PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NA GLÓRIA
“Quem se vira na glória.”
Embora, mais propriamente, seja um dito do que um adágio, esta expressão era muito utilizada na Fajã Grande, na década de cinquenta. O seu uso manifestava um sentimento de desânimo, aborrecimento ou vontade de renúncia a qualquer empreendimento que se pretendesse realizar e se tivesse dificuldade em conseguir ou qualquer objectivo que se quisesse atingir e não se obtivesse. Assim e num momento de desânimo ou perante um objectivo fracassado surge o desejo da felicidade eterna, uma vez que a palavra glória aqui significa a glória celeste, ou seja, o céu. Por isso este dito também era utilizado numa outra versão: “Quem se visse no céu.”
Estranha é a utilização da forma verbal, porquanto deveria ser usado o imperfeito do conjuntivo, como acontece na segunda versão, o que no entanto, não poderá significar mais do que uma deturpação da mesma.
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ÁLVARO E EDUARDA
Álvaro e Eduarda partilham, desde há alguns anos, um pequeno apartamento na rua Braancamp Freira, em Lisboa. São licenciados em Economia, possuem e dirigem, actualmente, um escritório de contabilidade, na Brandoa, onde ambos trabalham.
Conheceram-se na Faculdade de Economia de Lisboa, onde se formaram e foram colegas de curso. Obtidas as respectivas licenciaturas, candidataram-se a estágios em empresas de contabilidade. Quando Álvaro terminou o estágio, foi-lhe proposto continuar a trabalhar na mesma empresa, enquanto Eduarda, após alguns meses de grande ansiedade e expectativa, conseguiu, simplesmente, um contrato a prazo, numa empresa de “transitários”, em Algés. Ambas as empresas, porém, anos mais tarde, embora em tempos diferentes, haviam de falir, enviando os dois para o desemprego. Primeiro foi a Eduarda. Uns tempos depois ele, o Álvaro.
Na altura em que Eduarda foi despedida, assumindo já uma relação conjugal íntima e profunda, consideraram que o desemprego dela em nada lhes havia de ser prejudicial. Antes entenderam que lhes trazia algum benefício, porquanto poderiam aproveitar aquela espécie de interregno laboral, em que, embora contra a sua vontade, Eduarda se imiscuíra, para terem o filho que há tanto desejavam. E o menino veio, trazendo, aos pais, uma enorme alegria e uma felicidade inexaurível. Cresceu a criança e, por opção dos progenitores, passado algum tempo, começou a frequentar um infantário, enquanto a mãe, infrutiferamente, começava à procura de novo emprego, na sua área. Não só não o conseguiu como viu o emprego do marido, de um momento para outro, também se eclipsar, deixando os dois sem trabalho e, consequentemente, sem dinheiro para criar o filho e sobreviverem. Bem tentaram procurar o que quer que fosse. Mas nada. Os tempos não corriam de feição e os caminhos da esperança tapavam-se em cada momento e em cada porta a que batiam. Cada currículo que enviavam para uma ou outra empresa considerada, financeiramente, mais estável, ou era devolvido ou nem tinha resposta.
Vindos de longe, Álvaro e Eduarda haviam demandado Lisboa com os mesmos objectivos: não apenas o de se formarem mas também o de se fixarem, definitivamente, e trabalharem na capital, abandonando a pacatez e, sobretudo, a desertificação, das pequenas e distantes localidades, aparentemente, muito semelhantes, onde haviam nascido. Ele nos Açores, na Fajã da Ribeira da Areia, em São Jorge. Embora uma das maiores e mais populosas fajãs da ilha, começava cada vez mais a ser votada ao abandono, não só por causa do grande terramoto, acontecido precisamente no ano em que ele nascera, mas também porque o envelhecimento da população crescia de forma galopante. Ela de São Pedro-Velho, uma das mais pequenas e isoladas freguesias do concelho de Mirandela, lá para os lados da Torre de Dona Chama, bem no interior transmontano, também ele cada vez mais desertificado e abandonado.
Chegados a Lisboa, frequentando a mesma Faculdade e integrados na mesma turma, depressa se conheceram e se depararam com uma amizade reciproca, colaborante, íntima e verdadeira que, aos poucos, foi aumentando, desenvolvendo e transformando em paixão. Para além dos estudos, das disciplinas comuns, dos objectivos traçados, unia-os a singularidade das suas terras de origem, a pobreza das suas famílias e a convicção de que o seu futuro passaria, necessariamente, por se fixarem na capital, onde poderiam dar aso ao desenvolvimento dos saberes, da experiência e das capacidades que, dia a dia, iam adquirindo e acumulando. Ambos, há muito, já antes de se conhecerem, haviam decidido fixar-se por Lisboa. Por isso, libertos de preconceitos patéticos, a decisão de viverem em comum, foi inevitável. Agora porem caía-lhes em cima, em catadupa, a ameaçar-lhes o futuro, a destruir-lhe os sonhos, o execrável e ignominioso fantasma do desemprego. O subsídio dela há muito que caducara. Agora viviam do dele e de uma pequena economia feita em tempos idos.
Mas Álvaro e Eduardo conjugavam a garra açoriana com a pujança transmontana. Entre desânimos e sonhos, arquitectaram que poderiam emergir do imbróglio que os rodeava. Cuidando que de braços cruzados não haviam de ficar, por não lhes adiantar nada e que o regresso a São Jorge ou a Trás-os-Montes estava posto de parte, Álvaro decidiu-se por solicitar o subsídio de desemprego a que tinha direito, na totalidade. Da empresa ainda recebeu uma pequena indeminização. Tudo somado e acrescentado a umas pequenas poupanças, dava muito bem para montarem, eles próprios, um pequeno e simples escritório de contabilidade. Faltava-lhes, apenas, o espaço que, na Brancamp Freire, era impossível adquirir. Apontaram outros locais, mais distantes mas bem servidos de transportes públicos. Foram dar com uma sala, ali para os lados da Brandoa. Por feliz coincidência, debatia-se o proprietário com problemas de contabilidade. Acordo feito: a nova empresa de contabilidade “Alvorarda”, agora constituída, responsabilizava-se por toda a contabilidade dos negócios imobiliários do Senhor Costa e este, em contrapartida cedia-lhe uma das lojas que, por ali, tinha disponíveis, num dos seus prédios e que não conseguia vender ou alugar. A acrescentar o restaurante, a dois passos d’ali, onde Álvaro e Eduarda almoçavam todos os dias, também se debatia entre contas incorrectas e impostos desordenados. Uma conversa mais íntima e um novo acordo: a “Alvorarda” havia de lhe “endireitar” as contas, simplesmente pelo custo das refeições.
Com o aluguer da sala e as refeições pagas através da prestação de serviços, as despesas da “Alvorarda” tornavam-se bem menores. Os clientes começaram a surgir. A competência, o trabalho digno, o esforço e a simpatia dos economistas Álvaro e Eduardo depressa se espalharam pelas redondezas e a empresa foi crescendo e, actualmente, é uma das mais reconhecidas na zona.
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A RAPOSA E A CARRIÇA
A carriça é uma ave pequena, muito activa e de cor castanha na parte superior, com uma listra clara no dorso e com as asas, também, listradas. Tem uma cauda pequena e arrebitada. É facilmente reconhecível pelo seu pequeno porte. Tem por hábito entrar em cavidades e fendas de rochedos para pernoitar ou para caçar larvas, aranhas e bagas. Trata-se duma ave polígama, sendo que é o macho que constrói diversos ninhos para as suas várias parceiras. O ninho é uma estrutura arredondada, construído com pequenos ramos, musgo, erva e raízes, sendo, depois, forrado com os próprios pêlos e penas. Estão geralmente situados entre as raízes de uma árvore ou num tronco oco. O macho, por vezes, constrói falsos ninhos, a fim de enganar potenciais predadores. A fêmea põe 6 a 8 ovos que incuba por 14 a 16 dias. Os filhotes são alimentados, apenas, pela fêmea e iniciam-se no voo aos 16 ou 17 dias de idade
Ora certo dia, uma raposa encontrou uma destas carriças, com ninho no tronco de um velho carvalho. A raposa andava com muita fome e, por isso, ia todos os dias, junto ao carvalho e dizia:
- Ó comadre carriça, deite-me um dos seus filhinhos cá para baixo, para eu matar a fome, senão eu levanto o rabo e corto o carvalho.
A carriça com medo deitava-lhe um filhote. Três dias lá foi a raposa junto do carvalho e três vezes a carriça lhe atirou um filhinho que a raposa comia, sofregamente. Se a carriça se recusava, logo a raposa ameaçava que lhe levantava o rabo e lhe cortava o carvalho. Ao quarto dia a raposa lá foi outra vez e disse:
- Ó comadre, deita-me cá um carricinho, senão eu levanto o rabo e corto o carvalho.
A carriça deitou-lhe novamente um filhote, mas ficou a pensar como é que havia de se livrar da raposa, a fim de que lhe não comesse todos os filhotes. Por coincidência, na mesma tarde, foi lá visitá-la o mocho que lhe perguntou:
- Ó comadre carriça, onde estão os teus filhinhos?
- Deitei-os à comadre raposa, que vem aí e diz que levanta o rabo e corta este carvalho onde tenho o meu ninho.
Responde-lhe o mocho:
- Ah! Que parva! Não volte a fazer isso. Quando ela voltar digalhe que rabo de raposa não corta carvalho e que só a força de homem e o gume do machado é capaz de o cortar. No dia seguinte a raposa voltou lá e disse, novamente:
- Ó comadre carriça, deita-me mais um carricinho cá para baixo, senão levanto o rabo e corto o carvalho. A carriça já tinha aprendido a lição com o mocho e disse-lhe:
- Rabo de raposa não corta carvalho, só a força do homem ou o gume do machado.
A raposa lá se foi embora com o rabo entre as pernas e desta maneira a carriça livrou-se da raposa manhosa.
