PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
VIRGEM
Imaculadamente virgem, Aurora saiu de casa dos pais, com destino à igreja. No altar, esperava-a o padre Silvestre, o Chico do Ferreiro e uma enorme angústia.
Chegara a hora de se aviar a moçoila. Era a mais velha e a casa do Rebimbas rebentava pelas costuras: na loja, entre cestos de batatas e sacos de inhames, três barras para os rapazes e a sala a abarrotar com as pequenas. De resto, apenas um minúsculo e esconso quarto de cama, destinado ao casal e a cozinha, esta sim, apesar de vetusta e desordenada, muito ampla e, exageradamente, espaçosa. Filhos e filhas, a roçar a dúzia, atarracavam-se em disputas e em desejos incontidos, atropelavam-se nos dias invernosas e, à noite, sobretudo na hora de lavar os pés, ameaçavam-se em murmúrios desgovernados e em ameaças hostis. Um sufoco!
Primogénita, agora com vinte e dois anos, Aurora era a candidata natural ao primeiro desbasto e, além disso, desde há muito que o Chico do Ferreiro lhe catrapiscava o olho. Ela nada. Aquela pasmaceira, indiferente e fria, habituada ao trabalho, educada entre rezas e jaculatórias, alheia aos mais simples prazeres da vida. Mas isso pouco importava. Virgem de corpo e ingénua de alma, nem às da sua idade compartilhara sentimentos ou, sobre elas, despejava desvelos ou paparicava curiosidades. Na sua supérflua ignorância e imaculada vivência, entendia que casar era um destino normal e comum, mas sem significado e importância. Era como ir lavar um cesto de roupa à Ribeira. Casar era, apenas, partilhar a casa com um homem, cozinhar, lavar, arrumar, ter filhos e ajudar nos campos. Mas, pior do que isso. Para ela, casar era um martírio, um sacrifício, uma ignomínia a roçar a indignidade, porquanto à noite, embora com o corpo bem tapado com um desafogado “naitigão”, era obrigada a partilhar a cama com um homem que lhe era totalmente estranho e que, de um momento para o outro se transformava em marido.
Simples a cerimónia, pobre a boda. Os tempos eram de miséria e a vida cerceada por limitações. E à noitinha, depois de desertarem os convidados, lá partiu Aurora, com o Chico, a caminho da Via d’Água onde lhe haviam montado um pequeno, pobre e humilde casebre.
Aurora acendeu o lume, aqueceu água numa chaleira a abarrotar de tisna, lavaram-se à vez, na cozinha, numa selha de madeira, e deitaram-se, na mesma cama, porque não havia mais nenhuma. O Chico, ainda tentou uma, duas e três vezes, procurar-lhe o corpo arquejante, envergonhado e temeroso, acariciando-lhe as mãos e os braços nus. De seguida, galvanizado pela suavidade daquela pele, acicatado pela doçura daquele corpo, incendiado por desejos lascivos, tentou afagar-lhe os seios. Aurora, porém, de imediato se esquivou, lívida, petrificante e apavorada, expelindo uma decidida e inequívoca rejeição. Nem por sombras havia de deixar-se ser tocada por um homem. O Chico insistiu. Mas as respostas vinham sempre tão abruptas, tão inveteradas, transformando-se em recusas decididas, radicais e absolutas. E a noite a transformar-se numa aflição para ela e um agastamento para ele. Com o intuito de lhe afastar as tentações, Aurora pegou no terço que a mãe lhe dera como prenda de casamento e começou a dedilhá-lo com meticulosa fogosidade e acentuado fervor. O Chico, embora convulsivo e revoltado, aquietou-se. Não queria molestá-la, nem muito menos fazê-la sofrer, embora sonhasse, desde há muito, com aquela noite, terna, maviosa, envolvente e sublime, durante a qual se entregaria, total e plenamente, à mulher que escolhera como companheira. Durante o namoro, conciso e intervalado, nunca lhe arrancara sequer um abraço, nem, muito menos, um beijo. Herdara as esquisitices da mãe, sempre a ameaçar, sempre a perseguir, sempre a meter medo com tolices e despautérios que haviam provocado aquela cegueira com que ela, mesmo agora, depois de casada, o afastava de carinhos e enlevos. Os fantasmas e as palermices que lhe haviam arrolhado na cabeça é que a impediam de se entregar na sublimidade e na doçura daquela noite. Se quisesse podia força-la, obrigá-la... Talvez ela, ao sentir-se forçada, cedesse e acabasse por descobrir o prazer da entrega e da paixão e, assim, apagasse as cicatrizes dos medos, das interdições, das ameaças, dos castigos, do inferno. Voltou-se num impulso instintivo, quase animalesco, açulado por uma natureza abrupta e cósmica, mas pura e ingénua. Ela, acicatada pelo sono, já abdicara do terço e deslizava, agora, sobre o travesseiro, cuidando que ele se aquietara do seu ousado atrevimento. Mas não. Ele, apenas, por momentos, descera ao abismo do silêncio escuro. Mantinha-se vigilante, resistente, disposto a lançar-se numa investida, que protagonizasse todo o seu vigor. Era tão grande a ânsia de desfazer aquele afastamento, anular aquela recusa, ultrapassar aquela oposição. A luz de petróleo há muito que se apagara e o quarto permanecia numa escuridão mórbida e silenciosa. O Chico encostou, parcialmente, o seu corpo ao dela que permanecia apática, indiferente, despegada de desejos e prazeres. Fortes pulsões pediam-lhe uma concentração forte dos sentidos e uma rapidez de movimentos que ela, antecipadamente, não percebesse, voltando, assim, a rejeitá-lo. Ardendo em desejos, o Chico esvoaçava aspirações, perante um corpo aparentemente inerte e despido de vontade, perdido na escuridão do quarto. Uma instintiva pujança diluiu-lhe o corpo, consubstanciando-se numa posse rápida, eficiente e certeira, numa comunhão não partilhada pela amante gélida, fria, estática, incapaz de identificar uma nesga que fosse do píncaro do prazer. E num ápice o Chico explodiu…
