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A VELHA

Domingo, 23.03.14

(CONTO TRADICIONAL)

 

Era d'uma vez uma velhinha, muito velha, muito atarracada, que andava sempre a pedir esmola e a cramar junto das pessoas, “que não tinha ninguém, que era muito desgraçadinha.”

Mas o povo dizia que a velha tinha dinheiro, e por isso, n'um dia, um ladrão, aproveitando a ocasião em que ela saiu casa para ir à fonte, entrou-lhe em casa e escondeu-se debaixo da cama.

A velha quando voltou viu-lhe um pé. Esteve para gritar, mas teve medo de que ele lhe batesse e a matasse e por isso deixou a porta aberta e ajoelhando-se em frente de um crucifixo que tinha, pôs-se de mãos postas a rezar em voz muito alta:

- "Meu Deus, quando eu era moça namorava um rapaz muito bonito! Depois casei com ele e, quando chegámos a casa tirou-me o véu! Que vergonha, meu Deus! – E levantava a voz cada vez mais e continuava: - Depois tirou-me o vestido, as saias, as botas, Ai! Ai! Ai! Que vergonha! Que vergonha!

Os vizinhos ouviram aqueles gritos e acudiram a ver o que era. A velha assim que sentiu gente em casa, sem mudar de posição, gritava;

- Vão debaixo da cama que lá está o ladrão!

Os vizinhos foram a ver e lá estava o homem que levou uma grande sova; e assim se livrou a pobre velha de ser roubada e morta.

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publicado por picodavigia2 às 22:59

A HORTA DAS ABÓBORAS

Domingo, 23.03.14

A toponímica fajãgrandense, para além de ampla e variada, era interessantíssima. Na realidade na Fajã Grande existiam lugares com nomes invulgares e cujo simbolismo era deveras muito interessante. Era o caso da Horta das Abóboras, um pequeno lugar encastoado entre as relvas da Alagoinha e as terras de mato do Espigão, quase Lá-a-Trás, e, consequentemente, muito longe das terras de cultivo onde as caseiras floresciam à espera de produzir as suas belas e saborosas abóboras. Estranho pois este topónimo, porquanto ali não havia praticamente nenhuma terra de cultivo, nem muito menos belgas soalheiras onde se pudessem cultivar abóboras. No entanto, na Alagoinha, na década de cinquenta, ainda havia uma outra terra de cultivo da batata-doce e, ao lado, no Moledo Grosso, assim como na Lombega, e no Espigão havia algumas belgas e hortas de inhames. É pois natural que em décadas recuadas ali houvesse terras de aráveis, nomeadamente campos de cultivo do milho e de outros produtos que com ele se misturavam ou alternavam na Fajã Grande, entre os quais abóboras. Se em tempos recuados se semeou milho no mato, embora milho para o gado, mais natural é que o mesmo tenha acontecido naqueles descampados que embora distantes do povoado eram bastante férteis Muito provavelmente aquele seria um bom lugar para o cultivo destas cucurbitáceas ou então existiria ali apenas uma horta onde se cultivavam as ditas cujas e daí o lugar terá havido nome.

Na década de cinquenta, porém já não havia ali terrenos de cultivo nem sequer relvas, apenas terras de mato e poucas, porque o lugar, na realidade era muito pequeno, talvez o mais pequeno da Fajã Grande.

O acesso a este lugar fazia-se geralmente pelo caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros. Numa pequena ladeira que existia, a seguir ao descansadouro dos Paus Brancos e antes da recta que dava para Mateus Pires, havia uma canada, muito estreita e sinuosa que permitia chegar-se à Horta das Abóboras. Pelo lado do Espigão tinha-se acesso apenas atravessando algumas propriedades pertencentes a este lugar. Acrescente-se que a Horta das Abóboras fazia fronteira a norte com os Paus Brancos, a leste e a sul com a Alagoinha e a oeste com o Espigão e a Lombega.  

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publicado por picodavigia2 às 22:32

PRIMEIRA VIAGEM

Domingo, 23.03.14

Havia uma nuvem a desfazer-se

No azulado lívido do céu.

 

Havia uma ganhoa pousada

No manto negro de um penedo.

 

Havia respingos de marés,

A dançarem, como se fossem noivos entontecidos.

 

E a tarde esmoronava-se, apressadamente,

Sob o derradeiro raiar de um dia de sol.

 

No porto, em solavancos apressados,

Um barco acabava de varar.

 

Ali, no silêncio do anoitecer,

Terminava a minha primeira viagem.

 

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publicado por picodavigia2 às 15:40

UM INCIDENTE

Domingo, 23.03.14

(UM CONTO DE NUNES DA ROSA)

 

Em casa do Senhor imperador há uma lida, uma barafunda, que eu sei lá!…

Roupas brancas ao sol, secas de goma, os estandartes de seda pelas janelas fora, enrolados, grandes cestos de verdura e flores sobre o balcão, molhos de canas de foguetes por aqui ou por acolá, mesas lavadas ao sol, um montão de cadeiras, em desordem, de pés ao ar umas, de lado outras… Vê-se que há ali trabalho… E que balbúrdia, que confusão!… Todos andam esbaforidos e apressados…

Rapazes que acarretam coisas de fora - loiças, bancos, alguidares; grupos de raparigas com cestos de copos e garrafas; homens sisudos e atarefados que armam os arcos - à porta de entrada, ao portão e a atravessar o caminho…

 - Também não fica mau!…

 E a cozinha do imperador fumega todo o santo dia, em roças de fumo que é uma coisa!… A cada fornada de pão que se coze atira-se uma resposta, quando se toma a presa às massas queima-se um foguete.

E aqui a senhora imperatriz tem que atender a tudo, dar expediente a tudo…

O magarefe ainda de braços ensanguentados, a comprida faca na mão e o suor em camarinhas pelo peito - a camisa aberta, dá a derradeira demão à carne: aquela para cozer, aquela para assar, aquela para os senhores padres, aquela para os cantores, esta para…

- Não se poipa… Há para tudo com a graça do Senhor Espírito Santo!…

E a cozinheira e as ajudantes de braços arregaçados, as saias presas à cintura, os lenços atados para trás, vão e vêm e voltam, e andam numa confusão…

- Vamos daqui, vamos daqui…

- Meninos, brincar lá para fora…

E pela porta da cozinha sai um enxame de crianças, enfarinhadas, trazendo pedaços de pão, retoiçando alegres…

O senhor imperador, esse, então, nem falar nisso…

- É preciso um homem ter cabeça para estas coisas…

- O Senhor Espírito Santo ajuda…

E dá-se um gole de aguardente a este que está suado, um copo de vinho àquele - para ir depressa, uma fatia de pão àquele outro para levar aos pequenos…

- Há para todos com a graça do Senhor Espírito Santo!…

Mas à tarde fez-se uma relativa quietação pacificadora…

- Não tarda aí essa gente…

Essa gente eram os vizinhos, os conhecidos, as pessoas devotas, que todas iam rezar o Terço ao Divino Espírito Santo.

Deu-se então à casa a ordem possível, que a sala de fora essa está sempre arranjada…

O altar da Coroa é uma coisa linda, de rendas e flores e lumes, a sala é um céu, de cortinados e de lençóis de linho, afestoada de lenços de seda e engalanada de cordões e anéis de oiro…

E como quer que nestes dias só se trate de coisas indispensáveis à vida - a lenha para as fornadas de vésperas, moenda para o pão da festa e comida para o gado, a senhora imperatriz deixou de andar em dia com a bisbilhotice das vizinhas; mas ao marido sempre vão dizer as coisas. Ela não sabe como é. Acha-o triste. Quem serve sempre tem desgosto!

 - Coitado! Tenho dó dele! - comentava a que atiçava o lume do forno, afectando uma grande inquietação.

E depois dum suspiro, mal reprimido:

 -Ah! línguas, línguas, quem as apanhasse picadas entre esta lenha!…

A senhora imperatriz estacou no meio da cozinha, com as mãos nas ilhargas e o rosto em camarinhas:

 - Mas que é que foi agora?!

 - Que é que foi?! A comadre está farta de o saber!

 - Assim Deus me salve, como não sei nada! Que foi?!…

- Antes tratasses do forno! - Enviesou uma lá dum canto, muito aborrecida, a temperar um molho.

Mas a senhora imperatriz insistia: não era bem que em sua casa, e em dias daqueles, se dissessem coisas que ela não pudesse saber…

E a do forno, com grandes gestos, assomadiça:

- Antes eu estivesse calada!… Vá a comadre tratar do seu governo!…

A dona da casa exaltou-se: que não tivesse o atrevimento de lhe dar ordens e que já que falava por meia língua havia de dizer o resto!

 - Eu cá não digo nada!

 - Há-de dizer!

- Dize, criatura! intervieram as outras, fazendo sinais para aquilo não ir por diante.

Um grupo de mulheres que chegava açodado com coisas precisas, inteirado do incidente, achou que a senhora imperatriz tinha carradas de razão… A outra se sabia alguma coisa a respeito do dono da casa devia declará-lo, até para não se fazerem juízos temerários, porque às vezes uma pessoa andava vendida inocente…

E a sujeita:

  - A respeito de meu compadre, daquelas barbas honradas, o quê, filhas?!… Foi cá uns zuns-zuns que me passaram pelos ouvidos, mas a respeito doutra pessoa…

E muito sacudida:

 - Ora aí está! Fiquem vocemecês agora descansadas!

 - De outra pessoa?!…

Foi uma explosão!

É bem feito, que havíamos de estar em nossas casas!

- Eu cá se não fosse com medo de algum castigo do Senhor Espírito Santo…

- Ó mulheres! Isso não é com vocês! - Gritava a do forno.

 Uma vinha com uma colher para a senhora imperatriz provar um tempero, mas esta repeliu-a, protestando colérica que a deixassem, que já estava quase doida, que lhe mudassem o nome que tinha se aquilo se não pusesse a claro…

A outra continuava a bravejar, algumas berravam que daquela maneira ficava o governo por fazer, outras protestavam alto contra os mexericos que roubavam o sossego das pessoas, e o alarido estendendo-se pela casa fora, chegou ao balcão, ao pátio e à rua.

Toda a gente correu por ali dentro, ansiosa de saber de que se tratava. O senhor imperador veio também, pálido e enfiado, ainda com um foguete e um tição, de olho assarapantado, receando que o tecto da cozinha tivesse vindo abaixo.

A coisa estava custosa de aclarar.

 Todas falavam ao mesmo tempo, alto e com grandes gestos, e o senhor imperador não sabia a qual atender.

O magarefe, nos bicos dos pés, sobre a soleta da porta da cozinha, perguntava se algum caldeirão tinha estoirado, e uma mulher, que emprestara pratos, entrava a inquirir, possessa, se se tinha quebrado a loiça.

Ninguém se entendia!

O senhor imperador, nervoso, encaminhou-se para o balcão, atirou o foguete, para que se soubesse que não tinha acontecido nenhuma desgraça, e voltou a ver se conseguia deslindar a questão.

A explosão da cólera entre o mulherio que redemoinhava na cozinha estava no seu auge.

A mulher do forno deliberara, finalmente, falar.

As suas palavras eram repetidas naquele pandemónio, espumante de indignação:

- O João Rodrigues tinha dito que o vinho do senhor imperador ainda era mais somenos que vinagre!

O senhor imperador abalou, a atirar mais foguetes:

 - Ora! Ora!

 

Nunes da Rosa, in Gente das Ilhas,

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publicado por picodavigia2 às 15:06

ENXERTIA DA VINHA EM SÃO CAETANO

Domingo, 23.03.14

À semelhança de muitas outras localidades açorianas, a freguesia de São Caetano usufrui de uma paisagem fortemente marcada pela prática agrícola, na qual se destaca a cultura da vinha. Na realidade, a vinha e o vinho constituem, para a mais jovem freguesia do concelho da Madalena, um importante património económico e personificam traços fundamentais da sua identidade cultural, ainda hoje registados em múltiplos vestígios associados à produção do vinho, tais como currais, girões, canadas, maroiços, muros, portais, adegas, alambiques, armazéns, lagares, prensas, barricas, etc. Muitos destes elementos, para além de caracterizarem a paisagem envolvente da freguesia, encerram um testemunho histórico remanescente de uma actividade vinícola pujante, consistente, feita com arte e sabedoria e, sobretudo, reveladora da labuta quotidiana de um povo simples, humilde, generoso e trabalhador.

Assim, desde os tempos mais remotos que o cultivo da vinha, em São Caetano, se revelou árduo, trabalhoso, difícil e cansativo, uma vez que a maioria dos terrenos destinados àquele cultivo se estendiam, quase exclusivamente, na zona mais estéril e pedregosa e de solo mais pobre da freguesia. Nesta zona, situada entre o mar e as habitações, foram, também, construídas as adegas, edifícios de apoio à produção vitivinícola que ainda hoje permanecem como baluartes duma epopeia simples e modesta mas digna e valorosa. Se às limitações e aridez do solo juntarmos as intempéries e os vendavais com que a freguesia era, frequentemente, fustigada, compreende-se melhor a necessidade de um ciclo de trabalhos contínuos e ininterruptos que o cultivo da vinha exigia, com destaque para a enxertia, tarefa minuciosa e que requeria muita técnica, efectuada, geralmente nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março.

A enxertia exigia, em primeiro lugar, o plantio dos bacelos ou seja pedaços de caules extraídos de uma videira e destinados à formação de uma nova planta. Os bacelos deviam conter entre cinco a seis olhos, ter um tamanho médio de quarenta centímetros, ficando na terra, durante cerca de um ano, a fim de criarem raízes e engrossarem. Ao adquirir a espessura considerada suficiente, o bacelo era plantado no local pretendido, cortado na parte superior e rachado, formando o “cavalo”, que havia de receber a “pua” ou “garfo”, ou seja o ramo que se pretendia enxertar. Este era escolhido e retirado das melhores e mais produtivas videiras e cortado em forma de cunha, de maneira a encaixar no “cavalo”, a casca verde de um na do outro.

Depois de introduzido no cavalo, o garfo era amarrado com filaça ou com ráfia e coberto com terra, transportada de outras zonas, uma vez que as vinhas, geralmente, se localizavam em terrenos pedregosos.

Como a maioria das vinhas era muito distante das residências, os homens levavam as suas merendas, para não perderem tempo e rentabilizarem melhor o dia, trabalhando de sol a sol.

Em São Caetano, terra de grandes e experientes enxertadores, as “idas à adega” eram muito frequentes, sobretudo, antes e depois do trabalho. Por isso mesmo, antes de irem para a enxertia os homens faziam uma passagem, pode-se dizer obrigatória, pela adega.

 

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publicado por picodavigia2 às 08:54





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