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OS ENIGMÁTICOS MEANDROS DA “MORFOLOGIA LATINA”
O livro mais pequeno, mais leve, mais fofo, mas também o que mais “dores de cabeça”, em termos de estudo, me provocava era a “Morfologia Latina”. Tratava-se de uma espécie de gramática do Latim, disciplina que estudávamos em catadupa e que tinha lugar privilegiado e fundamental na formação dos futuros sacerdotes. Era um livrinho de capas verdes, aveludadas, da autoria de G. Zenoni, da Editorial Missões, Cucujães. Depois de uma breve introdução à Fonética, a que o professor não dava grande importância, entrava-se em plena Morfologia, aprendendo-se que em Latim, contrariamente ao Português, os substantivos, os adjectivos e até os pronomes se declinavam, num enigmático meandro de casos e géneros, com a agravante de aqueles serem seis e, para maior confusão, existir um terceiro género para além do masculino e do feminino: o neutro. Depois, tudo aquilo era, para mim, uma tremenda confusão: é que “rosa”, tanto podia significar “a rosa”, como “ò rosa” ou “pela rosa”, enquanto “rosae”, da mesma maneira, tinha três significados diferentes: “da rosa”, “as rosas” e “ò rosas”. Pior ainda! É que eu confundia e cuidava que o genitivo do plural de “fructus” devia ser “fructuorum”, tal e qual ao de “dominus” da segunda declinação era “dominorum” e, afinal, era “fructuum”, pois “fructus” pertencia à quarta declinação. Mas não era tudo. As confusões eram permanentes, os erros constantes e as aprendizagens limitadas, pese embora, eu passasse horas e horas a cantarolar, a repetir e a tentar reter na memória: “ Liber – libra – librum; libri – librae – libri…” e por aí adiante. Um emaranhado de enunciados, um nunca mais acabar de formas iguais com significados diferentes e de formas diferentes com significados iguais. Mas o pior estava para vir! É que depois dos substantivos e dos adjectivos vinham os pronomes, também eles declináveis e com umas formas muito esquisitas e estranhas, umas vezes a fazer lembrar a solene forma da consagração da hóstia e do cálice: “Hic – Haec – Hoc”, outras a imitar a voz dos patos: “Quo – qua – quo; ” e a provocar risotas disfarçadas e escondidas, que o professor era muito exigente e não tolerava brincadeiras ou graçolas.
Mas a muito custo e após muitas horas de treino, lá fui decorando e aprendendo as declinações e as conjugações e, passado algum tempo, já conseguia escrever pequeninas frases: “Rosa pulchra est.” E quando certo dia, já no segundo período, fui chamado ao quadro com a minha “Morfologia Latina” em riste, e o professor, olhando para o livro, me ordenou que escrevesse no quadro e traduzisse a seguinte frase: “Por quanto compraste o livro que tens nas mãos?”, safei-me razoavelmente bem, escrevendo, já com um certo orgulho, na língua de Cícero e de Virgílio: “Quanti emisti librum quem habes in manibus?”.
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O ESPANTA MALES
“O trabalho espanta três males: o vício, a pobreza e o tédio.”
Voltaire
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UMA NOITE DE TERROR
José Pereira de Azevedo deitou a mão à taramela da porta de casa já noite escura. Na cozinha, mais atónita do que atarefada, a mulher segurava, no regaço, o pequeno António, num berreiro aflitivo, angustiante e pouco habitual. No lar, entre duas pedras toscas, fumegava um lume frouxo, a definhar-se de instante a instante e como que a deixar a cozinha envolta em penumbra. Sobre o lume, um caldeirão de ferro negro e tisnado, prestes a suspender a cozedura.
Deste há muito que Madalena de São João, numa aflitiva agonia, desistira de atiçar o brasido com uma acha ou sequer com um garrancho. Aguardava com uma ansiedade desmesurada e uma aflição desmedia a chegada do marido. Por isso, mal ouviu o barulho do levantar da taramela da porta da cozinha, que dava para um pequeno pátio exterior, agarrou ainda mais o filho, apertou-o ao peito com maior intensidade e veio postar-se frente à porta, ao mesmo tempo que o marido a abria:
- Credo, homem! Que te demoraste tanto! E eu aqui, numa aflição tão grande! Numa agonia por ele, por mim e por ti! Ainda há pouco, tudo voltou a tremer! Sentiste? Parecia que a casa vinha abaixo… E eu aqui… Sozinha, com ele ao colo… Cheia de medo, sem saber onde me esconder, para o proteger! Agarrei-o, debrucei-me sobre ele! Se a casa desabasse, se estas paredes caíssem eu havia de o proteger e o Senhor Espírito Santo havia de fazer o milagre de salvar o nosso menino.
José arrumou num canto da cozinha o alvião e o foicinho que trazia ao ombro, limpou as mãos num pano amarelado, suspenso da borda de um lava mãos de ferro, arrumado junto do lar, pegou no filho ao colo e abraçou-se a ela, na tentativa de a acalmar. Talvez a sua presença transmitisse tranquilidade ao filho e permitisse à mulher recuperar o ânimo perdido.
Na realidade, Madalena de São João, sentindo a presença reconfortante do marido, calou-se, por uns minutos. Também o menino, vendo ali o pai e, sentindo os seus braços a envolver-lhe o corpito, pareceu aquietar-se um pouco. José sabia que todas as palavras que proferisse naquele momento seriam uma farsa em que ela não acreditaria, mas arriscou:
- Também não foi tanto assim, mulher. Foi grande, foi um grande abalo de terra, é verdade, mas os da semana passada foram bem maiores. – E sentindo que a mulher ia acalmando enquanto o ouvia, acrescentou com mais convicção: - Deus teve piedade de nós. Protegeu-nos e protegeu a nossa casa. Cuidei que isto já tinha acalmado… E há-de acalmar, Deus é pai de misericórdia - e com gestos de carinho e blandícia tentava distrair o pequeno António que, de imediato, estendeu os bracitos vacilantes na direcção da mãe, a querer, também, encavalitar-se no colo dela.
A arfar cansaço e suor, José, aconchegando a si o pequeno, sentou-se num banco, junto ao lar. O lume que a mulher agora se entretinha a reanimar, iluminava-lhe o rosto tisnado de sol, que o filho fixava com ternura.
De repente, um outro abalo, mais forte, mais vertiginoso, mais abrupto, mais terrível, mais apavorante e mais ameaçador do que todos os que durante aquele anoitecer, até então se haviam feito sentir. Seguiu-se um forte estrondo, que acometeu com enorme violência o velho casebre. Madalena expeliu um grito de horror, de aflição e de angústia, ao mesmo tempo que invocava a protecção divina. José, procurando manter uma calma que não tinha, tentava, sem proveito, proteger com o seu, o corpo do filho. Fora um abalo fortíssimo e demorara uma eternidade. Algumas das frágeis paredes do velho casebre começavam a ruir. José Pereira de Azevedo, aconchegando mais o pequeno ao colo, deitou o braço sobre os ombros da mulher e, empurrando-a, à sua frente, saiu de casa, numa correria louca e numa aflição inexaurível.
Na realidade, desde há alguns dias que abalos muito fortes, tremores de terra assustadores, estrondos tão espantosos que pareciam trovões secos, se haviam feito sentir, não apenas, em Santa Luzia, mas também ali ao lado, nas Bandeiras e em muitos outros lugares e freguesias do Pico. Uma tragédia terrível que atormentava e punha em alvoroço as populações. Muitas pessoas já pernoitavam na rua, algumas casas já haviam ruído quase por completo. O medo e o terror haviam-se apoderado de todos.
Aquela noite porém estava a ser a mais trágica, a mais sinistra e a mais desoladora. Uma noite de terror permanente! A pior de sempre! Já iam em mais de meia-dúzia o número de abalos sentidos, desde o anoitecer. Alguns com uma intensidade fortíssima e uma duração prolongada e assustadora.
As ruelas circundantes ao casebre de José Pereira de Azevedo, ao lado da pequena ermida de Santa Luzia, embora fosse Inverno e a noite estivesse muito fria e escura, estavam cheias de gente, de medos, de desânimos, de preces e de súplicas ao Altíssimo. A aflição, o medo, a angústia, o desespero apoderavam-se de todos. Amparando-se e confortando-se uns aos outros, novos e velhos, homens e mulheres, jovens e crianças, numa prece comunitária, imploravam a misericórdia e a compaixão divinas, pediam, publicamente, perdão pelos seus pecados, ao mesmo tempo que se iam enrolando com cobertores de lã, a fim de se protegerem do frio.
Há noites e noites que era aquele martírio sobressaltado, aquele susto contínuo, aquela maldição permanente! Tudo havia começado quase no início do ano e já íamos a seis de Fevereiro. Toda a população vivia num enorme angústia. Todos estavam apavorados e cheios de medo. Quase não pregavam olho, durante a noite, e se adormeciam, era com um passar por brasas, para, logo a seguir, acordarem com um estrondo maior do que o anterior. A pequena casa de José Pereira de Azevedo e os outros casebres de pedra negra e solta, espalhados por aqui e por acolá, ao redor da pequenina ermida, só por milagre do Divino Espírito Santo ainda não haviam ruído por completo.
Estávamos nos primórdios do século XVIII, mais concretamente no início de Fevereiro do ano de 1718 e não apenas a freguesia de Santa Luzia mas quase toda a ilha do Pico vivia num medo e numa angústia permanentes desde há algumas semanas assoladas por abalos de terra, constantes, permanentes, pavorosos e aterradores.
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CARLOS DE MESQUITA
Carlos Fernando de Mesquita nasceu em Santa Cruz das Flores, em 14 de Fevereiro de 1870 e faleceu em Coimbra, 16 de Maio de 1916. Bacharel em Leis, poeta e ensaísta, estudioso do Simbolismo, Carlos de Mesquita é irmão de Roberto de Mesquita, mas não teve a projecção nem a produtividade literária deste. Formado em Direito, foi professor de liceu em Viseu e leccionou as cadeiras de Língua e Literatura Francesa, Literatura Inglesa e Filologia Germânica, na Universidade de Coimbra, desde 1911 até à sua morte. É autor do romance (inacabado) O Estrangeiro e do texto Uma Viagem de Estudo a Inglaterra. Colaborou com as revistas Ave Azul e O Faialense. O seu poema «Manhã insulana» é paradigmático da ideação vaga e irracional do Simbolismo.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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ÁUREA D'ESPERANÇA
Um régulo, facínora e depravado, pertencente a uma draconiana dinastia, prendeu, em intransponível ergástulo, um gerontocrata, membro do conselho régio, só porque o mesmo opinara publicamente, opor-se à oferta e sacrifício de sete jovens, destinadas ao regalo das fantasias execráveis e dos apetites depravados, do monarca reinante.
Isto fez com que a Serra Prada, onde reinava o famigerado facínora, vivesse anos e anos, em constante estado de inquietação e insegurança sofrendo e suportando, na maior das ansiedades, os caprichos, veleidades, sarcasmos e depravações deste e de muitos outros governantes enfatuados e instáveis, déspotas destemidos, energúmenos insaciáveis, bárbaros facínoras e janízaros meliantes. Uma dinastia maquiavélica de régulos facínoras, da qual surgiu, anos mais tarde, um monarca heteróclito, perdulário e abstracto que, apesar de tudo, se afastou notória e significativamente das frivolidades lascivas e das ditaduras prementes e opressoras dos seus antecessores.
Uma áurea de esperança surgiu, então, nos ânimos dos serranos pradenses, agora libertos de férula governação, candidatos esperançados à liberdade e à vivência dos seus projectos colectivos e das suas realizações pessoais e individuais. Não pesava, agora, tão constante, lasciva e continuamente, sobre a sua vida e costumes, a maquiavélica e diabólica governação dos régulos anteriores. Porém, com o passar do tempo, os serranos cansaram-se de se sentir enfrascados de aborrecimento, arrecadando e armazenando tédio absoluto e desespero permanente, frutos dum cada vez maior afastamento do novo monarca, dos seus deveres de governante real. O rei era louco por caça e passava dias e noites nos bosques e nas florestas, na mira de acertar em tudo o que lhe surgisse pela frente. Mesmo no rigor do Inverno, quando os nevões visitavam a serra, zebrando o ar plúmbeo, impedindo e obstaculizando, na totalidade, a concretização dos apetites cinegéticos do régulo, este ainda menos se ocupava com os seus súbditos e com a governação do reino, entregando-se, então, a extravagantes façunatas e lautas comezainas, as quais, embora, não cerceando o alvedrio quotidiano dos habitantes da serra, permitiam um efluente declínio e um evidente desgaste do erário público.