Aurora levantou-se, confusa, estonteante e indignada. Acabava de pecar, gravemente, entrelaçando-se nas mais hediondas forças do mal, entregando-se a Satanás. Por isso, nenhuma razão tinha para continuar ali, nem fora para isso que viera. Não havia de colocar-se, todos os dias, ao lado daquele homem, com lágrimas, dor, sofrimento e desalento. Nunca mais havia de consentir que voltassem a pecar.
O Chico, agastado de sublimidade, acariciado num cansaço doce e extasiante, aquietara-se da agitação subsequente ao enlevo, adormecendo. Aurora levantou-se, juntou as suas parcas roupas e, enrolando-as num xaile, fez uma trouxa.
Madrugada, ainda noite escura, a mãe, após toda uma noite alvoraçada, ouviu um leve arranhar de mãos na porta da cozinha. Veio à janela e, em voz baixa, indagou:
- Quem está aí?
De fora uma voz trémula e assustada, respondeu:
- Sou eu, a Aurora.
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PASSEIOS À DOCA E O ACIDENTE DO ARNEL
De todos os nossos passeios realizados aos domingos e quintas de tarde, alguns dos que mais gostávamos eram os que tinham como destino a doca. É que para além de observarmos a grandiosidade da cidade voltada para o mar, com os altos prédios da avenida a espelharem-se nas águas calmas e límpidas do Atlântico, tínhamos a oportunidade de ver e observar de perto o Clube Naval, a abarrotar de caiaques e toda a espécie, de pequenas embarcações de recreio e de barcos de pesca. Mas o que mais nos fascinava era o enorme dorso negro daquele pontão a prolongar-se pelo mar fora, sempre pejado de todo o tipo de embarcações, desde os iates de recreio que demandavam os Açores, com bandeiras de variadíssimos países, aos enormes e abrutalhados cargueiros, aos gigantescos paquetes e cruzeiros, muitos deles também estrangeiros, carregados de turistas já de idade avançada, de calções e camisolas exóticas, que visitavam a ilha do Arcanjo, fascinados pela sua beleza e pelo seu agradável clima e ainda as duas patrulhas de guerra ali habitualmente ancoradas e até, de vez em quando, um ou outro submarino. Também alguns dias podíamos observar, com saudade e nostalgia os navios que demandavam ou regressavam das ilhas, com destaque para o Carvalho Araújo e para o Cedros, embora este escalonasse, na altura, apenas as ilhas do grupo central.
Meses antes havíamos sido atordoados com o trágico acidente, em Santa Maria, do navio que fazia parceria com o Cedros, nas carreiras entre as ilhas e que com ele também alternava as viagens a Lisboa, o Arnel. A notícia do desastre caiu em Ponta Delgada como uma bomba e espalhou-se rápida e célere, sendo de imediato enviados para aquela ilha os reforços e os apoios disponíveis que, infelizmente, quer porque fossem parcos quer porque tardassem em chegar, não impediram que morressem muitos passageiros. Auxiliaram e valeram-nos, felizmente, os americanos, que, com os seus helicópteros sediados na Base das Lajes, resgataram uma boa parte dos passageiros O Arnel tinha características, tamanho e capacidade semelhantes ao Cedros e estava preparado para transportar cerca de 150 passageiros, disponibilizando de 25 tripulantes. Na viagem fatídica, o navio transportava mais de cento e vinte pessoas, muitos das quais tinham embarcado, horas antes, na Vila do Porto, mas eram naturais de São Miguel. O navio ter-se-á aproximado demasiado da costa a norte da ilha, sendo esse descuido fatal. Alta madrugada encalhava nos escolhos da ponta do Anjo, abrindo um rombo fatídico, junto à casa das máquinas, o qual lhe paralisou, de imediato, o motor e o deixou totalmente às escuras, uma vez que a corrente eléctrica de bordo, dependia, exclusivamente do motor. Em plena noite, sem luz alguma, com o mar a invadir o navio, gerou-se o pânico e a confusão entre os passageiros, o que provocou o caos e o descalabro quase total. Dizia-se que a pedido dos passageiros o Capitão José Rodrigues Bernardes, velho e experimentado marinheiro, autorizara a descida de uma baleeira, onde entraram algumas pessoas para irem a terra e pedir socorros. No entanto a baleira terá virado, chegando a terra apenas três tripulantes. Infelizmente, quando conseguiram pedir socorro, já muito tempo decorrera, sendo impossível, evitar de todo a tragédia.
