PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
BALEIA, BALEIA
A casa da vigia construída bem lá no alto do Pico sobranceiro ao Areal, era um pequeno quadrado de cimento branco, com uma fresta voltada para o mar e uma pequena porta de madeira para terra, sobre a extensa e abruta ravina que era o Pico, que se estendia até ao Canto do Areal. Lá dentro, com binóculos em riste, o Manuel Manquinho e o António Machado, com potentes binóculos, debruçavam-se, dia após dia, sobre a borda da fresta, com a tampa levantada, a espreitar, a observar minuciosamente, a vigiar o mar de lés-a-lés, em busca das baleias, que de vez em quando, haviam de assomar à tona, lá, bem longe, quase no fundo do horizonte. De lá, do alto, onde até o Sol nascia mais cedo e donde quase parecia tocar-se o céu, vislumbrava-se um bom pedaço do mar, numa grande amplitude, quase infinito, desde os Bredos até ao Risco, com o Corvo a esconder-se, por trás dos Fanais. Cá em baixo, entre ribeiras e veredas, os homens trabalhavam os campos, lavravam, semeavam, sachavam, ceifavam em pesadas e esgotantes tarefas, enquanto as mulheres ou os ajudavam ou permaneciam em casa, a lavar a roupa, a casa, a tratar dos filhos, a serrar e fender lenha e a cozinhar. Muitos desses homens aguardavam, atentamente, que, lá no alto, no cimo do Pico, fosse atirado um foguete ou uma bomba, a anunciar o aparecimento de baleia, Quando tal acontecia, aqueles que eram baleeiros suspendiam, imediatamente, os trabalhos e iniciavam uma louca, espavorida e atropelada correria na direcção do Porto Velho, onde os botes, escarrapachados no cimo do varadouro, à espera de serem arreados e a Santa Teresinha, já na água, os esperavam. Muitas mulheres também corriam, mas para casa, a fim de preparar uma cesta com bolo, pão, conduto de porco ou queijo, o que estivesse mais à mão, a aquecer café e depois, seguem também elas, umas a arrastar galochas, outras descalças, mas sempre muito lestas, para o Porto Velho. Algumas, as que demoraram mais, quando chegam já os botes estão no Boqueirão. Então aflitas, aos tropeções descem pelo Caneiro e atiram as cestas com a comida e as sacas com roupa, para dentro das embarcações. Só por milagre, mulheres e mantimentos não caem ao mar. Crianças, escapulindo da escola, também correm para ver e aprender. Um dia serão eles a embrenhar-se naquela faina, Por sua vez, os velhos, embora devagar, também lá chegam, para observar, para aconselhar e recordar. Um ou outro velho, mais trôpego e pouco desenvolto, chegou mais tarde e ficou cá em cima, junto da eira, com uma mão a segurar a bengala e a outra sobreposta ao olhar, na tentativa de ver melhor o que já não consegue ver. Os botes partem e as mulheres, languescidas e melancólicas, regressam às casas e aos campos a fim de terminar as tarefas que ficaram por completar.
A remos, à vela ou rebocados pela Santa Teresinha, sempre ela a última a partir para recuperar algum baleeiro que não chegou a tempo ou uma cesta de comida que chegou atrasada, os botes caminham na direcção do mar alto, até se perderem de vista. Na encosta do Pico da Vigia, um enorme lençol branco indica-lhes a direcção. A fim de algum tempo, os botes aproximam-se dos cetáceos e a Santa Teresinha abandona-os, não vá o ruído do seu motor espantar a caça, O esforço dos homens, agora, movendo os botes a remos, no mar alto, é redobrado. É que por vezes as baleias, rapidamente, mudam de rumo e o vigia, tão distante, já não os pode informar, alterando a posição do pano. Mas há sinais previamente combinados. O circular dos botes é um pedir de informações que, geralmente já não chegam. O vigia, sempre atento, volta a ver as baleias e altera a posição do pano. Os botes, sobre as ordens do oficial, retomam rumo certo e avançam, loucamente, ávidos da conquista, mas consciente dos perigos que correm.
Finalmente avistam as baleias, lá bem longe, e continuam a corrida. É imperioso aproximar-se delas, sem ruído. O oficial ordena ao trancador que se prepare. Este, hábil e experiente, coloca-se de pé, sem se agarrar ao que quer que seja, à proa, de arpão em riste, à espera das ordens do oficial que agora conduz ele próprio o bote, apenas com o sábio movimentar do remo esparrel. Há um silencio total, absoluto, enigmático e misterioso, entrecortado, apenas e levemente, pelo bater ritmado do esparrel na água. Finalmente a ordem do oficial. O animal reapareceu à tona da água. O posicionamento é bom. Perante o “atirar” convicto do oficial o trancador, gingando-se para trás, impinge toda a força ao corpo e atira o arpão, certeiro ao enorme corpo do cetáceo. Este, apanhado de soslaio, instintivamente, dá um grande abanão à cauda, formando ao redor uma enorme ondulação que coloca o bote em alvoroço, ao mesmo tempo que, num movimento brusco e inesperado, mergulha nas profundezas do oceano, presa pela enorme corda que amarrava o arpão. A corda, armazenada numa selha, vai-se desenrolando, numa velocidade estonteante, ao mesmo tempo que se escoa pela borda do bote. Um dos homens, por ordem do oficial, prepara o facão e coloca-se em alerta, junto à selha. Assim que corda estiver a chegar ao fim, só resta uma alternativa: cortá-la imediatamente. E era uma vez uma baleia… Mas a corda ainda continua a correr, muito bem enrolada dentro da selha, perante a espectativa dos marinheiros, Felizmente que a baleia volta à tona para respirar e a corda deixa de correr. A Santa Teresinha está por perto e, por ordem do oficial, aproxima-se e dá-lhe uma, duas, três e mais lancetadas, até que sangre e desfaleça. Antes porém ainda mergulha mais uma vez, reaparece e mergulha, mergulha e reaparece até se esvair, por completo, em sangue. O mar ao redor, tornou-se numa enorme mancha vermelha. Terminou a luta, com sucesso. Agora o reboque do animal para Santa Cruz, tarefa de que a Santa Teresinha se encarrega, enquanto os botes, depois dum breve repouso para abrir as cestas da comida. Muitos homens não têm apetite e algumas cestas regressam a casa quase cheias.
A remos, no escuro da noite, os botes regressam ao Porto Velho…