O povo, embora, experimentando a suprema vivência da liberdade, estava, porém saturado. A revolução estava eminente! Se as opressões das décadas anteriores tinham coarctado a liberdade e anulado a dignidade do povo, a alienação do monarca reinante desmoralizava o sentido de viver, confundia os valores constitucionais e provocava uma angustiante insegurança e uma confusa incerteza de viver, geradora dum lenocínio galopante, entre os povos serranos.
Os ânimos exaltavam-se, as opiniões dividiam-se e as teorias contradiziam-se. Forças político-sociais obscuras digladiavam-se nas praças e nas vias públicas. O terrorismo já se fazia sentir por toda a parte. Os gritos da revolta eminente ecoavam pelos esconsos mais recônditos da serra. O monarca, porém, continuava calma, impávida e serenamente a alienar-se de tudo e de todos, preparando-se para a caça, simplesmente caçando, ou saboreando lautamente os manjares subsequentes à mesma.
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BLUETOOTH
Nos últimos anos da minha careira como professor, felizmente, tive a possibilidade pedagógica de recorrer ao uso do computador nas minhas aulas. Para além de consubstanciar uma maior motivação para os alunos, a utilização do computador permitia-me não apenas uma melhor planificação e uma mais adequada programação das aulas mas sobretudo permitia-me o recurso a metodologias mais dinâmicas, mais envolventes, mais actualizadas e, sobretudo, mais eficientes.
Comprara um computador simples e, relativamente, barato sem grandes placas ou modernas aplicações mas com o fundamental e que servia, perfeitamente, os meus intentos. Iniciando-me no seu uso e abuso, lá fui dando os primeiros passos nos, para mim, quase intransponíveis e infindáveis meandros da informática. Para além dos registos de textos, tabelas e quadros, comecei a perceber que poderia ir mais longe, servindo-me daquela quase mágica caixinha, para conectar e projectar informações através de um retroprojector, de um câmara ou de outros audiovisuais que a escola já possuía.
Certo dia, numa aula que pretendia mais dinâmica e atractiva, preparei-me para a grande aventura. Carreguei-me de sacos, malas e caixas… Computador, projector, colunas e uma data de fios que nunca mais acabava. Logo no início da aula e a muito custo, tentei ligar aquilo tudo conforme me haviam indicado. É verdade que ajuda não me faltou. Mas aquilo, nada! Quantos mais fios ligava e botões carregava, maior era a desilusão. No ecrã continuava apenas projectada a imagem da página de fundo do meu computador. Felizmente, na turma, havia alguns experts na matéria que, de imediato, me cercaram, disponibilizando ajuda, dando palpites e propondo soluções. Escolhi aquele que cuidei mais ajuizado e sabedor e mandei os outros para os seus lugares. O artista seleccionado, ligou e desligou fios, acendeu e apagou botões e luzes, mirou as máquinas de fio a pavio e concluiu com uma certeza convicta, profunda e, sobretudo, absoluta:
- Ó professor, isto não pode dar. O seu computador não tem bluetooth.
Estarreci. Então tinha comprado um computador caríssimo, moderno, com tudo o que era necessário para as minhas aulas e ele não tinha blutô! Por isso interroguei-o:
- O que é isso do blutô, que esta porcaria deste computador não tem?
Ele, muito calmo, sereno e, sobretudo, seguro, explicou, pese embora muitos outros também o quisessem fazer:
- Bluetooth, professor, é uma especificação para as redes wireless que permite ligar e trocar informações entre dispositivos como telefones celulares, computadores, impressoras, câmaras digitais, projectores e consolas de videogames digitais através de uma frequência de rádio de curto alcance. Se o seu computador tivesse Bluetooth a informação ou as imagens que o professor tem passavam para o projector e viam-se no ecrã. Assim não se pode projectar nem ver absolutamente nada.
E eis senão quando, perante o protesto e aborrecimento dos alunos, me preparava para abdicar de tudo aquilo e, recorrer ao manual e ao quadro, mergulhando e arrastando a turma comigo às antigas metodologias de uma aula tradicional, um aluno, lá do fundo da sala, levanta-se e anuncia com grande entusiasmo e um misto de vaidade:
- Ó professor, não há problema. Tenho aqui o meu telemóvel e ele tem Bluetooth! – E abandonando o seu lugar, veio até junto à minha secretária, perante a admiração de todos os outros, mostrar-me aquela intrigante mas magnífica máquina de que tanto se orgulhava. Por isso insistia:
- Pode usá-lo, professor, ele tem Bluetooth!
Amirado com aquela maravilha das novas tecnologias, indaguei:
- Tu tens um telemóvel destes? Quem to deu?
- Foi o meu pai!
- E quanto custou?
- Quatrocentos euros!
Sem que o miúdo se apercebesse, abri o Livro do Ponto e consultei a lista de alunos e os respectivos escalões. Fora-lhe atribuído, no início do ano, o Escalão A!
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AGRIDOCE
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ENTRADA
Canapés de bolachas cream-crackers barradas com creme de queijo fresco e recobertas com alface e doce de pimento vermelho.
PRATO
Bife de peru grelhado temperado com pimenta, ervas-doces, alecrim e orégãos e recheado com mortadela, creme de queijo fresco e pedaços de manga fresca, acompanhado com arroz de ervilhas de quebrar.
SOBREMESA
Morango com iogurte de soja/morango, mousse de pera e gelatina de morango.
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Preparação da Entrada: - Barrar as bolachas com o creme de queijo e colocar-lhes pedacinhos de alface encimados por montinhos de doce de pimento vermelho.
Preparação do Prato – Temperar o bife com ervas e pimenta, estendê-lo. Colocar-lhe uma fatia de mortadela ou fiambre de peru, barrar com o creme de queijo e colocar os pedaços de manga. Enrolar, prender comum palito, levar ao forno e regar com um pouco de azeite e sumo de limão. Retirar e partir às rodelas. Cozer pedacinhos de manga em água e misturar um pouco de vinho do Porto e azeite. Passar pela varinha e juntar um pouco de maizena desfeita rem água fria, a fim de engrossar. Temperar com ervas. Fazer o arroz\pelo processo tradicional. Empratar, colocando as rodelas sobre o arroz, regar com o molho e ornar o prato.
Preparação da Sobremesa – Partir os morangos, cobri-los com um pouco de açúcar e iogurte. Reduzir as peras de calda e misturar bolacha moída. Gelatina tradicional.
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FÉRIAS DE NATAL
Embora lento e moroso o primeiro período chegou ao fim, iniciando-se de imediato as ferias de Natal. Um dos prefeitos, reuniu-nos à volta da sua secretária e, sentados nas nossas cadeiras, lá fomos, aflitos e ansiosos, ouvindo as nossas notas e as dos outros, umas melhores outras piores. No dia seguinte, os alunos de São Miguel partiram para as suas freguesias, uns de carro, outros de camioneta, deixando o Seminário, novamente, quase deserto. Durante esses dias levantávamo-nos bastante mais tarde, não havia aulas, os recreios eram maiores e as horas de estudo eram em menor número e destinavam-se, sobretudo, à leitura e até nos era permitido conversar. Outras vezes íamos ouvir música e relatos de futebol para quarto do senhor padre José Franco. Não havia silêncio durante as refeições e saíamos a passear pela cidade, todas as tardes, sem ter que envergarmos o fatinho preto e, sobretudo sem irmos “afogados” no nozinho da famigerada grava preta.
Uns dias antes do Natal, fez-se o presépio, encimado por uma enorme árvore de Natal. O salão/corredor de recreio acendeu-se de sons, de cores, de imagens e lâmpadas coloridas, o que despertou em mim grande interesse e assombro, pois nunca tinha visto tantas luzinhas a piscar ao mesmo tempo e com tantas e tão variadas cores, embora, vezes sem conta, me viesse à memória o simples e rural presépio que se fazia na sala da minha casa, sem uma única luzinha que não havia electricidade na Fajã Grande. Além disso, o Carvalho de Dezembro trouxe das ilhas, para alguns alunos, muitas encomendas recheadas de doces, queijo, linguiça, biscoitos, figos passados e outras guloseimas. Até eu recebi um “cake” da América.
À meia-noite do dia de Natal, dirigimo-nos para a igreja Matriz, para assistir â Missa do Galo. Percorri, juntamente com os meus colegas das ilhas, as ruas da cidade que separavam o Seminário, da Matriz, entusiasmadíssimo com o esplendor e graciosidade das montras, com o piscar das dezenas e dezenas de lâmpadas dos arcos que ornamentavam as ruas e as praças, com o apinhado de pessoas que parecia ainda fazer as últimas compras de Natal. Entrei no templo ainda semiescuro, repleto de vultos negros, de bichanar de orações, de cheiro a velas a arder e de uma música melodiosa e suave.
Pouco depois iniciava-se a missa solene. O pároco, o padre Artur de Paiva, acolitado por dois outros sacerdotes, iniciava a celebração, rezando em silêncio e profundamente inclinado, o “Introíbo”, enquanto o coro cantava cânticos alusivos ao nascimento de Jesus. O povo, de joelhos e contrito, no templo semiescuro, batia com a mão direita no peito e inclinava, religiosamente, a cabeça e pedia perdão a Deus, enquanto o sacerdote rezava o “Confiteor”.
Pouco depois, o padre aproximou-se do centro do altar, de costas para o povo, ergueu os braços e entoou com uma voz muito alta mas martelada e ríspida:
- “Gló-ó-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis Dé-é-é-ó”.
O sacristão começou a badalar, prolongada e intensivamente, duas enormes campainhas, enquanto os sinos repicavam e, como por milagre, a igreja se enchia de luz, de cor, de som e o coro respondendo à invocação do sacerdote, continuava: “Et in terra pax hominibus…”
Passados estes momentos de êxtase, comemorativos do nascimento do Menino Jesus, a missa continuou, em latim, misturado com os cânticos do coro e o bichanar de preces, louvores e orações dos fiéis.
No fim, o celebrante substituindo a casula pela capa de asperges, dirigiu-se para junto de um presépio, armada numa das capelas laterais. Depois de o incensar com o turíbulo fumegante, tomou o Menino nas mãos, beijou-O e colocou-se no meio do cruzeiro, enquanto os outros sacerdotes, os seminaristas e povo formava uma enorme fila para também O beijar.