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PÁSSAROS NA PISTA
Num destes dias, numa viagem entre o Porto e o Pico, como acontece habitualmente, fiz escala em Ponta Delgada, a fim de, em seguida, rumar à ilha montanha. São inexistentes os voos directos do Porto para o Pico. Os de Lisboa raros. Além disso, o voo seguinte, de ligação entre São Miguel e o Pico, obrigava a uma frugal escala na Terceira.
A viagem decorreu dentro duma invejável normalidade, com um tempo excelente, sem turbulências ou outros acidentes provocadores de intranquilidade, de perturbação ou de pânico. Aproximamo-nos da Terceira com toda a naturalidade, dando o piloto o início à aterragem com uma invejável e perfeita normalidade, tendo já o trem de aterragem sido devidamente aberto. Sobrevoávamos a Praia da Vitória, com as casas muito pertinhas. O Bombardier Q400 aproximava-se, inevitavelmente, da pista. Dentro de poucos segundos estaríamos, verdadeiramente, no chão
De repente e sem que nada o previsse o Q 400 começou a subir, a subir, sobrevoando a ilha na direcção do interior, rodando de seguida e fazendo-se ao mar, desenhando um enorme círculo, como se pretendesse voltar a São Miguel e mantendo-se lá bem no alto, em voo planado, para espanto de todos e medo de alguns. Trem de aterragem recolhido e toca a voar por ali, com os passageiros a entreolharem-se, alguns arregalando os olhos povoados de apreensão, de susto e, nalguns casos, como o meu, de medo.
Não demorou muito e o sinal sonoro. Falava o comandante, explicando o que se passava: Havia pássaros na pista e não tinha aterrado por motivos de segurança.
Naturalmente os pássaros fugiram. De imediato iniciamos nova aterragem, consubstanciada numa rígida e impressionante calma.
Acresce dizer-se que a segurança é sempre absoluta e está sempre em primeiro lugar nos voos das transportadoras aéreas.
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URBANO DE MENDONÇA DIAS
Urbano de Mendonça Dias nasceu em Vila Franca do Campo, a 27 de Junho de 1878 e faleceu, na mesma cidade, em 4 de Fevereiro de1951. Fez a instrução primária em Vila Franca do Campo, prosseguindo os estudos liceais no Colégio Fisher, em Ponta Delgada. No ano de 1903 licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Ainda como estudante, juntamente com o Padre Ernesto Ferreira, fundou em 1902 a revista A Phenix. De regresso a S. Miguel, com o mesmo amigo, liderou o jornal A Vila e colaborou também no O Autonómico. Começou a sua vida profissional como ajudante privativo do conservador da Comarca e abriu banca de advogado. Com um Humanismo social ligado à terra que procurava corresponder às enormes carências e miséria que grassavam entre as gentes das ilhas, fundou, em 1904, juntamente com César Rodrigues e Cortes Rodrigues O Externato de Vila Franca do Campo e que foi fundamental para a educação e desenvolvimento da Vila em todo o século XX. Assumiu alguns cargos políticos como Procurador à Junta Geral do Distrito de Ponta Delgada, Administrador do Concelho de Vila Franca do Campo, Governador Civil do Distrito de Ponta Delgada e Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca. Monárquico e de cunho nitidamente municipalista integrou-se no segundo movimento autonómico dos Açores. A sua actividade literária estendeu-se a obras de ficção e de teatro, mas é na história que o seu trabalho e o amor às ilhas mais se revelam, em várias monografias que revelam grande atenção e cuidado no tratamento das fontes, sendo fundamentais para a história local e regional.
As suas principais obras são: A Vila, Loucos de Amor, Peço a Palavra, Alvores da Mocidade, O meu primeiro Amor, História dos Açores, História da Instrução nos Açores, O Solar da Castanheira, Literatos dos Açores, História do Vale das Furnas, A Assistência Pública no Distrito de Ponta Delgada, A Senhora Doutora, Instituições vinculares: os morgados das ilhas, O meu Amor, Mr. Jó, As Ilhas do Atlântico – a que chamam adjacentes, Madre Teresa d’Anunciada: a freira do S. S. Cristo dos Milagres, A Vida de Nossos Avós, O Tio Francisco, História das Igrejas e Conventos e Ermidas Micaelenses.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores