PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
OS ENIGMÁTICOS MEANDROS DA “MORFOLOGIA LATINA”
O livro mais pequeno, mais leve, mais fofo, mas também o que mais “dores de cabeça”, em termos de estudo, me provocava era a “Morfologia Latina”. Tratava-se de uma espécie de gramática do Latim, disciplina que estudávamos em catadupa e que tinha lugar privilegiado e fundamental na formação dos futuros sacerdotes. Era um livrinho de capas verdes, aveludadas, da autoria de G. Zenoni, da Editorial Missões, Cucujães. Depois de uma breve introdução à Fonética, a que o professor não dava grande importância, entrava-se em plena Morfologia, aprendendo-se que em Latim, contrariamente ao Português, os substantivos, os adjectivos e até os pronomes se declinavam, num enigmático meandro de casos e géneros, com a agravante de aqueles serem seis e, para maior confusão, existir um terceiro género para além do masculino e do feminino: o neutro. Depois, tudo aquilo era, para mim, uma tremenda confusão: é que “rosa”, tanto podia significar “a rosa”, como “ò rosa” ou “pela rosa”, enquanto “rosae”, da mesma maneira, tinha três significados diferentes: “da rosa”, “as rosas” e “ò rosas”. Pior ainda! É que eu confundia e cuidava que o genitivo do plural de “fructus” devia ser “fructuorum”, tal e qual ao de “dominus” da segunda declinação era “dominorum” e, afinal, era “fructuum”, pois “fructus” pertencia à quarta declinação. Mas não era tudo. As confusões eram permanentes, os erros constantes e as aprendizagens limitadas, pese embora, eu passasse horas e horas a cantarolar, a repetir e a tentar reter na memória: “ Liber – libra – librum; libri – librae – libri…” e por aí adiante. Um emaranhado de enunciados, um nunca mais acabar de formas iguais com significados diferentes e de formas diferentes com significados iguais. Mas o pior estava para vir! É que depois dos substantivos e dos adjectivos vinham os pronomes, também eles declináveis e com umas formas muito esquisitas e estranhas, umas vezes a fazer lembrar a solene forma da consagração da hóstia e do cálice: “Hic – Haec – Hoc”, outras a imitar a voz dos patos: “Quo – qua – quo; ” e a provocar risotas disfarçadas e escondidas, que o professor era muito exigente e não tolerava brincadeiras ou graçolas.
Mas a muito custo e após muitas horas de treino, lá fui decorando e aprendendo as declinações e as conjugações e, passado algum tempo, já conseguia escrever pequeninas frases: “Rosa pulchra est.” E quando certo dia, já no segundo período, fui chamado ao quadro com a minha “Morfologia Latina” em riste, e o professor, olhando para o livro, me ordenou que escrevesse no quadro e traduzisse a seguinte frase: “Por quanto compraste o livro que tens nas mãos?”, safei-me razoavelmente bem, escrevendo, já com um certo orgulho, na língua de Cícero e de Virgílio: “Quanti emisti librum quem habes in manibus?”.
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O ESPANTA MALES
“O trabalho espanta três males: o vício, a pobreza e o tédio.”
Voltaire
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UMA NOITE DE TERROR
José Pereira de Azevedo deitou a mão à taramela da porta de casa já noite escura. Na cozinha, mais atónita do que atarefada, a mulher segurava, no regaço, o pequeno António, num berreiro aflitivo, angustiante e pouco habitual. No lar, entre duas pedras toscas, fumegava um lume frouxo, a definhar-se de instante a instante e como que a deixar a cozinha envolta em penumbra. Sobre o lume, um caldeirão de ferro negro e tisnado, prestes a suspender a cozedura.
Deste há muito que Madalena de São João, numa aflitiva agonia, desistira de atiçar o brasido com uma acha ou sequer com um garrancho. Aguardava com uma ansiedade desmesurada e uma aflição desmedia a chegada do marido. Por isso, mal ouviu o barulho do levantar da taramela da porta da cozinha, que dava para um pequeno pátio exterior, agarrou ainda mais o filho, apertou-o ao peito com maior intensidade e veio postar-se frente à porta, ao mesmo tempo que o marido a abria:
- Credo, homem! Que te demoraste tanto! E eu aqui, numa aflição tão grande! Numa agonia por ele, por mim e por ti! Ainda há pouco, tudo voltou a tremer! Sentiste? Parecia que a casa vinha abaixo… E eu aqui… Sozinha, com ele ao colo… Cheia de medo, sem saber onde me esconder, para o proteger! Agarrei-o, debrucei-me sobre ele! Se a casa desabasse, se estas paredes caíssem eu havia de o proteger e o Senhor Espírito Santo havia de fazer o milagre de salvar o nosso menino.
José arrumou num canto da cozinha o alvião e o foicinho que trazia ao ombro, limpou as mãos num pano amarelado, suspenso da borda de um lava mãos de ferro, arrumado junto do lar, pegou no filho ao colo e abraçou-se a ela, na tentativa de a acalmar. Talvez a sua presença transmitisse tranquilidade ao filho e permitisse à mulher recuperar o ânimo perdido.
Na realidade, Madalena de São João, sentindo a presença reconfortante do marido, calou-se, por uns minutos. Também o menino, vendo ali o pai e, sentindo os seus braços a envolver-lhe o corpito, pareceu aquietar-se um pouco. José sabia que todas as palavras que proferisse naquele momento seriam uma farsa em que ela não acreditaria, mas arriscou:
- Também não foi tanto assim, mulher. Foi grande, foi um grande abalo de terra, é verdade, mas os da semana passada foram bem maiores. – E sentindo que a mulher ia acalmando enquanto o ouvia, acrescentou com mais convicção: - Deus teve piedade de nós. Protegeu-nos e protegeu a nossa casa. Cuidei que isto já tinha acalmado… E há-de acalmar, Deus é pai de misericórdia - e com gestos de carinho e blandícia tentava distrair o pequeno António que, de imediato, estendeu os bracitos vacilantes na direcção da mãe, a querer, também, encavalitar-se no colo dela.
A arfar cansaço e suor, José, aconchegando a si o pequeno, sentou-se num banco, junto ao lar. O lume que a mulher agora se entretinha a reanimar, iluminava-lhe o rosto tisnado de sol, que o filho fixava com ternura.
De repente, um outro abalo, mais forte, mais vertiginoso, mais abrupto, mais terrível, mais apavorante e mais ameaçador do que todos os que durante aquele anoitecer, até então se haviam feito sentir. Seguiu-se um forte estrondo, que acometeu com enorme violência o velho casebre. Madalena expeliu um grito de horror, de aflição e de angústia, ao mesmo tempo que invocava a protecção divina. José, procurando manter uma calma que não tinha, tentava, sem proveito, proteger com o seu, o corpo do filho. Fora um abalo fortíssimo e demorara uma eternidade. Algumas das frágeis paredes do velho casebre começavam a ruir. José Pereira de Azevedo, aconchegando mais o pequeno ao colo, deitou o braço sobre os ombros da mulher e, empurrando-a, à sua frente, saiu de casa, numa correria louca e numa aflição inexaurível.
Na realidade, desde há alguns dias que abalos muito fortes, tremores de terra assustadores, estrondos tão espantosos que pareciam trovões secos, se haviam feito sentir, não apenas, em Santa Luzia, mas também ali ao lado, nas Bandeiras e em muitos outros lugares e freguesias do Pico. Uma tragédia terrível que atormentava e punha em alvoroço as populações. Muitas pessoas já pernoitavam na rua, algumas casas já haviam ruído quase por completo. O medo e o terror haviam-se apoderado de todos.
Aquela noite porém estava a ser a mais trágica, a mais sinistra e a mais desoladora. Uma noite de terror permanente! A pior de sempre! Já iam em mais de meia-dúzia o número de abalos sentidos, desde o anoitecer. Alguns com uma intensidade fortíssima e uma duração prolongada e assustadora.
As ruelas circundantes ao casebre de José Pereira de Azevedo, ao lado da pequena ermida de Santa Luzia, embora fosse Inverno e a noite estivesse muito fria e escura, estavam cheias de gente, de medos, de desânimos, de preces e de súplicas ao Altíssimo. A aflição, o medo, a angústia, o desespero apoderavam-se de todos. Amparando-se e confortando-se uns aos outros, novos e velhos, homens e mulheres, jovens e crianças, numa prece comunitária, imploravam a misericórdia e a compaixão divinas, pediam, publicamente, perdão pelos seus pecados, ao mesmo tempo que se iam enrolando com cobertores de lã, a fim de se protegerem do frio.
Há noites e noites que era aquele martírio sobressaltado, aquele susto contínuo, aquela maldição permanente! Tudo havia começado quase no início do ano e já íamos a seis de Fevereiro. Toda a população vivia num enorme angústia. Todos estavam apavorados e cheios de medo. Quase não pregavam olho, durante a noite, e se adormeciam, era com um passar por brasas, para, logo a seguir, acordarem com um estrondo maior do que o anterior. A pequena casa de José Pereira de Azevedo e os outros casebres de pedra negra e solta, espalhados por aqui e por acolá, ao redor da pequenina ermida, só por milagre do Divino Espírito Santo ainda não haviam ruído por completo.
Estávamos nos primórdios do século XVIII, mais concretamente no início de Fevereiro do ano de 1718 e não apenas a freguesia de Santa Luzia mas quase toda a ilha do Pico vivia num medo e numa angústia permanentes desde há algumas semanas assoladas por abalos de terra, constantes, permanentes, pavorosos e aterradores.
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CARLOS DE MESQUITA
Carlos Fernando de Mesquita nasceu em Santa Cruz das Flores, em 14 de Fevereiro de 1870 e faleceu em Coimbra, 16 de Maio de 1916. Bacharel em Leis, poeta e ensaísta, estudioso do Simbolismo, Carlos de Mesquita é irmão de Roberto de Mesquita, mas não teve a projecção nem a produtividade literária deste. Formado em Direito, foi professor de liceu em Viseu e leccionou as cadeiras de Língua e Literatura Francesa, Literatura Inglesa e Filologia Germânica, na Universidade de Coimbra, desde 1911 até à sua morte. É autor do romance (inacabado) O Estrangeiro e do texto Uma Viagem de Estudo a Inglaterra. Colaborou com as revistas Ave Azul e O Faialense. O seu poema «Manhã insulana» é paradigmático da ideação vaga e irracional do Simbolismo.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores