo tomado Beja e outras praças importantes.

Mas os mouros, porém, tendo conhecimento da inoperância bélica de D. Afonso Henriques não atacaram apenas o Alentejo e a fronteira sul. Avançaram por todo o reino e já demandavam o norte, destruindo tudo e matando todos por onde passavam, espalhando o pânico e o terror por todas as aldeias, vilas e cidades. Na maioria das povoações, despojadas de guerreiros que se haviam deslocado para sul, era impossível a defesa. Mortes, saques destruição total, eram uma constante. É que, assim como D. Paio de Farroncóbias, muitos outros guerreiros, encontravam-se mobilizados na defesa do Alentejo, estando, portanto, impedidos de voltar para o norte, defendendo as suas povoações, os seus lares e os seus familiares. A desolação era total.

D. Afonso Henriques, no entanto, persistia em ordenar que se recuperassem as principais praças alentejanas, tarefa quase de todo impossível dado o crescendo bélico dos árabes. Os fronteiros, em vão, bem tentavam cumprir as ordens de el-rei. Seguiram-se tentativas e tentativas todas elas frustradas, de recuperar aquelas praças. O número de portugueses que morriam às mãos da moirama, era cada vez maior. D. Paio de Farroncóbias decidiu, então empreender, novas tentativas sobre Lisboa, Évora, Beja e Alcácer-do-Sal. Esta última, porém, ser-lhe-ia fatal. O valoroso guerreiro D. Paio de Farroncóbias sucumbiu em combate, quando já tinha entrado dentro de Alcácer-do-Sal.

Com a morte do mais temível guerreiro português, os mouros ainda avançaram mais para norte. Aldeias e aldeias foram tomadas. Al-bucadiam, emir de Badajoz, avançou com um poderoso exército de mais de cinco mil homens, entre gente de pé e a cavalo e ultrapassou Coimbra, o rio Águeda, Viseu e acabou por entrar na própria cidade de Trancoso!

Dias antes, Iluminata tivera conhecimento de que um santinho de Deus, de nome Banaboião, homem de grandes virtudes e dons sobrenaturais chegara à cidade e se instalara numa estrebaria dos arrabaldes, em grande pobreza e mortificação. Cobrindo o próprio rosto, para que lhe não vissem as feridas que já lhe dilaceravam todo o corpo. Iluminata dirigiu-se para o refúgio onde se encontrava o santo anacoreta. Depois de se amarem Iluminata bem lhe explicou os perigos que corria, se permanecesse ali. Nem acabou de falar. E eis senão quando dois mouros, de espada em riste, entrando de rompante, decapitam os dois...

 

Passaram-se alguns anos. Em Roma, Sua Santidade o Papa Liberino III, revestido de paramentos vermelhos, de báculo na mão e tiara na cabeça, proclamando o poder que lhe fora concedido por Deus, anunciava a toda a cristandade e decretava solenemente e para sempre o bem-aventurado Banaboião como santo de Deus, pela sua vida de virtude e santidade e pelo seu glorioso martírio e inscrevia o seu nome no dístico do sagrado cânon, autorizando que, a partir desse dia, os fiéis lhe prestassem veneração.

Nos dias seguintes, em todas as igrejas, de Trancoso a Viseu, os sinos repicaram festivamente, enquanto D. Gonçalo Guterres, agora bispo de Lamego, na catedral daquela cidade, entoava a Ladainha de todos os santos, cantando a determinada altura:

- Sancte Banaboionis, anachoreta et martir.

- Ora pro nobis  – respondia o povo em grande alarido.

 

Fonte – Aquilino Ribeiro, São Bonaboião Anacoreta e Mártir.

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publicado por picodavigia2 às 18:20

SOB A PROTECÇÃO DE SANTA RITA

Quinta-feira, 06.02.14

Sentada à janela com o lenço a tapar-lhe parcialmente o rosto como se fosse um bioco, a avó do Júlio, entretinha-se a passar, maquinalmente, por entre os dedos da mão direita as contas do terço, como se as acariciasse com ternura e carinho, ao mesmo tempo que em voz trémula bichanava um Padre-Nosso, seguido das dez Avé Marias.

Júlio aproximou-se de rompante e a avó, como que despertando de um sono profundo, abalroada por um enorme sobressalto e, colocando a mão esquerda sob a tez, numa tentativa infrutífera de clarificar a visão, olhava e voltava a olhar para a rua, sem ver nada ou coisa nenhuma.

- Adeus, avó. Até logo. Vou a Ponta Delgada, de barco! – Gritava o petiz, em voz esganiçada, a prolongar-se como em eco e como que a certificar-se de que a avó o havia de ouvir.

 - Eu me benzo do não-sei-que-diga. Credo em cruz! O que estás a dizer, pequeno? Vais para onde?

- Avó, vou p’ra Ponta Delgada. Ouviu bem, avó? Pon-ta Del-ga-da! – E voltava a soletrar, até se convencer de que a avó o havia entendido.

Esta, recolhendo o terço no regaço e concentrando toda a sua atenção no garoto, balbuciou, tremulamente:

- Tu, ou não estás bom do juízo ou estás a fazer pouco de mim. Não se enganam pessoas de idade. Ainda por cima, sou a tua avó… É preciso não ter pingo de vergonha…

Júlio insistia em frustradas tentativas de a convencer:

- Avó, acredite, é verdade, eu vou mesmo a Ponta Delgada. Eu não sou nenhum intrujão. Olhe já estou calçado e tudo. Estou preparado para viajar.

- E vais a Ponta Delgada com quem e fazer o quê? – Perguntou a avó cada vez mais intrigada e incrédula.

- Vou com meu pai. Para lá vamos de barco e para trás vimos a pé. Meu pai vai fazer uma visita ao seu amigo, o senhor Nóia.

Cada vez mais admirada com tão inesperada notícia, a avó benzia-se, vezes sem conta:

– Eu me benzo do Coiso Mau – dizia ela. - Teu pai está doido. Caminhar assim sem mais nem menos, a estas horas, para Ponta Delgada… E vão voltar ainda hoje?…

Nessa altura apareceu à janela a tia Joana, sempre em casa, a varrer, a limpar, a cozinhar, mas também sempre a ouvir e a coscuvilhar tudo e a meter-se onde não devia. Com voz intrigante e ar cínico, indagava, curiosa:

– Quem é que vai a Ponta Delgada? Quem é, quem é?

O miúdo, com mais vontade de largar para o Cais do que estar ali a dar explicações, ainda foi esclarecendo:

- Sou eu, tia Joana. Sou eu e mais meu pai, tia Joana?

Logo uma condenação radical e incomplacente:

- Teu pai não tem uma pinga de vergonha! Ainda não há um ano que tua mãe morreu e ele já caminha para todos os lados. Não para em ramo verde! Nunca está em casa. É uma vergonha! Já toda a gente fala na freguesia.

Júlio nem lhe respondeu. Rodopiando sobre si próprio, largou em debandada, deixando no ar um anátema condenatório

– Canalha! Metam-se na sua vida. Mas se falam é porque minha tia ouve.

Na certeza de que Júlio já não a ouvia, Joana voltou-se para a mãe:

- E o pior, mãe, é que ele caminha para aqui e para acolá e manda os dois pobres piauzinhos mais velhos para as terras, sozinhos. Qualquer dia ainda acontece alguma desgraça. Onde é que se viu duas crianças daquela idade andarem a trabalhar sozinhos por essas terras de foices e machados, a ceifar feitos e cortar lenha!?  Pobres piauzinhos! Ainda se vão cortar! É preciso não ter vergonha! E caminha aquela alma de Deus, com uma criança pequena, a estas horas, para Ponta Delgada!? Vão voltar para casa de noite, a umas lindas horas! Lá isso vão… Olhe mãe: ou eu me engano muito ou ainda se vão é perder naqueles matos.

A avó, levantando-se, muito a custo, lá se foi encaminhando para junto da mesa da sala, sobre a qual existia um oratório com a imagem de Santa Rita. Acendeu-lhe uma luzinha, bichanou umas orações e, muito segura e convicta, retorquiu para a filha:

- Deixa estar que Santa Rita há-de fazer o milagre de os guiar. Já lhe acendi a luzinha. Ela também os há-de iluminar, ser a luz para eles. E desceu as escadas do saguão que dava para a loja, a fim de se deitar.

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publicado por picodavigia2 às 17:23

ERA UMA VEZ UM PAÍS

Quinta-feira, 06.02.14

(UM POEMA DE JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS)

Era uma vez um país

onde entre o mar e a guerra

vivia o mais feliz

dos povos à beira-terra.

 

Onde entre vinhas sobredos,

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

um povo se debruçava

como um vime de tristeza

sobre um rio onde mirava

a sua própria pobreza.

 

Era uma vez um país

onde o pão era contado

onde quem tinha a raíz

tinha o fruto arrecadado

onde quem tinha o dinheiro

tinha o operário algemado

onde suava o ceifeiro

que dormia com o gado

onde tossia o mineiro

em Aljustrel ajustado

onde morria primeiro

quem nascia desgraçado.

 

Era uma vez um país

de tal maneira explorado

pelos consórcios fabris

pelo mando acumulado

pelas ideias nazis

pelo dinheiro estragado

pelo dobrar da cerviz

pelo trabalho amarrado

que até hoje já se diz

que nos tempos dos passado

se chamava esse país

Portugal suicidado.

 

Ali nas vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

vivia um povo tão pobre

que partia para a guerra

para encher quem estava podre

de comer a sua terra.

 

Um povo que era levado

para Angola nos porões

um povo que era tratado

como a arma dos patrões

um povo que era obrigado

a matar por suas mãos

sem saber que um bom soldado

nunca fere os seus irmãos.

 

Ora passou-se porém

que dentro de um povo escravo

alguém que lhe queria bem

um dia plantou um cravo.

 

Era a semente da esperança

feita de força e vontade

era ainda uma criança

mas já era a liberdade.

 

Era já uma promessa

era a força da razão

do coração à cabeça

da cabeça ao coração

Quem o fez era soldado

homem novo capitão

mas tabém tinha a seu lado

muitos homens na prisão.

 

Esses que tinham lutado

a defender um irmão

esses que tinham passado

o horror da solidão

esses que tinham jurado

sobre uma côdea de pão

ver o povo libertado

do terror da opressão.

 

Não tinham armas é certo

mas tinham toda a razão

quando um homem morre perto

tem de haver distanciação

uma pistola guardada

nas dobras da sua opção

uma bala disparada

contra a sua própria mão

e uma força perseguida

que na escolha do mais forte

faz com a que a força da vida

seja maior do que a morte.

 

Quem o fez era soldado

homem novo capitão

mas também tinha a seu lado

muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo

começou a floração

do capitão ao soldado

do soldado ao capitão.

 

Foi então que o povo armado

percebeu qual a razão

porque o povo despojado

lhe punha as armas na mão.

 

Pois também ele humilhado

em sua própria grandeza

era soldado forçado

contra a pátria portuguesa.

 

Era preso e exilado

e no seu próprio país

muitas vezes estrangulado

pelos generais senis.

Capitão que não comanda

não pode ficar calado

é o povo que lhe manda

ser capitão revoltado

é o povo que lhe diz

que não ceda e não hesite

- pode nascer um país

do ventre duma chaimite.

 

Porque a força bem empregue

contra a posição contrária

nunca oprime nem persegue

- é a força revolucionária!

 

Foi
então que Abril abriu

as portas da claridade

e a nossa gente invadiu

a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra

na madrugada serena

um poeta que cantava

o povo é quem mais ordena.

 

E então por vinhas sobredos

vales socalcos searas

serras atalhos veredas

lezírias e praias claras

desceram homens sem medo

marujos soldados "páras"

que não queriam o degredo

de um povo que se separa.

 

E chegaram à cidade

onde os monstros se acoitavam

era a hora da verdade

para as hienas que mandavam

a hora da claridade

para os sóis que despontavam

e a hora da vontade

para os homens que lutavam.

 

Em idas vindas esperas

encontros esquinas e praças

não se pouparam as feras

arrancaram-se as mordaças

e o povo saiu à rua

com sete pedras na mão

e uma pedra de lua

no lugar do coração.

 

Dizia soldado amigo

meu camarada e irmão

este povo está contigo

nascemos do mesmo chão

trazemos a mesma chama

temos a mesma razão

dormimos na mesma cama

comendo do mesmo pão.

Camarada e meu amigo

soldadinho ou capitão

este povo está contigo

a malta dá-te razão.

 

Foi esta força sem tiros

de antes quebrar que torcer

esta ausência de suspiros

esta fúria de viver

este mar de vozes livres

sempre a crescer a crescer

que das espingardas fez livros

para aprendermos a ler

que dos canhões fez enxadas

para lavrarmos a terra

e das balas disparadas

apenas o fim da guerra.

 

Foi esta força viril

de antes quebrar que torcer

que em vinte e cinco de Abril

fez Portugal renascer (…)

 

J. C. Ary dos Santos

 

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publicado por picodavigia2 às 14:09

O JOGO DO LENÇO

Quinta-feira, 06.02.14

Umdos jogos colectivos mais praticados pela criançada, na Fajã Grande, nos anos cinquenta, era o “Jogo do Lenço”. No entanto, uma vez que exigia um bom número de participantes - cerca de uma dúzia – este jogo era realizado, geralmente, nas festas, sobretudo por altura das do Espírito Santo, neste caso, não apenas no dia da festa, mas também durante a semana que a antecedia, antes e depois do cantar das “Alvoradas” e da “Folia”, e até nos domingos que mediavam entre a Páscoa e o Pentecostes, enquanto se aguardava o acompanhamento da coroa do Espírito Santo que durante todos esses domingos era levada, em cortejo, solene, para a igreja paroquial, na hora da missa. No entanto, sempre que houvesse disponível um espaço amplo e, sobretudo, se a garotada disponível perfizesse o número de jogadores exigível, o jogo do lenço imperava.

Para além do espaço, o único material necessário era, apenas, um simples lenço da mão, que, preferencialmente, estivesse limpo, ao qual era dado um nó, para que este assentasse no chão, no lugar pretendido, quando fosse atirado pelo jogador que o transportava. Todos os jogadores, excepto um, formavam uma grande roda, dando as mãos uns aos outros, com o rosto, obrigatoriamente, voltado para o interior do círculo. O jogador que ficava de fora, que não fazia parte da roda, pegava no lenço e correndo por fora da roda, circulava ao redor mesma, numa marcha acelerada. Quando bem quisesse e entendesse, deixava cair o lenço atrás de um dos jogadores, por ele escolhido, e que fazia parte da roda. Havia, no entanto que ter em conta uma importante estratégia, a fim de que o objectivo do jogo fosse mais eficientemente atingido: convinha que o lenço fosse deixado cair atrás daquele jogador que lhe parecesse estar mais distraído. É que assim, eventualmente, conseguiria alongar o tempo entre o cair do lenço e o conhecimento desse facto por parte do jogador em causa. Os outros não o podiam avisar de que o lenço estava caído atrás dele. Quando este jogador, atrás de quem era deixado o lenço, se apercebia de tal facto, então largava as mãos dos vizinhos, abandonava a roda e corria atrás do jogador que lhe deixara o lenço, até o apanhar. Se o conseguisse, entregava-lhe o lenço, sendo o jogador apanhado obrigado a continuar a sua tarefa, enquanto o outro, triunfante, regressava ao seu lugar na roda. Caso contrário, isto é se o jogador demorasse na apanha do lenço ou não corresse o suficiente para atingir o objectivo do jogo – agarrar o que lhe deitara o lenço, - este jogador iria ocupar o seu lugar na roda, enquanto ele, o derrotado, ficava como que condenado a um suplício ou castigo, isto é, teria que ser ele, agora, a circular ao redor da roda, a deixar cair o lenço atrás de quem quisesse e corresse até não ser apanhado por um terceiro, quarto ou outro jogador, atrás de quem ia deixando cair o lenço.

Ufanavam-se de vitória, aqueles jogadores que ao terminar o jogo, não tinha sido “obrigados” a circular ao redor da roda, com o lenço, pois sempre que o lenço lhe tivesse sido colocado atrás, apanhavam todos os que ali os haviam deixado.

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publicado por picodavigia2 às 12:05






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