PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A RIBANCEIRA DAS COVAS
O lugar chamado “Ribanceira das Covas”, na Fajã Grande, situa-se na margem direita da Ribeira das Casas, junto à rocha com o mesmo nome. Aliás o próprio lugar conhecido por esse nome situa-se dentro do próprio lugar das Covas, no caminho da Ponta, encastoado entre este lugar e a própria Rocha.
Diz a lenda ou talvez a história, embora esta não esteja escrita, que os primitivos habitantes da Fajã Grande, se terão, muito provavelmente, estabelecido, inicialmente, num outro local que não terá sido aquele onde hoje se encontra o povoado. Assim e segundo uma crença muito antiga, os primeiros habitantes do lugar da Fajã Grande terão procurado como local para se fixarem e construir as suas habitações, o sítio hoje chamado “Covas”, junto à rocha, na margem direita ou talvez em ambas as margens da Ribeira das Casas.
O maior argumento desta tese é precisamente o nome daquele curso de água – Ribeira das Casas. Porquê das casas se nunca ali houve casas? A este argumento, porém, juntam-se vários outros, embora todos eles hipotéticos. Por um lado, para os povos que demandaram aquelas inóspitas paragens fixar-se nas margens duma ribeira tornava muito acessível o acesso ao bem mais primordial de qualquer povoado: a água. Por outro lado naquela zona os terrenos são muito férteis e as próprias habitações ficavam sob a protecção da rocha, pois como o próprio nome do local indica, ali situar-se-iam algumas covas, ou seja lugares mais abrigados e protegidos dos ventos, sobretudo dos que vinham do norte e leste. Hoje, essas covas não existem, nem sequer há vestígios de alguma casa ali existente outrora. Apenas as ruínas de alguns moinhos, mas construídos dezenas de anos depois do povoamento primitivo. Ao colocar os nomes às outras ribeiras, geralmente nomes de pessoas (Ribeira de João Fraga), árvores (Ribeira dos Paus Brancos, animais (Ribeira do Cão), etc., a que ali corre teve e tem um nome diferente: Ribeira das Casas. Daqui se depreende que o topónimo adviria das casas que ali haviam sido construídas.
Hoje porém, delas não sobra nenhum vestígio, como também nada resta das tais “covas” que, eventualmente, ali teriam existido e dado nome ao lugar. Pelo contrário, mantem-se junto à rocha um gigantesco amontoado de terra e pedregulhos, totalmente coberto de árvores e arbustos, mas que é um claro indício de uma enorme ribanceira que há centenas de anos ali terá caído e que ainda hoje é conhecida pela “Ribanceira das Covas”.
Na realidade, ainda hoje se pode bem observar, sob o ponto de vista morfológico, ladeando o leite da ribeira, incluindo o local onde se situa o por demais conhecido “Poço do Bacalhau, dois cabeços ou montículos encostados à rocha: um do lado das Águas, ou seja na margem esquerda, mais pequeno e, aparentemente, mais antigo e um outro o do lado das Covas, ou seja na margem direita. Nos anos cinquenta, ainda era voz corrente na Fajã Grande, de que debaixo daquele monte de terra e de entulho caído outrora da rocha, estariam soterradas as primitivas casas do lugar da Fajã Grande.
Lenda ou história, nunca se saberá, pois é de todo improvável que algum dia se verifiquem ali as escavações adequadas com o objectivo de esclarecer a verdade. No ar fica no entanto e para sempre a pergunta: porquê o nome Ribeira das Casas?
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SOU UMA ÁRVORE
(TEXTO ESCRITO POR CATARINA FAGUNDES – 7 ANOS)
Sou uma árvore e vivo num jardim com roseiras, margaridas, tulipas e malmequeres.
A minha estação favorita é a primavera, porque é quando os passarinhos fazem os seus ninhos nos meus ramos, as abelhas tiram o pólen das minhas flores para fazer o mel e as crianças adoram brincar e fazer piqueniques com os pais, à minha sombra.
Eu adoro ser uma árvore e ajudar os passarinhos, as abelhas e as crianças.
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AUTO DA DESTRUIÇÃO
João Isirgo decidiu relegar os seus mais sublimes sentimentos, colocando-os em prateleira putrefacta e passou a usufruir de um dinâmico vazio, que o tornava aberrante, insuportável e, quase desajeitadamente, energúmeno. Nenhum homem pode desdenhar ou abandonar uma sentimentalidade persistente, mesmo que dotada de características que pouco ou nada abonam da sua dignidade. O desdém de si próprio é uma intempérie incontrolável e João Isirgo sentiu-o, embora desajeitadamente, por isso deu azo a sucessivas tentativas a fim de se erguer e sair do lodo em que jazia. Fracassaram todas! Todas não, pois num último e quase gigantesco esforço, na tentativa infrutífera de acalmar tempestades e alcançar a quietude que o conduzisse ao supremo domínio de todas as estrelas do firmamento, João Isirgo subiu um, dos muitos degraus que o separavam do patamar da não desistência. Mas o seu imperturbável desiderato estava cada vez mais longe de ser alcançado. Havia, ainda, uma vergôntea frágil em que se poderia apoiar e, sob a qual, tentou esconder-se, balbuciando palavras sem nexo, sem que alguém as procurasse entender ou sequer ouvir, assimilar e transformar num texto onde o sem sentido e a limitação espessa e expressa dos conteúdos não fossem pressentidos. Percorria, assim, o percurso de um movimento de distorção circular, não desejado e parcialmente encontrado. Assim quando atingisse o circo do nada onde estava contida a pureza original, inadvertidamente perdida, havia de despojar-se de todos os seus sonhos inócuos, despejá-los num lugar lúgubre, tormentoso e eterno, onde se enrolassem em espirais de espuma branca.
Estranhas convicções, as de João Isirgo, que o levaram a auto suplícios nauseabundos e mefíticos, onde a noite não encontrava o fim e onde as trevas pontificavam como monumento irreverente, astuto e simbólico do nada.
Foi então que a loucura se apossou-se dele e o lançou num pântano deserto, onde deambulou sozinho, em busca de um sinal, talvez de uma luz ou voz que lhe trouxesse uma penumbra perene e infinita, necessária e exigida por uma ascensão lenta de ser e não ser ao mesmo tempo.
Regou, então, o tempo com alecrim e poejo, cantou canções de embalar em manhãs escuras, porque o sonho não era mais do que a ternura da solidão e da criação de espaços míticos, onde se conjugava abundância do destino.
João Isirgo, mesmo sem estátua em praça ou jardim, ressuscitou a certeza de um tempo abandonada, cicatrizado pelas raízes das pedras de lava, onde escoava o enxofre da acuidade inconstante e onde se reduzia a cinza, o prurido perene de todos os sentimentos que tão ingenuamente, havia renegado.
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PRIMAVERA
Ele era um anão e todos os anos, aguardava, ansiosamente, a chegada da Primavera. Esta, não se fazia rogada. Chegava sempre na altura certa e regressava, sempre, afável, alegre, libertadora, plena de simpatia e beleza, trazendo consigo o perfume das flores, o canto dos pássaros, a ternura das manhãs ensolaradas e um grande abraço de ternura e transcendência! O Sol, encoberto durante um longo e terrível Inverno, também agora, ressurgia, no auge do seu esplendor, no empolgante brilho da sua força e na irradiante beleza do seu ser, espargindo a doçura da luz e a sublimidade do calor, sobre os mais recônditos e obscuros recantos da terra. Amachucado, pesaroso, solitário e dolente, o anão rejuvenescia e ressurgia, da letargia enigmática e paradoxal que a ausência prolongada do astro-rei lhe impusera. O renascer das flores, o ressurgir dos frutos, o carinho dos dias quentes e maviosos e, sobretudo, a ternura do abraço primaveril, provocavam-lhe frémitos flamíferos e resplandecentes tais, que o catapultavam para uma nova, alegre e mais delirante vivência.
E mais uma vez, com a chegada da Primavera, os dias de paz e calor, de carinho e simpatia contagiante regressaram e, no pequeno povoado onde tinha o seu cardenho, o anão começou também a alegrar-se e a sorrir, a crescer e a abrir-se, a aceitar a suprema força que o Sol, gratuitamente, distribuía. Apenas um ou outro eclipse, ou algum amanhecer mais sombrio e enevoado obstaculizavam a desconcertante alegria de viver e, desgraçadamente, provocavam, no anão, arrelias e calafrios semelhantes aos dos longas e terríveis dias invernais. Mas agora, porém, a ocultação do astro rei, embora férula, triaga e acentuadamente dolorosa, era momentânea e efémera e, consequentemente, mais suportável para o carraceno.
Mas nos dias seguintes, após o regresso da Primavera, logo de madrugada, passeando pelos bosques, o anão aguardava serena e calmamente o nascimento do maior, mais potente e mais belo astro do firmamento. E a calma, a paz e a tranquilidade voltavam a reinar, até porque o Sol, agora e depois de tão duradoura ocultação, como que se mostrava mais cálido e longânime, mais acolhedor e contagiante, mais ardente e meiguiceiro. Por isso, toda a aldeia onde o anão vivia, florescia constante e decidida, apenas silenciada pela escuridão da noite, que se blasonava garbosa e enfatuadamente, de obstaculizar a concretização dos mais prestigiantes anseios do pequeno desolado.
Os dias, porém, passavam céleres e velozes. O espectro da aproximação de um novo e, quiçá, definitivo inverno, já pairava sobre o espírito do carraceno e, de um modo muito especial, começava a aniquilar-lhe a sua angustiante existência.
Era o princípio do fim de um curto reinado de excelência e de dignidade, onde tudo ao redor da pequena aldeia florescera, em que as árvores perdiam menos folhas, as flores tinham mais aromas e os frutos mais doçura, onde os animais conviviam em alegre e expressiva fraternidade, onde os dias eram de Sol, as noites de esperança, as madrugadas de cheiro a madressilva e a rosmaninho e as tardes com sabor a hortelã e a alecrim.
A catástrofe final, porém, estava eminente!
O trágico anúncio da chegada de um novo Inverno foi feito numa manhã cinzenta e enevoada. A sentença dramática e irreversível foi proclamada com agonia e soledade silenciosa, mas ecoou por toda a terra, qual estertor dolente de quem se fine. As manhãs radiosas não se lançariam nunca mais sobre as árvores e sobre as flores, sobre os arbustos e os insectos, sobre as folhas caídas e os ramos quebrados, sobre o espírito paradigmático dos serranos. A aldeia do anão nunca mais seria verde, nem teria flores de esperança nem frutos de simpatia. A partir de agora, paramentar-se-ia, contínua e ininterruptamente, de um negro fatídico e melancólico, para celebrar a liturgia do desespero e do abandono. Seguiram-se dias e noites de mágoa aflitiva! O povo saia à rua, mas já não vivia a liberdade e a fraternidade que a revolução solar lhe proporcionara. Viviam-se dias de dor e noites de mágoa. O espectro do regresso à solidão ou ao absentismo anteriores era a suma certeza do quotidiano carraceno. De todos os rostos transbordava, continuamente, um ricto que, prevendo a chegada da noite infinita, não era mais do que o reflexo deletério que emanava do terrífico e derradeiro ocaso do astro-rei.
O anão, aflito, perplexo, desfeito em espuma, acorrentado à certeza duma esperança destroçada, expelia uma áscua ténue e rúbida, contemplando, quiçá pela última vez, aquele arquétipo de beleza suma e de sublimidade magnífica, que ao despedir-se, transformado em fulva esfera, que pairando sobre os telhados dos velhos casebres, deixava transparecer, no amarelado dos seus raios, a certeza de também não querer entrar em ocaso definitivo.
Mas o Inverno derradeiro, frio e terrível iniciou, decididamente, a sua marcha triunfante. A Serra entrava definitivamente no reinado da escuridão e da ausência e o anão, tremendo de frio, recolhia-se ao seu esconso e paradoxal valhacoito.