Regressámos a casa e havia chocolates forrados com pratas multicolores, em forma de sininhos, de bolinhas e até de guarda-huvas, pendurados na árvore de Natal
Assim como já acontecera no início do ano, o regresso dos seminaristas de São Miguel, no princípio de Janeiro, voltou a trazer ao Seminário, a alegria, o reboliço e até o barulho, que a sua ausência provocara, desfazendo uma espécie de silêncio sombrio e uma indesejada inquietude, em que aquelas paredes centenárias, como que se haviam aquietado e quase adormecido, durante as férias de Natal. Nós, os das ilhas, habituáramo-nos tão bem e de tal maneira ao convívio e à camaradagem com os alunos de São Miguel, que agora sentíamos a sua falta e já quase nem sobrevivíamos com a sua ausência, não tanto pelo vácuo quantitativo que a sua partida provocara, mas pela amizade que se havia solidificado ao longo do primeiro período e pelo convívio em que já nos havíamos envolvido mutuamente. Sem os seminaristas de São Miguel abria-se, no Seminário, um vazio monumental, uma acabrunhamento inexplicável que só o seu regresso havia de desfazer. Sem eles o Seminário nem parecia Seminário e eles bem o sabiam, porque também partiram borrifados de saudades, deixando desvendar réplicas de uma enorme pena de nos abandonarem e, até, lamentando não nos poderem levar para as suas casas e para as suas freguesias. Por tudo isso regressaram desejosos de nos reencontrar e nós, alegres, por voltar a recebê-los. Além disso trouxeram as suas malas bem recheadas de vitualhas diversas e petiscos variados que foram repartindo connosco, durante quase todo o mês de Janeiro.
A vida, um pouco a custo, lá foi retornando ao seu ritmo normal, disciplinar, formativo, de silêncio, de estudo e de oração. Voltámos a levantarmo-nos cedo, apesar de agora mal habituados e com as manhãs a despontarem gélidas, enevoadas e escurecidas. Em Janeiro, ao sairmos da igreja e ao regressarmos ao Salão de Estudo, o dia ainda não havia clareado. Depois eram as aulas com os professores cada vez mais exigentes, aquele temor inicial, de vez em quando, a diluir-se, aquela fragilidade ténue e simples dos debutantes do início do ano, cada vez a desfazer-se mais e mais, o à vontade a crescer exponencialmente e, consequentemente, as infracções às normas regulamentares a tornarem-se mais frequentes e as repreensões, as ameaças, os avisos e os castigos a agigantarem-se, em catadupa.
Agora conhecíamos melhor os cantos da casa e já não nos amedrontávamos com a penumbra perturbante daquelas escadarias, com o silêncio enigmático daqueles corredores, com os mistérios subtis daqueles recantos e até com os desassombros e simbolismos daqueles subterrâneos, cujas estórias, aos poucos íamos descortinando. Contava-se que muito deles até comunicavam com os de outros conventos femininos espalhados pela cidade e que, noutros tempos, teriam servido de esconderijos aos frades e às freiras, sobretudo, em momentos de assaltos de piratas ou de ataques dos hereges e dos inimigos da fé e do império.
Assim e, ou porque o regulamento o impusesse ou porque este nosso despontar para um mais inebriante e atrevido modo de vida o exigisse, fomos confrontados, por alturas do Carnaval, com um retiro espiritual. Terminado o passeio da tarde de Domingo Gordo, fomos conduzidos à capela da igreja de Todos os Santos, onde nos foi feita a primeira prática, durante a qual nos foi explicado o que era um retiro, as normas a respeitar durante o mesmo, assim como os apelos ao silêncio, à meditação, à reflexão e, sobretudo, à penitência e à oração. Assim permanecemos em silêncio profundo o resto do domingo, durante toda a segunda-feira, até à manhã da terça-feira de Carnaval, a rezar, a reflectir e a andar, em silêncio, para trás e para diante, de um lado para o outro, como se fôssemos uns “doidinhos”.
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O ALFAIATE, O SAPATEIRO E OS LADRÕES
(CONTO TRADICIONAL)
Havia numa pequena aldeia, nos tempos em que os mortos eram sepultados no interior dos templos, uma igreja que estava constantemente a ser assaltada por dois ladrões. O pároco, já velho, muito agastado com tais crueldades e incapaz de impedir tais atrocidades, pediu aos seus paroquianos, que todas as noites ficassem, à vez, a vigiar a igreja dois homens da paróquia, a vigiar a igreja.
Certa noite coube a dois moços, jovens e ávidos de se divertirem durante a noite e que a todo o custo se queriam livrar daquela tarefa. Para isso contactaram o alfaiate e o sapateiro, os quais, mediante bom pagamento, decidiram ficar a guardar a igreja no lugar dos rapazes.
Os dois vigilantes, ao anoitecer, entraram no templo e subiram para o coro a fim de assim estarem mais escondidos e não serem vistos pelos ladrões. Era Inverno e a noite era longa, por isso, resolveram aproveitar o tempo, começando cada um a trabalhar no seu ofício. Lá pela noite dentro ouviram um barulho estranho. Eram os ladrões que chegavam para roubar a igreja. O alfaiate e o sapateiro, cheios de medo, calaram-se e ficaram muito quietos sem fazer barulho, deixando os ladrões entrar no templo, à vontade e com toda a liberdade. Os ladrões vinham carregados com sacos em que traziam não apenas dinheiro mas também alguns objectos roubados noutros lugares e estenderam um lençol no meio da igreja, colocando em cima dele tudo o que traziam de roubos e assaltos anteriores, a fim de verem melhor e apreciarem o seu pecúlio.
Não satisfeitos com o que tinha procuraram, no templo, mais alguma coisa que aumentasse o fruto dos seus roubos. Porém, no momento em que procuravam por toda a igreja alguma coisa que lhes interessasse, o alfaiate, levantando-se, gritou com toda a força do seu peito, mas com voz roufenha e muito disfarçada: "Acudam aqui, defuntos". Ao que o sapateiro logo respondeu gritando ainda com mais força, mas alterando a voz, como se fosse em eco: "Já lá vamos todos, já lá vamos todos juntos."
Os ladrões, cuidando que eram realmente os mortos a falar, apanharam tamanho susto que nem mais um minuto ficaram ali parados, fugindo da igreja a sete pés, como faíscas de labaredas. Largaram em debandada pela aldeia abaixo, deixando no meio da igreja tudo o que traziam dos seus roubos anteriores. O alfaiate e o sapateiro, apanhando-se sozinhos, correram logo para junto do que os ladrões haviam deixado sobre o lençol, no meio do templo. No entanto, depois de muito correr e já cansados, os ladrões pararam para descansar. Um deles disse: “Não devíamos voltar à igreja, para ver o que lá havia. Ao que o outro retorquiu: Eu não vou, pois aquilo talvez são coisas ou castigo do diabo e contra o diabo nós não podemos fazer nada".
Apenas o outro voltou à igreja, Entrou à socapa e, escondendo-se, pôs-se a escutar o que se passava. Naquele momento, porém, o alfaiate e o sapateiro, depois de terem dividido quase toda a fortuna pelos dois, disputavam, ferozmente, um real. Mas não havia maneira de se entenderem. Como a igreja estava escura e o ladrão não via nada aproximou-se e ao chegar junto deles disse:
- "Ai, meus amigos! Muitos devem ter sido os mortos que que vieram, pois nem toca a real a cada um".
Dito isto e cheio de medo, pôs-se em fuga e muito assustado foi contar ao outro o que se passaram. Fugiram ambos dali e nunca mais voltaram a assaltar a igrejinha daquela terra.
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DEPOIS DO CAIR DAS FOLHAS
Das árvores sem folhas
Cai um silêncio acabrunhado:
Apenas o chão se cobre
De um amarelo rude.
Nos ramos ressequidos,
Entre limos e musgos,
Há uma gotinha de água.
Trouxe-a o vento norte.
A terra tímida, escurece,
E salpica-se de brumas
Como se fosse o fim do dia.
Ao longe, o mar soluça, baixinho,
Como se teimasse em adormecer.
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FESTA DE SÃO PEDRO EM SÃO CAETANO
São Pedro, tradicionalmente, é considerado o padroeiro dos pescadores e dos homens do mar. Daí que muitas das localidades que fazem da faina marítima, uma das suas principais actividades económicas, habitualmente, o venerem e celebrem. A freguesia de São Caetano deste sempre foi considerada terra de pescadores e marinheiros, sendo que, grande parte das famílias que ali residiam, encontrava, no mar, uma boa parte do seu sustento. Alguns dos seus habitantes tornaram-se valorosos baleeiros, outros dedicaram-se, com arte e empenho, à pesca da albacora, enquanto muitos faziam da pesca artesanal, em pequenos barcos, muitas vezes construídos por eles próprios, o seu ganha-pão. Além disso, a costa da orla marítima desta freguesia e a enorme baía que lhe fica em frente são abundantes em peixes, moluscos e crustáceos. Tal abundância convidava a que muitos dos seus habitantes dedicassem grande parte do seu tempo livre à pesca de cana, ou à apanha de polvos, caranguejos e lapas. Mas o mar, por vezes, é traiçoeiro e cruel, repleto de perigos e intempéries. Era pois imperioso solicitar o auxílio sobrenatural, implorando ajuda celeste, através de São Pedro, também ele pescador. Assim e naturalmente surgiu a devoção a este santo, consumada numa festa de que ainda hoje há memória e que se fazia, na freguesia, há mais de oitenta anos. O local escolhido para celebrar e homenagear São Pedro era o largo do Caminho do Meio, incorporado entre as adegas, símbolos da labuta e da simplicidade deste povo, que ao mesmo tempo que festejava o santo, manifestava, conjuntamente e em alegres folguedos, a sua alegria. A ideia de celebrar uma festa em memória de São Pedro, solicitando a sua protecção aos pescadores, terá sido impulsionada pela senhora Rosinha Simas. No dia de São Pedro, no Largo do Caminho do Meio, fora da sua adega, esta generosa senhora, colocava uma mesa com bebidas e sobre a qual, também, eram colocadas ofertas que as outras pessoas levavam para arrematar, às quais se juntavam rosquilhas de aguardente feitas por aquela senhora e que oferecia a todos os presentes. Ao lado e a ornamentar o espaço, uma bandeira de S. Pedro pintada à mão.
Desde há alguns anos esta festa foi recuperada na sua simplicidade original e aquele local foi reestruturado e renovado, sendo erguido, no mesmo um nicho em honra de S. Pedro É uma festa de cariz popular e religioso. Celebra-se missa campal junto ao nicho, seguindo-se a procissão e arraial onde há sardinhada para todos os participantes e, em louvor de São Pedro, distribuem-se biscoitos de massa sovada cumprindo-se, assim, uma tradição, dando-se continuidade ao que se fazia há mais de oitenta anos.
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LIZARDA
“Lizarda” é mais um dos vários rimances que fazem parte do património cultural da Fajã Grande. Foi recolhido pelo poeta, crítico literário e investigador Pedro da Silveira, que o publicou no nº 7 da “Revista Lusitana” (Nova Série), em 1986. Este e outros poemas romanceados eram contados oralmente aos serões pelos nossos avós e por outras pessoas mis velhas. Assim se foram transmitindo de geração em geração, pelo menos até à década de cinquenta, altura em que ainda se ouviam com alguma frequência. Pedro da Silveira recolheu “Lizarda” através da declamação do mesmo pela senhora Maria Fernandes Rodrigues, com cerca de setenta anos, que morava na rua das Courelas e era a madrinha da minha mãe, no longínquo Verão de 1942. Segundo o testemunho de Pedro da Silveira, a Senhora Fernandes ter-lhe-á dito que a trova estava incompleta mas já não era capaz de a declamar melhor. Mais acrescentou que a aprendera com uma sua tia, já falecida. Rezava assim o referido rimance:
“No jardim do seu recreio, passeava uma donzela,
Tão Linda como engraçada, mais linda do que as flores belas.
O seu nome era Lizarda, única filha herdeira,
Filha do rei d’Aragão, por ser da casa primeira.
Seus desvelos e cuidados era um jardim de flores,
Que até ali nã cudara que havia deus dos amores.
Retirou-se para outras quintas, suas aias divertia;
Com conversas de cristal, alegre passava o dia.
Naquele monte sobranceira, um príncipe à caça andava.
Lizarda lhe pôs os olhos, tão simples como inocente,
Logo com seta de amor seu peito ferido sente.
«Vem cá, minha rica ama, descreta entre as demas flores,
Vai-me saber daquele homem, se ele morre dos meus amores.»
«Senhora ama e prioresa, isso à minha conta fica,
Mas recolha-se Vossa Alteza, recolha-se que nã convém
Arriscar a sua vida por amor dum querer bem.»
«Daquele monte sobranceiro, mirando este jardim
Eu vi estar uma flor que parecia um jasmim.»
«Essa flor, que voz deseja, ela mora aqui, Alteza,
É deste jardim senhora, é deste reino princesa.»
«Tu estás cá, amante, minha feição adorada?»
«Eu estou cá, luz dos meus olhos, minha rica prenda amada.»
«Dá-me cá esses teus braços que eu neles me quero ver,
Quero aparcar este fogo que em meu peito sinto arder.»
«Toma lá estes meus braços, também o meu coração;
Também podeis aceitar por esposa a minha mão.»
«Adeus aias e criadas, minhas aulas ajuntai,
Que eu pretendo, esta noite, sem demoras me ausentar.
Adeus aias e criadas, adeus jardim, adeus flores,
Que eu pretendo, esta noite, ir com o deus dos amores.
Adeus pai da minha alma, adeus mãe da minha vida,
Que tão má paga vos deu, vossa prenda mais querida.»”
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SABEDORIA
“A sabedoria consiste em compreender que o tempo dedicado ao trabalho nunca é perdido.”
Ralph Emerson
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VOZ DO SILÊNCIO
Noite intensa… Acordei e assomei à janela como se quisesse desfazer o enigma de um pesadelo. O mar, um torrão de espuma prateado e o céu a teimar que se havia de espelhar nele. Mantenho-me vigilante porque sinto que um sopro de voz ciciada, abafa o murmúrio roufenho dos grilos. Algum tempo depois, no entanto, volto a deitar-me cuidando que se me levantasse, definitivamente, havia de dissipar, por completo, o pesadelo que a voz deste silêncio tão profundo, cada vez parecia tornar-se mais real. Afigura-se-me que tombavam pedras gigantes sobre os frágeis arbustos do jardim em frente. Levanto-me, de novo, e volto a espreitar o silêncio, através da janela. As ruas estavam apinhadas de gente, apressada, sisuda, destemida, mas silenciosa. Tento sintonizar o ciciar que ouvira, inicialmente, quando assomei à janela... Mas nada. Nem um som. Tudo parece silêncio e tudo se transforma em silêncio, mas num silêncio que se torna preocupante porque sobre os arbustos do jardim, em frente, já não caíam pedras gigantes mas blocos de neve, enigmáticos, mudos, silenciosos e brancos. Em compensação, a parecer quebrar este silêncio, apenas o irritante, permanente e martelado tique taque do Asónia, colocado numa peanha, presa a uma parede da sala, como se fosse um santo de igreja. Mas não há bater de horas, nem rumores de maresia ou roçar de vento nos ramos dos salgueiros. Um ramo desprende-se, morto, batendo-me na porta, sem ruido, como se fosse uma criança recém-nascida, mudo, silencioso, dissipando, na noite cada vez mais intensa, um profundo silêncio que, apenas, se desdobra em eco. E o céu cada vez cada vez mais a teimar em espelhar-se no oceano.
Agora é a voz ciciada que volta a fortalecer todos os silêncios, perturbando-me, cada vez mais. A manhã está distante e reveste-se de um carisma que a torna quase inatingível. Os cães não uivam e o canto dos galos tornou-se um enigma indecifrável. Tudo se transformou num silêncio opressivo, vácuo e, aparentemente, inútil.
Decido sair, mas todas as portas estão obstruídas e, tentar saltar pelas janelas, para além de correr o risco de me considerarem saído de um manicómio, teria que pular por cima dos arbustos do jardim, desfazendo os blocos de neve e quebrando o silêncio em que florescem. Salto. Subo as escadas do sótão, abro uma de vidro fosco e saio. Conquisto a rua, como se fosse uma ilha, deserta, sem ruídos, sem árvores, sem vento e sem pessoas, Lá ao longe abanam suspiros de pessoas mortas, saídas de túmulos cinzentos onde caem todos os ecos dos ruídos ainda existentes. Ouve-se um silêncio agonizante sob as campas dos que não se erguem dos túmulos. A morte parece entrelaçar-se com a vida e cercear-lhe todos os silêncios.
Uma voz doce de mulher chama-me, sem falar. Traz ao peito, como se fosse um colar, sementes de trevo amarelado. Quer avisar-me, prevenir-me, dizer-me que não me deite junto com os mortos, porque eles são os donos e senhores de todo este silêncio que me rodeia, em que emirjo.
A mulher insiste, desenhando com os braços gestos de uma tremenda inquietação. Não a conheço porque traz sobre o rosto um lenço ornado com flores, semelhante ao que usava a minha mãe, no dia em que a vi pela última vez e que lhe tapa o rosto, quase por completo. A intensidade da noite desfez-se e a manhã cresce. Já não há sinais nem do mar prateado, nem do céu estrelado. Os mortos, mas apenas os que se ergueram dos túmulos, conversam, em silêncio, com a mulher do lenço igual ao da minha mãe Os mortos evadem-se como se fossem nuvens de fumo e o rosto da mulher, a do lenço igual ao da minha mãe, apesar de apenas meio descoberto, está ornado de silêncio mas transmite-me um gigantesco sorriso de confiança.
De súbito, todas as portas da minha casa se destrancam e todas as janelas se abrem. O dia desabrocha silencioso, mas com um sol enternecedor. Há pássaros a entoarem, em silêncio hinos de louvor à natureza. Prossigo este caminho de silêncio. As ruas abrem-se como se fossem rios secos, sem necessidade de pontes.
Um clarão abre-se, sobre as sombras dos salgueiros. Pela primeira vez, nesta noite de silêncio, ouço, ao longe o doce repicar de sinos, como se fosse o baptizado duma criança acabada de nascer. Abro a janela e apetece-me berrar, juntar-me à voz dos sinos e desfazer por completo aquele tenebroso e inquietante silêncio.
… Mas é o despertador toca, quebrando todos os sonhos, desfazendo todos os silêncios, esclarecendo todos os ruídos…
Afinal é no escuro da noite e no emaranhado dos sonhos que a voz do silêncio se torna mais ruidosa e menos aterradora.
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OSO
“Janeiro geoso, Fevereiro nevoso Março frio e ventoso, Abril chuvoso, Maio calmoso faz um ano formoso.”
Interessante adágio que procura e usa adjectivos terminados em oso, para caracterizar os primeiros cinco meses do ano e rimarem, assim, com a melhor qualidade que uma sociedade agrária, com uma economia dependente do tempo, pretendia – formoso. Na Fajã Grande na década de cinquenta, o melhor que podia acontecer à população era um haver um ano formoso, isto é, um bom ano agrícola, muito fértil, bastante produtivo e farto. Ora segundo este dito popular, era da própria conjugação do diferente estado do tempo, ao longo dos cinco primeiros meses do ano, que tal dependia. Assim mesmo que Janeiro fosse um mês terrível com um inverno rigoroso e com geadas frequentes e contínuas, que em Fevereiro nevasse dia e noite ou o mês fosse repleto de nevoeiros e caligens e ainda que, até em Março fizesse muito frio e o vento soprasse em fúria e ocorressem grandes e fortes vendavais, mas se em Abril chegasse a chuva benfazeja e Maio trouxesse a calma atmosférica, isto é um tempo soalheiro, as colheitas seriam excelentes.
O povo contentava-se com pouco, pois mesmo do mau, neste caso do mau tempo e das terríveis invernias da ilha, o povo entendia que um pouquinho de bom tempo era o suficiente para a sua felicidade, que consistia, na realidade, na fartura de um ano agrícola.
Desejos limitados, submissos, humildes, conformados e pouco ambiciosos!
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FOLGAS E PASSEIOS
As quintas-feiras e os domingos eram dias diferentes dos restantes, uma vez que, nem num nem noutro destes dias, havia aulas. Era também na manhã destes dias, com maior destaque para as manhãs de domingo, que os alunos de São Miguel recebiam as visitas dos seus familiares. Embora estas se realizassem durante as horas de estudo que preenchiam as manhãs, constituíam momentos de grande agitação e reboliço na casa. Para além do convívio, do matar saudades, do rever familiares e amigos, os alunos de São Miguel ainda eram obsequiados com cestas de fruta, frascos de doce, pacotes de bolachas, biscoitos, malassadas e muitas outras vitualhas. Geralmente levavam-nas para o refeitório e repartiam-nas com os das outras ilhas, sobretudo com os colegas do lado. O Manuel Faria e eu éramos abastecidos com os fartos mananciais pantagruélicos que traziam os familiares do Lima Oliveira, do João Carlos, do Gualter e, sobretudo, do Jorge Nascimento e que até incluía frascos de “malagueta” moída e em pasta, vindos sobretudo das zonas rurais da ilha, com que barravam o pão como se fosse doce, mas que nós, os das outras ilhas, rejeitávamos por não estarmos habituados àquele petisco, devido ao acentuado picante que continha. Parecia que nos “queimava” a boca. Era também nas manhãs das quintas-feiras que, de vez em quando, se realizavam os passeios grandes. Transportados em camionetas, percorríamos uma boa parte da ilha, visitando a Lagoa, a Ribeira Grande, as Sete Cidades e as Furnas. Nos domingos festivos ou por altura das grandes solenidades e no dia de São Sebastião, deslocávamo-nos até à igreja Matriz, a paróquia a que pertencíamos, assistindo à missa e a outras celebrações litúrgicas. Para além do pároco e de dois curas, acorriam ali muitos outros sacerdotes já reformados, velhinhos e residentes em Ponta Delgada. Foi aí que pela primeira vez vi um cónego e um monsenhor: o senhor Cónego Pereira, uma das mais proeminentes e cultas figuras da igreja açoriana e monsenhor José Gomes, na altura ainda reitor do Santuário de Santo Cristo.
O que mais me alegrava nestes dois dias da semana eram as tardes, porque eram as únicas vezes que saímos de casa durante a semana, pese embora o tivéssemos que fazer trajando fato preto e gravata. Mas eu adorava as tardes destes dias porque eram destinadas a agradáveis e belos passeios pela cidade e arredores. Seguíamos, acompanhados por um dos prefeitos, pelos passeios das ruas, sempre em fila, até ao Relvão, ao Jardim António Borges, ao Alto da Mãe de Deus, ao Campo de São Francisco, à ponta da Doca, a Santa Clara, à Fajã de Baixo e, por vezes, ao campo Marquês Jácome Correia para assistir aos jogos de futebol, do campeonato de São Miguel. Ao chegar ao local de destino, a “bicha” era desfeita e assim tínhamos oportunidade de conversar e brincar todos, uns com os outros, embora, o Manuel Faria, o Jorge Nascimento, o Lima Oliveira e eu abdicássemos do desfazer-se da dita cuja, acabando, geralmente, por continuarmos juntos, por já termos criado hábitos de permanência conjunta. O Jorge Nascimento porém, parava com muita frequência, aqui e além, o mesmo acontecendo com o António Filomeno, com o Gualter e com alguns outros. É que sendo eles naturais da cidade de Ponta Delgada, muitas pessoas que se cruzavam na rua connosco conheciam-nos e paravam para falar com eles. Eu invejava-os de sobremaneira por isso, e voltava a entristecer-me, por não ver ninguém da Fajã com quem pudesse falar e saber o que por lá se passava.
Antes do regresso ao Seminário, os passeios terminavam geralmente com um percurso pela avenida marginal, durante o qual me deleitava a apreciar todo o movimento de entrada e saída de embarcações na doca. E quando entre elas aparecia o Carvalho era um momento único, inesquecível de grande alegria e deleite para mim.
De regresso a casa e, depois de retirarmos e arrumarmos o fatinho preto e a gravata, estes dias continuavam iguais aos outros, com os momentos de oração habituais e as horas de estudo destinadas a preparar as aulas do dia seguinte. Apenas o jantar nestes dias era diferente. É que sendo também a quinta e o domingo as tardes de folga dos cozinheiros e empregados, era-nos servido apenas pão, chá e queijo, o que para mim era excelente.
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E SE O HOMEM FOSSE CARECA
Pelas notícias que circularam hoje, em diversos meios de comunicação social, soube-se que os homens, na Coreia do Norte, serão obrigados, a partir de agora, a adoptar um penteado exactamente igual ao do seu líder e chefe supremo da nação norte-coreana, o senhor Kim Jong-un ou Kim Jung Woon, que, convenhamos, até tem um corte de cabelo nada desajeitado e, além disso, muito bem estampado num cabelo, aparentemente, muito forte, robusto e vigoroso. Deixou, pois de haver escolha no que a cortes de cabelo diz respeito, e há que adoptar, em toda o reino da Coreia do Norte, um penteado único, num corte de cabelo modelo, o que redunda num enorme benefício para o povo, porque assim terminam, definitivamente, as indecisões de se ir ao barbeiro e ter que escolher um modelo de corte entre o de Cristiano Ronaldo ou Niro Dicaprio.
Acrescente-se que o governo de Jong-un decretou, também, que os homens devem cortar o cabelo de 15 em 15 dias, a fim de que não deixem de se parecer com o seu líder. Outra grande vantagem, mas neste caso, apenas para os barbeiros que assim vêem o seu negócio a florescer.
Sorte tem, no entanto, os norte-coreanos em geral. Imaginemos o que aconteceria se, por azar, o homem fosse careca… A propósito de careca, a nova lei parece ser omissa nestes casos, sabendo-se apenas que o recurso a perucas também é proibido na Coreia do Norte.
Não se lembre o nosso governo de uma lei semelhante, que obrigaria todos os portugueses a usarem um corte de cabelo igual ao Paulo Portas…
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ABRAÇO INICIAL
Doce é o anúncio,
Voluptuosa a espera,
Sublime o encontro,
Contagiante o convívio…
Mas o melhor de tudo
É a alegria
Do abraço inicial.
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RENASCIDA DA LAVA
O povoamento do local onde hoje se situa a freguesia de Santa Luzia do Pico, remonta, muito provavelmente, aos primórdios da chegada dos primeiros povoadores à ilha montanha, neste caso oriundos do Faial e enviados por Joss Dutra que “estando à sua janela, vendo esta ilha do Pico, mandou um barco de gente para a povoar”. Fê-lo, no entanto, Joss Dutra, algum tempo depois de Fernando Álvares Evangelho, já ter entrado na ilha, pelo sul, saltando “em terra onde se diz o penedo negro, e com ele um cão que trazia”.
No entanto só quase dois séculos depois, em 1617, esta localidade foi elevada à categoria de freguesia, sob a invocação de Santa Luzia, tendo, durante os anos anteriores pertencido e estado dependente da vizinha freguesia de Santo António. Durante esses anos, nos finais do século XVI e a expensas de um dos seus habitantes, Vicente Pereira Furtado, foi construída uma ermida dedicada a Santa Luzia. Tratava-se de um templo pequeno, pobre e coberto de colmo que, apesar de tudo, serviu de igreja paroquial durante vários anos, situando-se, junto ao altar-mor, o túmulo do seu fundador.
Foi desta modesta ermida, destruída em 1718, a quando da crise sísmica e eruptiva que destruiu praticamente tudo o que era construção humana e cobriu a terra com uma espessa camada de lava, escoada em grande largura e por uma extensão de nove quilómetros, até ao mar, que nasceu a actual igreja paroquial de Santa Luzia. Porém a construção deste templo, já com a categoria de igreja foi lenta e por fases, dadas as dificuldades económicas existentes. Em 1800 voltou a ser reedificado, obtendo então, ao que parece, a fisionomia actual, embora sem as torres. Só em 1844 é que se procede à construção de uma das duas torres assimétricas que possui e só em 1876 é que foi pintado o retábulo do altar-mor e construída a outra torre.
Na ermida primitiva celebrou-se durante muitos anos, no início do povoamento, o culto pagão de oferenda dos olhos de animais, acompanhado por uma prece causada pelo medo de perder a visão. Possivelmente e porque a maioria das oferendas seriam olhos de galos, essa celebração ficou conhecida por Festa dos Galos. Mais tarde este culto terá sido “baptizado” pela igreja, dedicando o templo a Santa Luzia, padroeira dos oftalmologistas e dos que têm falta de visão.
A freguesia de Santa Luzia do Pico estende-se desde o interior da ilha até à orla marítima e é composta por várias localidades, como o Canto do Mistério, os Mistérios de Santa Luzia, os Fetais, o Lajido do Meio, o Meio Mundo, a Miragaia, a Ponta da Baixa, a Ponta Negra, a Rua de Cima, o Lajido, os Arcos e o Cabrito, localizados estes últimos, junto ao mar. É nestes lugares mais próximos do mar que existem várias ermidas como é o caso da Ermida de Nossa Senhora da Pureza, cuja construção recua ao século XVII, a Ermida da Rainha do Mundo edificada no mesmo século e a Ermida de São Mateus da Costa, construída no século seguinte.
Além destas construções, a marca humana na paisagem da freguesia é ainda possível ver-se no Império do Divino Espírito Santo e em muitos outros edifícios que se evidenciam, pela sua grandiosidade arquitectónica.
Em Santa Luzia localiza-se uma das Zonas da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, neste caso a Zona Norte, onde ao longo de muitos séculos se produziu um dos mais famosos vinhos Verdelhos dos Açores, que era exportado para a Europa continental, chegando a ser servido à mesa dos czares da Rússia. Este vinho tem o segredo da sua qualidade nas lavas negras, onde a pedra de cor preta era fortemente aquecida pelo calor do Sol, dando assim origem a um vinho licoroso, elevando-lhe o teor alcoólico.
A história desta freguesia é profundamente marcada por duas erupções vulcânicas, uma ocorrida no século XVI e uma outra nos princípios do século XVII, mais precisamente em 1718. Esta última erupção teve grande violência, tendo procedido à expulsão de grandes quantidades de lava, cujos rios, em alguns casos, chegaram a percorrer distâncias de nove quilómetros até atingirem o mar, entre o Porto do Cachorro e o Lajido, matando pessoas e animais, destruindo casas e campos, desfazendo tudo o que até aí havia sido construído e edificado pelo homem. Dos que sobreviveram uns decidiram reconstruir de novo e sobre a própria lava, aquilo que o infortúnio lhes havia retirado, outros, talvez porque totalmente aniquilados nos seus bens e nos seus haveres, decidiram partir. Um deles chamava-se José Pereira de Azevedo.
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O DESCANSADOURO DO PICO AGUDO/PAUS BRANCOS
Na primeira metade do século passado, o descansadouro do Pico Agudo/Paus Brancos era um dos maiores da Fajã Grande, embora fosse dos menos utilizados, sobretudo, devido à distância do povoado e por servir pouco mais do que meia dúzia de lugares. Situava-se no caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros, mas já bastante longe do povoado, muito além do seu congénere da Escada Mar, já quase na Alagoinha, precisamente, encastoado entre os dois lugares que lhe davam o nome e no início das canadas que davam para um e outro daqueles lugares. Do lado da Rocha, ou seja à esquerda de quem subia na direcção dos Lavadouros, ficava o lugar dos Paus Brancos que se prolongava pela própria Rocha. Quem circulava naquele caminho, poderia ver, do outro lado, uma pequena elevação de terreno, em forma de pico, bastante delgado e que dava nome ao lugar.
O Descansadouro estendia-se numa grande área rectangular, paralela à estrada e, geralmente, nunca se enchia de homens, pese embora servisse bastantes lugares: Curralinho, Portalinho, Alagoinha, Lavadouros, Mateus Pires, Horta das Abóboras, Rocha da Alagoinha, Paus Brancos e Pico Agudo. Para além de dar descanso aos homens que acarretavam molhos ou outras cargas trazidos dos campos que possuíam nestes lugares, este descansadouro também dava abrigo a animais sobretudo aos que puxavam corsões, pois sendo aquelas terras muito distantes das casas, regra geral recorria-se a estes meios de transporte, uma vez que assim, numa única viagem, acarretava-se o que às costas seria feito em dez, vinte ou mais. Era sobretudo feitos, cana roca e lenha que se acarretava dali, em corsões. Uma vez que na Alogoinha e nos Lavadouros havia boas pastagens, também descansavam ali muitos habitantes da freguesia, nas idas e vindas em que iam levar ou buscar o gado aquelas paragens.
O Descansadouro do Pico Agudo/Paus Brancos era tinha, geralmente, um aspecto sombrio, acinzentado, que o tornava enigmático e quase mítico. Ali, encastoado entre um pico e a rocha, transformava-se num espécie de vale, onde corriam, incessantemente, murmúrios de sonhos perdidos, sonhos assustadoramente desfeitos e lamentos, inconformadamente, cerceados pelo destino.
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AD EXTIRPANDA
A bula “Ad extirpanda” foi promulgada pelo papa Inocêncio IV, em 15 de Maio de 1252, sendo confirmada, sete anos mais tarde, por Alexandro IV e em 3 de Novembro de 1265 por Clemente IV. Bem se poderia chamar a “Bula dos Quartos”
Esta bula tornou-se célebre devido ao seu conteúdo ser pouco abonatório dos princípios evangélicos que a Igreja Católica anuncia ao mundo, uma veze que decretava que a heresia era una razão de Estado, pelo que, a fim de a evitar, criava a Inquisição e não só autorizava como, também, apoiava e incentivava o recurso à tortura física, moral e psicológica como meio legítimo para obter a confissão dos hereges. Pior ainda, pois a malfadada bula decretava a pena de morte e a condenação a serem queimados vivos numa fogueira todos os que recaíam nas suas doutrinas e práticas heréticas e a confiscação dos seus bens. A bula, finalmente, concedia ao Estado una parte de los bens confiscados aos hereges declarados culpados.
Muitos povos, entre os quais os albigenses foram massacrados com as determinações desta bula que mais parecia obra satânica do que divina.
Recorde-se o currículo destes papas: Inocêncio IV era conde de Lavagna, Sinibaldo Fieschi, sendo eleito papa em Junho de 1243 depois da libertação dos dois cardeais aprisionados pelo imperador Frederico II. Reinou no trono de S. Pedro até Dezembro de 1254. No ano seguinte à sua eleição, iniciou a reforma do Colégio Cardinalício e um ano depois, todos os cardeais iniciaram o uso de um capelo vermelho honorífico, e o Colégio atingiu uma tal importância que as suas reuniões tinham o mesmo poder que os antigos sínodos, exercendo com o papa o governo centralizado da Igreja. O poder da Igreja tornou-se tão forte que permitiu a Inocêncio IV destronar o imperador Frederico II. no Concílio de Lyon. A criação da Inquisição foi a sua obra principal, embora lhe seja reconhecido o mérito de ter imposto certos limites aos procedimentos muitas vezes pouco ortodoxos que se empregavam para obter confissões dos hereges. Por sua vez, Alexandre IV foi Papa de 12 de Dezembro de 1254 até a data da sua morte, em 25 de Maio de 1261. Chamava-se Reginaldo Conti e foi elevado a cardeal pelo seu tio, o Papa Gregório IX, em 1227. Prosseguiu a guerra contra os descendentes do imperador Frederico II. Opôs-se à sucessão no trono imperial alemão de Conradino. Viveu quase sempre fora de Roma, por causa do conflito entre guibelinos e guelfos. Ocupou-se do governo da Igreja, procurando a união com as igrejas gregas. Promoveu a influência dos franciscanos, intervindo na universidade de Paris em favor desta ordem mendicante, e também dos dominicanos. Finalmente Clemente IV, nascido Guy Foulques, foi papa de Fevereiro de 1265 a Novembro de 1268. Foi soldado e advogado, nesta última qualidade foi secretário de Luís IX de França, a cuja influência deve, provavelmente, a sua eleição.
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GUILHERME READ CABRAL
Guilherme Read Cabral nasceu em Portsmouth, Inglaterra, em 1821 e faleceu em Ponta Delgada, em 1897. Veio muito novo para Ponta Delgada, na companhia do pai, irmão do cônsul inglês, William Harding Read com quem foi educado. Estudou em S. Miguel e tornou-se cidadão português adoptando mesmo o apelido Cabral de seu cunhado, António Bernardo da Costa Cabral, futuro Marquês de Tomar. Fez uma carreira burocrática nas Alfândegas, tendo sido director das Alfândegas do Funchal, Horta e Ponta Delgada, tornando-se um especialista em matéria alfandegária, sobre a qual escreveu várias obras. Foi governador civil do distrito da Horta, entre 1893 e 1894, numa época difícil no referente a abastecimento de cereais, o que o levou a publicar uma proclamação justificativa.
Recebeu os galardões de Comendador da Ordem de Cristo e Cavaleiro da Torre-Espada. No campo literário, fez parte da geração romântica de Ponta Delgada, que se desenvolveu na roda de Castilho, quando este habitou a cidade. Colaborou assiduamente no órgão do grupo, Revista dos Açores, principalmente como poeta.
As suas obras principais são: Breves considerações sobre a simplificação do serviço das Alfândegas, seu pessoal e protecção ao comércio do distrito de Ponta Delgada, Compêndio de Legislação fiscal, Proclamação aos habitantes do distrito da Horta, Horta, Glórias e primores de Portugal e No interior da terra e nas profundezas do mar.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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PESCA DO CHICHARRO EM SÃO CAETANO
Encastoada entre o mar e a montanha, edificada nomeio de encostas arenosas e escarpadas, rodeada por terrenos pedregosos e pouco férteis, a freguesia de São Caetano, cedo se voltou para o mar, procurando nele a abundância que escasseava em terra. A extensa costa de que a freguesia desfruta, a enorme baia em que se localiza e a grande variedade e abundância de espécies de peixes existentes no mar que a circunda fizeram com que, grande parte dos seus habitantes fizesse da pesca a principal fonte de rendimento, assumindo-a como profissão, tornando-se pescadores destemidos valorosos, exímios e competentes.
Mas foi a pesca do chicharro que, desde os tempos mais recuados, teve mais relevo na economia das gentes de São Caetano, sobretudo por se tratar de uma pesca simples e sem necessidade de recursos muito dispendiosos. Esta pesca era feita nos chamados barcos de “boca-aberta”, muitos dos quais construídos na própria freguesia. Tratava-se de pequenos embarcações, movidas a remos e que eram de dois tipos: os barcos de duas de proas, maiores e mais robustos e as lanchinhas que se distinguiam dos barcos não só por serem mais pequenas mas também porque eram traçadas à ré. Para além do leme e dos quatro remos, à direita o “dente da ré” e o “de proa” e à esquerda o “dente d’avante” e o “da boga”, cada embarcação ainda possuía o “enchelavar”, constituído por um arco feito com varas de “araçaleiro” que prendia um saco de rede e, ainda, de uma luz, de construção artesanal, alimentada com azeite de toninha ou de albafar, colocada na borda da embarcação, a fim de cegar o chicharro, facilitando a sua captura dentro da rede, embora tisnando, exageradamente, o marinheiro que a segurava. Mais recentemente recorria-se ao uso da “stilena”, que por vezes, quando o dono da embarcação a não possuía, era alugada.
O peixe, inicialmente, era engodado com uma mistura de batata-doce ou branca ou abóbora, com os primeiros chicharros apanhados. Nas embarcações maiores o “enchelavar” era preso e suspenso na água com o “pau da tralha”, cujo objectivo era rentabilizar o processo de pesca.
Chegados a terra, o peixe era dividido em soldadas, sendo uma para o mestre, uma para cada um dos marinheiros, uma para a embarcação e outra para a luz, sendo também retirado o dízimo, cujo dinheiro resultante da venda era entregue ao guarda-fiscal, então, existente na freguesia.
Ao ter conhecimento da chegada do barco, muita gente acorria ao porto. Uns pretendiam comprar o peixe, outros, simplesmente, ajudar a varar o barco, sendo, neste caso contemplados com uma “varagem” – uma pequena quantidade de peixe. O chicharro era vendido em latas quadradas, com cerca de 20 litros, o equivalente a 15 kilos, a 3 4 ou 5 escudos cada.
A pesca ao chicharro foi a que maior expressão teve em São Caetano e era a que dava mais rendimento às famílias. Os barcos chegavam ao porto, descarregavam e os pescadores iam vender o peixe, em carros de bois, em burros e, na maioria das vezes às costas dentro de canastras ou das próprias latas. Também havia pescadores que vinham de noite com a sua carroça para comprar o charro no porto e irem vendê-lo para outras freguesias.
Em Outubro e Novembro a compra do charro aumentava substancialmente, com o objectivo de o salgar para o Inverno, altura em que o pescado fresco rareava..
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O PODER DE PERDOAR
"A pessoa desprovida do poder de perdoar é desprovida do poder de amar"
(Martin Luther King)
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ESTUDO E FUTEBOL
De todos os espaços do Seminário Menor de Ponta Deçgada, aquele onde passávamos mais tempo, quando acordados, era o Salão de Estudo. Com um horário muito completo, rígido e rigoroso, onde eram indicados com grande pormenor, os tempos de aulas, os recreios, as refeições, os tempos de oração e até os dias e as horas em que cada um devia tomar banho, naquela instituição de ensino diocesana, não faltava tempo para o estudo. Este tinha um estatuto especial, um salão próprio e um tempo excessivo, com um total de quatro horas diárias. Uma logo de manhã entre a missa e o pequeno-almoço, duas à tarde, entre a última aula e o jantar e uma quarta à noite, antes de nos deitarmos. Durante estas horas, vigiadas e acompanhadas sempre por um dos prefeitos ou, excepcionalmente, pelo reitor, permanecíamos em silêncio absoluto, sentados nas nossas carteiras, sem nos podermos ausentar para onde quer que fosse, nem sequer nos levantarmos do nosso lugar, estudando, lendo ou fazendo os trabalhos propostos pelos professores das várias disciplinas. Até para ir à casa de banho era necessária autorização explícita do prefeito. Era também no Salão de Estudo que um e outro dos prefeitos “falavam” aos alunos, sendo que neste caso, estes juntavam, em semicírculo, as suas cadeiras à volta da secretária do prefeito, colocada em frente à porta da camarata, mas do lado oposto.
O Salão de Estudo era muito estreito e comprido. Ligado ao corredor do recreio por uma pequena escadaria, estendia-se na direcção sul-norte e a sua área ultrapassava em muito a necessária para as carteiras dos alunos. Estas, acompanhadas da respectiva cadeira dispunham-se em quatro filas paralelas e estavam dispostas de tal maneira que os alunos ficavam voltados para a porta de entrada. A maioria das carteiras eram envernizadas, com uma cor semelhante à da própria madeira com a parte superior a servir de tampo mas muito pequenas, sendo difícil arrumar, dentro delas, todos os livros e cadernos de que necessitávamos. Por isso, e por vezes, alguns livros e outro material eram colocados no chão, debaixo da própria carteira. Apenas duas dúzias, trazidas do Seminário de Angra eram bem mais negras, muito maiores, com o tampo inclinado, mas destinadas aos alunos mais velhos do segundo ano.
A minha carteira, assim como a dos outros mais pequenos, ficava na fila da frente, mesmo ali, junto à porta de entrada do salão. Por isso tinha que ter muito cuidado, pois se o prefeito ou o reitor entrasse de repente e eu não estivesse a estudar era logo apanhado em flagrante e, possivelmente, castigado.
A seguir ao almoço tinha lugar o chamado “recreio grande”, por ter a duração de uma hora e meia e que era, fundamentalmente, dedicado à prática do futebol, uma vez que a maioria dos alunos adorava esta modalidade desportiva. Uns jogavam muito bem, outros razoavelmente, alguns jogavam mal e um ou outro, como era o meu caso, não jogava, rigorosamente, nada. Para que as competências futebolísticas dos melhores evoluíssem e o jogo tivesse mais entusiasmo, emoção e interesse, quer os alunos do primeiro ano, quer os do segundo eram divididos em dois grupos: os bons jogadores e os maus jogadores. A prática do futebol, no entanto, estava facilitada e estendia-se a todos. Era obrigatória, isto é, durante aquele recreio todos tinham necessariamente que jogar futebol, ou estar presentes no respectivo campo a fazer de conta que jogavam, o que para mim era um sufoco, quase um castigo. Os melhores no entanto, jogavam com entusiasmo, alegria, beleza, técnica apurada e espírito competitivo. Os bons do segundo ano, onde se incluíam os dois prefeitos, jogavam no campo maior e principal, situado junto à camarata do primeiro ano e com uma das balizas a fazer fronteira com a rua de Santana e a outra com o salão de estudo. Mais lá para cima, havia um outro campo, com qualidades aceitáveis, onde jogavam os melhores do primeiro ano. Os outros dois espaços onde jogavam os “toscos” de um e outro ano, de campo de futebol, nem o nome tinham. Os do segundo ano jogavam, (se é que se podia chamar jogar futebol aos desajeitados pontapés que davam na bola), num pátio interior, entrincheirado entre o refeitório, o salão de estudo e os aposentos episcopais, onde as balizas eram desenhadas nas paredes. Por sua vez os do primeiro ano, nos quais eu me incluía, tinham como palco da sua inverídica prática futebolística um pequeno recanto situado na parte norte do edifício. Era aí que eu era obrigado a permanecer durante uma hora com o principal objectivo de tentar evitar levar com a bola, quando ela vinha na minha direcção. Um martírio para mim, esta hora em que era obrigado a “fazer de conta” que jogava futebol.
Contrariamente, o Manuel Faria era um excelente jogador, assim como o José Adriano Borges e o Carlos Sousa. Os dois primeiros eram avançados e o Carlos Sousa guarda-redes. Observados pelos craques do segundo ano, e pelos prefeitos que queriam reforçar as suas equipas, depressa foram “contratados”, passando a jogar junto com os bons do segundo ano, formando assim duas equipas: uma orientada pelo padre Agostinho e outra pelo padre José Franco, o qual, habitualmente, jogava de sapatos e batina, desabotoando um ou dois botões na parte inferior da dita cuja e enfiando o buraco daí resultante no pescoço. Alem disso, sempre que falhava um toque de bola ou um remate à baliza, simulava que lhe doía uma perna, O Manuel Faria, em termos futebolísticos, era o meu antípoda, sendo considerado um dos melhores jogadores do Seminário, granjeando o epíteto de Yaúca, um dos grandes jogadores do Benfica contratado ao Belenenses, na altura.
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A AGRICULTURA (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)
“Esta malandragem de hoje não quer mesmo trabalhar, não quer fazer nada. Quer é boa vida e passar as tardes a descansar à Praça ou na banqueta da Casa de Espírito Santo de Baixo, na conversa e no mexerico ou, o que ainda é pior, no café da Chica a beber aguardente, traçados e cerveja. No meu tempo não era nada disto. Nem café havia e parar à Praça só em dias de muito mau tempo e aos domingos. Nos outros, dias, era trabalhar de sol a sol e muitas vezes pela noite dentro e alta madrugada. Antigamente, não havia pedaço de terra que não fosse cultivado. Mas não era só junto das casas. Muitos campos que hoje são relvas de pastagem e alguns até terras de mato, no meu tempo eram aproveitados para cultivar milho, batatas-doces, abóboras e feijão. Além disso, também se semeava trevo, erva da casta e alcacel nessas terras onde se amarrava o gado à estaca, nos meses de Março e Abril. Por isso é que dava gosto ver os estaleiros cheios de milho e as lojas cheias de batatas-doces.
Era uma alegria ver aqueles campos cheios de milho, de bata-doce, de alcacel, de trevo e, alguns, até de favas. Muitos eram grandes serrados, como aquele do Tomé, na Alagoinha que hoje é uma relva. Era uma lindeza ver estes serrados enormes, cheios de milho muito verdinho e bem tratado, muito bem sachados, mondados, abarbados e cuidados. Até no mato, os filhos do José Teodósio cultivavam milho.
Aproveitavam-se para a agricultura todas as belgas e niquinhas de terra nas ladeiras do Covão, da Bandeja, da Tronqueira e até do Calhau Miúdo e das Águas que produziam sobretudo batata-doce e feijão, mas que também eram muito bem tratadas e estrumadas com sargaço ou esterco dos palheiros do gado. E era tudo acarretado à costas pois não havia carros de bois e os corsões não chegavam a muitos sítios, pois só havia canadas onde não cabia uma junta de vacas. Trabalhava-se muito! Todas belgas e currais eram trabalhados e produziam boas colheitas. Os serrados junto das habitações assim como os das Furnas, do Areal e do Porto, na altura em que não tinham milho eram destinados também às couves que serviam de alimento aos animais. Até os cantos das terras, onde o arado não chegava se cavavam e eram aproveitados para o feijão, a ervilha, a fava, o alho e o milho de vassoura. Lá para cima, nos Paus Brancos, Pocestinho, Cabaceira e Espigão é que havia terras de mato, cheias de faias e, sobretudo de incensos que, para além de fornecerem a lenha eram aproveitados, sobretudo os incensos, para alimento do gado, no Inverno. Pelo meio havia inhames que precisavam de ser trabalhados e feitos e cana roca que também eram ceifados e aproveitados para cama do gado nos palheiros e para os currais dos porcos. Hoje muito disto mudou. Em muitas terras já não se cultiva nada. Eu é que já não posso e fico muito triste ao olhar para algumas terras que noutros tempos eram bonzíssimas para milho e hoje só dão lenha e inhames. A agricultura do meu tempo era muito trabalhosa mas tínhamos sempre os nossos estaleiros bem cheiinhos de milho. Meu pai geralmente tinha que fazer um de tripé porque o grande não levava o milho todo. Eram outros tempos…”
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BOLOS DE VÉSPERA PARA TODOS
O amplo largo fronteiro à assimétrica igreja de Santa Luzia do Pico estava a abarrotar de pessoas, de conversas e de açafates repletos de bolos de véspera, assinalados com chavões e cravejados de flores. Um espectáculo de cor, de aromas e de simplicidade. Aguardava-se a chegada do pároco que havia de percorrer um a um, os quatro corredores, ao lado dos quais se dispunham os açafates, ordenados e arrumados em cima de bancos, como se fossem gigantescos grãozinhos de milho, semeados em regos paralelos, a germinar nos campos, por entre a terra húmida e fortalecida.
A tarde estava sombria e, do lado de São Jorge soprava um vento húmido, aguerrido e dominador. Cuidava-se mesmo que podia chover. Essa a razão por que o “mordomo” da festa e os seus colaboradores haviam equacionado a hipótese de colocar os açafates no salão paroquial, contíguo à pequena capela que ostentava, no frontispício branco, uma coroa granítica, preta, sobrevoada por uma pomba da mesma cor. Paradigmáticos símbolos do Divino Espírito Santo, nas ilhas açorianas! Mas o tempo aparentava melhoras e o povo preferia ver, observar de perto, sentir e presenciar toda aquela celebração em louvor da Terceira Pessoa da Trindade, ali ao ar livre, entre a montanha e o mar, entre o fogo e água, com o céu a servir-lhe de resguardo.
Não tardou muito e o pároco surgiu, lá do fundo, emergindo da igreja, paramentado de alva branca e estola vermelha, acompanhado de um acólito a segurar-lhe a caldeirinha da água benta e o hissope com que o pão havia de ser aspergido. À frente dois foliões, com tambor e pandeireta – pum-pum, pum-pum – trem-trem, trem-trem – entoavam loas ao Paráclito. O pequeno cortejo aproximou-se dos açafates. Os foguetes ribombaram e o povo fez silêncio. Encharcando o hissope que o acólito lhe apresentava na água da caldeirinha, o pároco, percorrendo os corredores delineados entre os açafates, dirigia preces a Deus, ao mesmo tempo que atirava respingos de água benta sobre o pão. O povo, silencioso, benzia-se. Alguns, mais crentes, bichanavam orações. Terminada a bênção de todos e de cada um dos açafates, o pároco, despojando-se das vestes litúrgicas, retirou-se, enquanto a filarmónica do Cais, entoava, com solenidade e mestria, o Hino do Espírito Santo. Muitos dos presentes acompanhavam os acordes musicais e os solos dos clarinetes, das trompetes e dos cornetins requintados, cantarolando em voz baixa: “Alva pomba que meiga, aparecestes, ao Messias no Rio Jordão…”
O bar, ali ao lado, que, em respeito religioso pelo divino, havia parado durante a bênção, ressuscitava, agora, o reboliço inicial das favas guisadas, dos caranguejos, das lapas e dos copos de vinho, perfumado com o negro enxofre da lava basáltica, onde as vides haviam germinado. Foguetes ribombavam em uníssono com o repicar dos sinos. O apinhado de gente cada vez mais volumoso aguardava, expectante e ansioso, a hora de “receber o pão”.
Dezenas, centenas, milhares de bolos de véspera, assinalados na parte superior com os chavões dos que os haviam ofertado, enfeitados com flores multicolores, passavam, agora, das mãos dos distribuidores para as de todos os que ali, pacientemente, haviam aguardado o momento mágico, transcendente e emocional, em que recebiam aquela dádiva do Divino, oferecida pelo humano.
- Ó sinhô, - explicava Ti Manuel da Silveira, ao mesmo tempo que com a mão direita ajeitava a aba do chapéu de feltro a tapar-lhe o cocuruto e estendia a esquerda para receber uma véspera. – Ó sinhô, isto é um costume muito antigo. Foram os nossos antepassados, há muitos, muitos anos que fizeram esta promessa. E pode acreditar que enquanto houver gente nesta freguesia, esta promessa há-de ser cumprida todos os anos. Lá isso há-de... – Depois apontando lá para os lados da montanha, que se ostentava tímida e enevoada: – O sinhô está a ver ali em cima aquele cabeço, e um outro mais além e ainda outro? Pois são sete, ao todo, veja bem, sete e olhe que de todos eles, há muitos, muitos anos, saiu muito fogo, lava pura, vinda de dentro da terra e que deslizou por aqui a baixo, a correr para o mar como se fosse um rio e destruiu isto tudo. Casas, animais, vinhas e campos, tudo… Tudo, o fogo levou. Ficaram poucos, mas foram esses que, naquele momento de enorme agonia, fizeram esta promessa: “Se o fogo parar, os que escaparem hão-de dar pão aos pobres e a todos os que demandarem esta terra, neste dia, enquanto o mundo for mundo, em louvor do Senhor Espírito Santo”.