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NADA

Segunda-feira, 24.03.14

Não se sabe quem inventou o conceito de nada. Há quem diga que foi um senhor chamado Billen Claane.Certo dia, este senhor ao acordar, pressentindo que estaria a despontar uma mítica e emblemática manhã primaveril, assomou à janela do seu quarto e, como havia um nevoeiro persistente e serradíssimo, pura e simplesmente exclamou: Não se vê nada”.

O senhor Billen Claane deveria ter sido julgado e condenado à morte por inventar tal descalabro linguístico. Antes a janela do seu quarto estivesse emperrada, presa, fechada, trancada, atarraxada, colada, enfim, totalmente obstruída, incapaz de ele a abrir e ver, cá fora, o que quer que fosse. Mas não, o senhor Billen Claane, com um desplante do caraças, abriu a janela, olhou cá para fora e, simplesmente viu o que viu: nada, pelo que não esteve com meias medidas e zás,basicamente e num instante, criou um novo conceito.

Hoje ainda nos chegam ecos deste descuido do senhor Billen Claane, do qual somo vítimas inocentes. Por tuto e por nada, não vemos nada, não comemos nada, não nos importamos com nada e nem sequer prestamos atenção a nada. Se alguém nos pede desculpa, respondemos: “de nada”, se estamos preocupados não dormimos nada, se a má disposição nos domina não suportamos nada e se adoecemos não comemos nada. Se nos mandam trabalhar não nos apetece nada, se vamos a qualquer lugar não demoramos nada, se pedimos um favor não nos custa nada, se chegamos atrasados foi apenas um nada e sempre nos aborrecemos por tudo e por nada. Até dizemos às crianças que tomar uma vacina não doí nada, que se deve comer tudo e não deixar nada, que se chover não se pode fazer nada e que se portar bem não lhe há-de faltar nada. Os outros não sabem nada, a televisão hoje não dá nada, o Benfica não está a jogar nada e aos domingos à tarde não se faz nada. Os alunos não aprendem nada, com nevoeiro não se vê nada, os ingleses não gostam de nada e os gananciosos comem tudo e não deixam nada.

Chegado a este ponto, sinceramente, apetece-me mandar o senhor Billen Claane à fava e não escrever mais nada. Mas gostava que chegasse, mesmo que fosse por decisão governamental, uma lei que pusesse fim a este maldito conceito de nada.

 

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publicado por picodavigia2 às 17:03

O PRIMEIRO NAUFRÁGIO NA FAJÃ GRANDE

Segunda-feira, 24.03.14

O primeiro naufrágio acontecido na Fajã Grande e de que há registo, porque naturalmente muitos houve antes e dos quais muito pouco ou nada se sabe, uma vez que dos mesmos não há memória, aconteceu a 5 de Setembro do ano de 1779. Tratou-se do naufrágio de um pequeno barco que, muito provavelmente, terá efectuado uma viagem da Fajã Grande a Santa Cruz, procedimento muito normal na altura, uma vez que as deslocações por terra eram quase impossíveis. Não havia caminhos e a rocha, os grotões e as ribeiras eram obstáculos quase intransponíveis. Além disso a possibilidade de qualquer transeunte se perder entre nevoeiros e temporais era muito provável. Assim o recurso ao mar para as viagens às freguesias mais distantes, deveria ser muito frequente, sobretudo quando o destino era Santa Cruz, Lajes ou Ponta Delgada. No acidente, que se terá verificado no regresso da viagem, já por fora da Fajã Grande, morreram três pessoas, não se sabendo se a embarcação traria mais tripulantes ou passageiros, o que seria bastante provável.

Foram três as vítimas deste naufrágio, todas naturais e residentes no então lugar da Fajã Grande, pertencente à freguesia das Fajãs. O mais velho chamava-se Cristóvão Valadão de 58 anos. Era filho de António Valadão e de Maria Fraga e casado com Francisca Rodrigues, filha de José Valadão e Isabel Rodrigues. A segunda vítima foi José Mateus de 32 anos, que muito provavelmente seria solteiro. Relativamente à terceira vítima, sabe-se apenas que talvez se tratasse de um jovem ou criança, que se chamava António e que era filho de Domingos de Freitas da Sumada ou da Assomada e de Maria de Freitas, contando estes dados no registo do respectivo registo de óbitos da Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios. No entanto o pai, que casou nesta paróquia, em 5 de Maio de 1778, ou seja um ano antes do desastre e da morte do filho, com Delfina dos Santos, natural da freguesia dos Cedros e viúva de João Pimentel. Trata-se, no entanto do terceiro casamento de Domingos de Freitas, uma vez que já teria casado e enviuvado, anteriormente e por duas vezes. No entanto, como, curiosamente, uma e outra das mulheres com quem casou, nas primeiras e segundas bodas, tinham o mesmo nome, Maria Freitas, não se sabe qual delas seria a mãe do infortunado António, falecido neste trágico acidente. Além disso, não consta que Domingos de Freitas da Assomada tenha realizado os seus dois primeiros consórcios na paróquia onde residia, ou seja a das Fajãs.

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publicado por picodavigia2 às 10:51

DINHEIRO

Segunda-feira, 24.03.14

“O dinheiro é óptimo, quase perfeito, é capaz de tirar a pessoa da pobreza, mas nunca será capaz de tirar a pobreza das pessoas.”

FB

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publicado por picodavigia2 às 09:24

A VELHA

Domingo, 23.03.14

(CONTO TRADICIONAL)

 

Era d'uma vez uma velhinha, muito velha, muito atarracada, que andava sempre a pedir esmola e a cramar junto das pessoas, “que não tinha ninguém, que era muito desgraçadinha.”

Mas o povo dizia que a velha tinha dinheiro, e por isso, n'um dia, um ladrão, aproveitando a ocasião em que ela saiu casa para ir à fonte, entrou-lhe em casa e escondeu-se debaixo da cama.

A velha quando voltou viu-lhe um pé. Esteve para gritar, mas teve medo de que ele lhe batesse e a matasse e por isso deixou a porta aberta e ajoelhando-se em frente de um crucifixo que tinha, pôs-se de mãos postas a rezar em voz muito alta:

- "Meu Deus, quando eu era moça namorava um rapaz muito bonito! Depois casei com ele e, quando chegámos a casa tirou-me o véu! Que vergonha, meu Deus! – E levantava a voz cada vez mais e continuava: - Depois tirou-me o vestido, as saias, as botas, Ai! Ai! Ai! Que vergonha! Que vergonha!

Os vizinhos ouviram aqueles gritos e acudiram a ver o que era. A velha assim que sentiu gente em casa, sem mudar de posição, gritava;

- Vão debaixo da cama que lá está o ladrão!

Os vizinhos foram a ver e lá estava o homem que levou uma grande sova; e assim se livrou a pobre velha de ser roubada e morta.

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publicado por picodavigia2 às 22:59

A HORTA DAS ABÓBORAS

Domingo, 23.03.14

A toponímica fajãgrandense, para além de ampla e variada, era interessantíssima. Na realidade na Fajã Grande existiam lugares com nomes invulgares e cujo simbolismo era deveras muito interessante. Era o caso da Horta das Abóboras, um pequeno lugar encastoado entre as relvas da Alagoinha e as terras de mato do Espigão, quase Lá-a-Trás, e, consequentemente, muito longe das terras de cultivo onde as caseiras floresciam à espera de produzir as suas belas e saborosas abóboras. Estranho pois este topónimo, porquanto ali não havia praticamente nenhuma terra de cultivo, nem muito menos belgas soalheiras onde se pudessem cultivar abóboras. No entanto, na Alagoinha, na década de cinquenta, ainda havia uma outra terra de cultivo da batata-doce e, ao lado, no Moledo Grosso, assim como na Lombega, e no Espigão havia algumas belgas e hortas de inhames. É pois natural que em décadas recuadas ali houvesse terras de aráveis, nomeadamente campos de cultivo do milho e de outros produtos que com ele se misturavam ou alternavam na Fajã Grande, entre os quais abóboras. Se em tempos recuados se semeou milho no mato, embora milho para o gado, mais natural é que o mesmo tenha acontecido naqueles descampados que embora distantes do povoado eram bastante férteis Muito provavelmente aquele seria um bom lugar para o cultivo destas cucurbitáceas ou então existiria ali apenas uma horta onde se cultivavam as ditas cujas e daí o lugar terá havido nome.

Na década de cinquenta, porém já não havia ali terrenos de cultivo nem sequer relvas, apenas terras de mato e poucas, porque o lugar, na realidade era muito pequeno, talvez o mais pequeno da Fajã Grande.

O acesso a este lugar fazia-se geralmente pelo caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros. Numa pequena ladeira que existia, a seguir ao descansadouro dos Paus Brancos e antes da recta que dava para Mateus Pires, havia uma canada, muito estreita e sinuosa que permitia chegar-se à Horta das Abóboras. Pelo lado do Espigão tinha-se acesso apenas atravessando algumas propriedades pertencentes a este lugar. Acrescente-se que a Horta das Abóboras fazia fronteira a norte com os Paus Brancos, a leste e a sul com a Alagoinha e a oeste com o Espigão e a Lombega.  

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publicado por picodavigia2 às 22:32

PRIMEIRA VIAGEM

Domingo, 23.03.14

Havia uma nuvem a desfazer-se

No azulado lívido do céu.

 

Havia uma ganhoa pousada

No manto negro de um penedo.

 

Havia respingos de marés,

A dançarem, como se fossem noivos entontecidos.

 

E a tarde esmoronava-se, apressadamente,

Sob o derradeiro raiar de um dia de sol.

 

No porto, em solavancos apressados,

Um barco acabava de varar.

 

Ali, no silêncio do anoitecer,

Terminava a minha primeira viagem.

 

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publicado por picodavigia2 às 15:40

UM INCIDENTE

Domingo, 23.03.14

(UM CONTO DE NUNES DA ROSA)

 

Em casa do Senhor imperador há uma lida, uma barafunda, que eu sei lá!…

Roupas brancas ao sol, secas de goma, os estandartes de seda pelas janelas fora, enrolados, grandes cestos de verdura e flores sobre o balcão, molhos de canas de foguetes por aqui ou por acolá, mesas lavadas ao sol, um montão de cadeiras, em desordem, de pés ao ar umas, de lado outras… Vê-se que há ali trabalho… E que balbúrdia, que confusão!… Todos andam esbaforidos e apressados…

Rapazes que acarretam coisas de fora - loiças, bancos, alguidares; grupos de raparigas com cestos de copos e garrafas; homens sisudos e atarefados que armam os arcos - à porta de entrada, ao portão e a atravessar o caminho…

 - Também não fica mau!…

 E a cozinha do imperador fumega todo o santo dia, em roças de fumo que é uma coisa!… A cada fornada de pão que se coze atira-se uma resposta, quando se toma a presa às massas queima-se um foguete.

E aqui a senhora imperatriz tem que atender a tudo, dar expediente a tudo…

O magarefe ainda de braços ensanguentados, a comprida faca na mão e o suor em camarinhas pelo peito - a camisa aberta, dá a derradeira demão à carne: aquela para cozer, aquela para assar, aquela para os senhores padres, aquela para os cantores, esta para…

- Não se poipa… Há para tudo com a graça do Senhor Espírito Santo!…

E a cozinheira e as ajudantes de braços arregaçados, as saias presas à cintura, os lenços atados para trás, vão e vêm e voltam, e andam numa confusão…

- Vamos daqui, vamos daqui…

- Meninos, brincar lá para fora…

E pela porta da cozinha sai um enxame de crianças, enfarinhadas, trazendo pedaços de pão, retoiçando alegres…

O senhor imperador, esse, então, nem falar nisso…

- É preciso um homem ter cabeça para estas coisas…

- O Senhor Espírito Santo ajuda…

E dá-se um gole de aguardente a este que está suado, um copo de vinho àquele - para ir depressa, uma fatia de pão àquele outro para levar aos pequenos…

- Há para todos com a graça do Senhor Espírito Santo!…

Mas à tarde fez-se uma relativa quietação pacificadora…

- Não tarda aí essa gente…

Essa gente eram os vizinhos, os conhecidos, as pessoas devotas, que todas iam rezar o Terço ao Divino Espírito Santo.

Deu-se então à casa a ordem possível, que a sala de fora essa está sempre arranjada…

O altar da Coroa é uma coisa linda, de rendas e flores e lumes, a sala é um céu, de cortinados e de lençóis de linho, afestoada de lenços de seda e engalanada de cordões e anéis de oiro…

E como quer que nestes dias só se trate de coisas indispensáveis à vida - a lenha para as fornadas de vésperas, moenda para o pão da festa e comida para o gado, a senhora imperatriz deixou de andar em dia com a bisbilhotice das vizinhas; mas ao marido sempre vão dizer as coisas. Ela não sabe como é. Acha-o triste. Quem serve sempre tem desgosto!

 - Coitado! Tenho dó dele! - comentava a que atiçava o lume do forno, afectando uma grande inquietação.

E depois dum suspiro, mal reprimido:

 -Ah! línguas, línguas, quem as apanhasse picadas entre esta lenha!…

A senhora imperatriz estacou no meio da cozinha, com as mãos nas ilhargas e o rosto em camarinhas:

 - Mas que é que foi agora?!

 - Que é que foi?! A comadre está farta de o saber!

 - Assim Deus me salve, como não sei nada! Que foi?!…

- Antes tratasses do forno! - Enviesou uma lá dum canto, muito aborrecida, a temperar um molho.

Mas a senhora imperatriz insistia: não era bem que em sua casa, e em dias daqueles, se dissessem coisas que ela não pudesse saber…

E a do forno, com grandes gestos, assomadiça:

- Antes eu estivesse calada!… Vá a comadre tratar do seu governo!…

A dona da casa exaltou-se: que não tivesse o atrevimento de lhe dar ordens e que já que falava por meia língua havia de dizer o resto!

 - Eu cá não digo nada!

 - Há-de dizer!

- Dize, criatura! intervieram as outras, fazendo sinais para aquilo não ir por diante.

Um grupo de mulheres que chegava açodado com coisas precisas, inteirado do incidente, achou que a senhora imperatriz tinha carradas de razão… A outra se sabia alguma coisa a respeito do dono da casa devia declará-lo, até para não se fazerem juízos temerários, porque às vezes uma pessoa andava vendida inocente…

E a sujeita:

  - A respeito de meu compadre, daquelas barbas honradas, o quê, filhas?!… Foi cá uns zuns-zuns que me passaram pelos ouvidos, mas a respeito doutra pessoa…

E muito sacudida:

 - Ora aí está! Fiquem vocemecês agora descansadas!

 - De outra pessoa?!…

Foi uma explosão!

É bem feito, que havíamos de estar em nossas casas!

- Eu cá se não fosse com medo de algum castigo do Senhor Espírito Santo…

- Ó mulheres! Isso não é com vocês! - Gritava a do forno.

 Uma vinha com uma colher para a senhora imperatriz provar um tempero, mas esta repeliu-a, protestando colérica que a deixassem, que já estava quase doida, que lhe mudassem o nome que tinha se aquilo se não pusesse a claro…

A outra continuava a bravejar, algumas berravam que daquela maneira ficava o governo por fazer, outras protestavam alto contra os mexericos que roubavam o sossego das pessoas, e o alarido estendendo-se pela casa fora, chegou ao balcão, ao pátio e à rua.

Toda a gente correu por ali dentro, ansiosa de saber de que se tratava. O senhor imperador veio também, pálido e enfiado, ainda com um foguete e um tição, de olho assarapantado, receando que o tecto da cozinha tivesse vindo abaixo.

A coisa estava custosa de aclarar.

 Todas falavam ao mesmo tempo, alto e com grandes gestos, e o senhor imperador não sabia a qual atender.

O magarefe, nos bicos dos pés, sobre a soleta da porta da cozinha, perguntava se algum caldeirão tinha estoirado, e uma mulher, que emprestara pratos, entrava a inquirir, possessa, se se tinha quebrado a loiça.

Ninguém se entendia!

O senhor imperador, nervoso, encaminhou-se para o balcão, atirou o foguete, para que se soubesse que não tinha acontecido nenhuma desgraça, e voltou a ver se conseguia deslindar a questão.

A explosão da cólera entre o mulherio que redemoinhava na cozinha estava no seu auge.

A mulher do forno deliberara, finalmente, falar.

As suas palavras eram repetidas naquele pandemónio, espumante de indignação:

- O João Rodrigues tinha dito que o vinho do senhor imperador ainda era mais somenos que vinagre!

O senhor imperador abalou, a atirar mais foguetes:

 - Ora! Ora!

 

Nunes da Rosa, in Gente das Ilhas,

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publicado por picodavigia2 às 15:06

ENXERTIA DA VINHA EM SÃO CAETANO

Domingo, 23.03.14

À semelhança de muitas outras localidades açorianas, a freguesia de São Caetano usufrui de uma paisagem fortemente marcada pela prática agrícola, na qual se destaca a cultura da vinha. Na realidade, a vinha e o vinho constituem, para a mais jovem freguesia do concelho da Madalena, um importante património económico e personificam traços fundamentais da sua identidade cultural, ainda hoje registados em múltiplos vestígios associados à produção do vinho, tais como currais, girões, canadas, maroiços, muros, portais, adegas, alambiques, armazéns, lagares, prensas, barricas, etc. Muitos destes elementos, para além de caracterizarem a paisagem envolvente da freguesia, encerram um testemunho histórico remanescente de uma actividade vinícola pujante, consistente, feita com arte e sabedoria e, sobretudo, reveladora da labuta quotidiana de um povo simples, humilde, generoso e trabalhador.

Assim, desde os tempos mais remotos que o cultivo da vinha, em São Caetano, se revelou árduo, trabalhoso, difícil e cansativo, uma vez que a maioria dos terrenos destinados àquele cultivo se estendiam, quase exclusivamente, na zona mais estéril e pedregosa e de solo mais pobre da freguesia. Nesta zona, situada entre o mar e as habitações, foram, também, construídas as adegas, edifícios de apoio à produção vitivinícola que ainda hoje permanecem como baluartes duma epopeia simples e modesta mas digna e valorosa. Se às limitações e aridez do solo juntarmos as intempéries e os vendavais com que a freguesia era, frequentemente, fustigada, compreende-se melhor a necessidade de um ciclo de trabalhos contínuos e ininterruptos que o cultivo da vinha exigia, com destaque para a enxertia, tarefa minuciosa e que requeria muita técnica, efectuada, geralmente nos meses de Janeiro, Fevereiro e Março.

A enxertia exigia, em primeiro lugar, o plantio dos bacelos ou seja pedaços de caules extraídos de uma videira e destinados à formação de uma nova planta. Os bacelos deviam conter entre cinco a seis olhos, ter um tamanho médio de quarenta centímetros, ficando na terra, durante cerca de um ano, a fim de criarem raízes e engrossarem. Ao adquirir a espessura considerada suficiente, o bacelo era plantado no local pretendido, cortado na parte superior e rachado, formando o “cavalo”, que havia de receber a “pua” ou “garfo”, ou seja o ramo que se pretendia enxertar. Este era escolhido e retirado das melhores e mais produtivas videiras e cortado em forma de cunha, de maneira a encaixar no “cavalo”, a casca verde de um na do outro.

Depois de introduzido no cavalo, o garfo era amarrado com filaça ou com ráfia e coberto com terra, transportada de outras zonas, uma vez que as vinhas, geralmente, se localizavam em terrenos pedregosos.

Como a maioria das vinhas era muito distante das residências, os homens levavam as suas merendas, para não perderem tempo e rentabilizarem melhor o dia, trabalhando de sol a sol.

Em São Caetano, terra de grandes e experientes enxertadores, as “idas à adega” eram muito frequentes, sobretudo, antes e depois do trabalho. Por isso mesmo, antes de irem para a enxertia os homens faziam uma passagem, pode-se dizer obrigatória, pela adega.

 

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publicado por picodavigia2 às 08:54

SORRISOS

Sábado, 22.03.14

A doçura dos sorrisos

Era tanta

E tão grande…

 

Havia apenas uma janela aberta

E nem sequer

Se via o mar

Ou se ouvia a sinfonia, abrupta, do silêncio.

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publicado por picodavigia2 às 21:06

EM MARÇO

Sábado, 22.03.14

“Em Março, tanto durmo como faço.”

Mais um interessante adágio utilizado na Fajã Grande para indicar que ali, como em quase todas as outras localidades açorianas, o mês de Março era um verdadeiro mês de Inverno, onde se podia ter bom ou mau tempo e, consequentemente, durante o qual se podia trabalhar ou estar completamente impedido de o fazer.

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publicado por picodavigia2 às 19:42

A BELA ADORMECIDA

Sábado, 22.03.14

Avó, conte mais uma estória, aquela da Bela Adormecida. Esperava um pouco, sentava-se à janela de perna cruzada e começava:

 

Era uma vez um rei e uma rainha que viviam num belo palácio e governavam um grande reino.

Certo dia tiveram uma grande alegria. Uma cegonha aproximou-se de palácio e, dentro duma cestinha, trazia-lhes uma bela menina. O rei e a rainha ficaram tão contentes, tão contentes que, no dia do baptizado da princesa resolveram dar uma grande festa para a qual convidaram as pessoas mais importantes do reino. Foram, também, convidadas três fadas que seriam as madrinhas da princesa e que as haviam de prendar com as melhores qualidades e os maiores dons que um ser humano pode ter. As fadas chamavam-se Flora, Fauna e Primavera.

Realizaram-se os festejos e, a meio da festa, Flora decidiu conceder à princesa o dom da beleza. De seguida Fauna, aproximando-se da menina deu-lhe o dom da música. Finalmente a terceira fada, a Primavera aproximou-se do berço da menina, para também lhe conceder um dom. Nesse momento, porém, sem que ninguém se apercebesse, entrou no palácio uma bruxa má e invejosa que, subitamente, se aproximou do berço antes da boa fada Primavera, gritando:

- Quando fizeres dezasseis anos vais picar-te no fuso de uma roca e morrerás!

E dando uma enorme gargalhada desapareceu no ar...

Estarrecidos, os reis suplicaram à fada Primavera que retirasse aquele feitiço e desse à sua querida menina um dom que a libertasse da morte.

- Não tenho poderes para isso, - respondeu a fada - apenas posso torná-lo mais suave.

Aproximou-se da princesa e tocando-a na testa com a sua varinha de condão, disse-lhe:

- Não morrerás...adormecerás profundamente, até que um beijo de amor te desperte!

Os anos passaram e a menina cresceu e transformou-se na mais bela e bonita princesa, passando a viver num bosque, perto do palácio, sempre sob os cuidados atentos das três fadas. Ao completar dezasseis anos, as fadas levaram-na para o castelo, para junto dos pais. Percorreu todas as salas do palácio e, numa delas, encontrou uma velha que estava a fiar numa roca, e lhe pediu ajuda. A princesa, boa como era, não foi capaz de dizer que não. Mas mal tocou na roca, picou-se, e caiu no chão profundamente adormecida.

Quando as três fadas, que já haviam regressado ao bosque, souberam do sucedido, resolveram encantar o castelo. Todos adormeceram nos lugares onde estavam, o rei, os músicos, os cortesãos, os criados, até o bobo da corte e as aias e os cavaleiros! O tempo ali como que parou.

Decorridos cerca de cem anos, um dia, andando à caça, um belo príncipe passou no bosque ao lado do castelo abandonado Admirado por não ver ninguém lá dentro resolveu entrar. Percorreu todas as salas e numa delas encontrou uma linda e bela princesa, a dormir. Admirado com a presença da jovem e maravilhado com tanta beleza e com o seu ar bondoso, curvou-se sobre ela para a ver melhor e beijou-a com todo o amor.

O feitiço desfez-se! A princesa acordou. Acordou o rei, a rainha também e toda a corte. E a alegria voltou ao castelo, e fizeram-se grandes festejos, com música e danças por todo o lado.

O príncipe pediu a jovem em casamento e fez-se a maior boda de todos os tempos, e os dois jovens viveram felizes para sempre.

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publicado por picodavigia2 às 18:06

DOCE

Sábado, 22.03.14

MENU 31 – “DOCE”

 

ENTRADA

 

Canapés de bolachas cream-crayquer barradas com creme de queijo fresco e recobertas com rodelas de cenoura, alface e tiras de pimento.

 

PRATO

 

Bife de peru grelhado, temperado com alho e limão e encimado com compota de laranja. Migas de ervilhas de quebrar temperadas com ervas doces e alho.   

 

SOBREMESA

 

 Folhado de maçã com geleia e gelatina de morango.

   

******

 

Preparação da Entrada: - Barrar as bolachas com o creme de queijo e colocar-lhes rodelas finas de cenoura crua, pedaços de folha de alface e tiras de pimentos verdes e vermelhos.

 

Preparação do Prato – Temperar e grelhar o bife, cobrindo-o, em quente com a compota de laranja. Cozer as ervilhas em água com um pouco de azeite e alho. Esmagar o pão e ensopá-lo com a parte necessária da água de cozer as ervilhas. Refogar em azeite um pouco de alho picado, juntar as ervilhas e o pão e misturar muito bem. Servir, ladeando o bife.

 

Preparação da Sobremesa – Cortar finamente uma maçã com a casca. Temperá-la com açúcar, canela e sumo de limão. Cortar a massa folhada em quadradinhos sobre os quais se colocam as rodelas de maçã. Levar ao forno e após retirar pincelar com geleia de fruta ou mel. Gelatina pelo processo tradicional.

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publicado por picodavigia2 às 17:05

SAUDADE

Sábado, 22.03.14

“Saudade é um sentimento que quando não cabe no coração, escorre pelos olhos.”

 

Bob Marley

 

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publicado por picodavigia2 às 16:33

DUARTE BRUNO DE MELO

Sábado, 22.03.14

O poeta Duarte. Bruno de Melo nasceu na vila da Povoação, ilha de S. Miguel, a 6 de Outubro de 1868 e faleceu em Algés, em 17 de Agosto de 1950. Após os estudos primários, viveu em Angra, onde terminou o curso do Seminário e foi ordenado em 1892. Em Lisboa, concluiu o Curso Superior de Letras e o do Instituto Colonial. Foi jornalista profissional e funcionário do Ministério das Colónias, onde dirigiu o serviço de Justiça e Cultos. Foi secretário da Junta Central do Trabalho e Emigração e redactor do Ementário Judicial das Colónias, designado posteriormente Boletim Judiciário do Ultramar. Militante activo da causa republicana, desligou-se do sacerdócio, após a implantação da República, e integrou a Comissão Central das Pensões Eclesiásticas, em 1911, após a publicação da Lei de Separação da Igreja do Estado. Em Lisboa, juntou-se à comunidade açoriana na defesa dos interesses insulares, tendo sido nomeado, em 1944, vice-presidente da Comissão de Defesa e Propaganda das Ilhas. Como poeta, seguiu, numa primeira fase, os cânones parnasianos para, a partir de 1892, se tornar simbolista. Foi um dos pioneiros em Portugal do verso livre, antes da sua prática se tornar corrente com Fernando Pessoa e o modernismo. A sua obra está dispersa por jornais dos Açores e Lisboa.

 

Dados retirados do CCA – Cultura Açores

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publicado por picodavigia2 às 16:22

MEDEIA

Sábado, 22.03.14

Medeia, filha de Eetes, rei da Cólquida, sobrinha de Circe foi uma esperta e subtil feiticeira que se apaixonou por Jasão, ajudando-o a obter o famoso “Velocino de Ouro”, que era posse de seu pai. O “Velocino de Ouro”, também conhecido por “Tesão de Ouro” era uma espécie de véu, mítico, doirado, e preciosíssimo que pertencera, originalmente, a um carneiro que tinha salvado duas crianças, Frixo e Hele, filhas de Atamante. Para as livrar de serem imoladas em sacrifício a Zeus, sob as ordens da sua malvada e cruel madrasta, Ino, o carneiro fugiu com as crianças, levando-as às cavalitas, para as montanhas. No entanto, durante a viagem, ao cruzarem o estreito canal que separava a Europa da Ásia, Hele caiu das costas do carneiro, estampando-se no mar que ali existia e que, por isso, passou a chamar-se - o Helesponto. Mas Frixo continuou o voo, bem agarrado ao dorso do carneiro, até o Mar Negro. Aí, o carneiro parou, desceu até à Cólquida e dirigiu-se para palácio do rei Eetes. Eetes recebeu Frixo de maneira gentil e simpática. Para lhe agradecer, o menino sacrificou o carneiro a Zeus, mas antes tirou-lhe o véu da lã, que se transformou num belo - “Velocino de Ouro” que ofereceu-o ao rei Eetes. Eetes, por sua vez, pediu a Ares, deus da guerra selvagem, da sede de sangue e da matança personificada, que o guardasse e Ares depositou-o num bosque sagrado, colocando um temível dragão a vigiá-lo, a fim de não ser roubado. Quando Jasão surgiu à procura do “Velocino de Ouro”, Ares jurou que apenas lho daria se ele conseguisse lavrar um campo com um arado puxado por dois monstruosos e indomáveis touros, com cascos de bronze nas patas e que expeliam fogo pelas narinas, os quais lhe haviam sido oferecidos por Hefesto.

Ora, Jasão queria o “Velocino de Ouro” para satisfazer as exigências imperiosas de Pélias, usurpador do trono do reino de Iolco. Jasão era filho de Éson, o legítimo rei de Iolco mas velho e incapaz de governar, e Pélias, meio-irmão de Éson, deveria governar Iolco, apenas até que Jasão, o verdadeiro herdeiro do trono, atingisse a idade adulta. Quando Jasão alcançou a maioridade, exigiu a sua herança, ou seja, o trono de Iolco, mas Pélias, não quis abdicar e obrigou-o a uma missão impossível: só lhe daria o trono de Iolco se ele lhe trouxesse o “Velocino de Ouro”, tarefa, obviamente, considerada inexequível, dada a permanente vigilância do temível dragão. Mas Jasão teve sorte, porque cerca de cinquenta heróis gregos comprometeram-se a ajudá-lo, não apenas a construir um navio, que o havia de levar à Cólquida mas também acompanhando-o na viagem, a fim de ele conseguir aquele infactível objectivo. Entre estes heróis, os mais importantes foram: Tífis, timoneiro do navio, o músico Orfeu, Zeto e Cálais, filhos do Vento Norte, os irmãos de Helena, Castor e Pólux, Peleu, pai de Aquiles, Meléagro da Caledônia, famoso caçador de javalis, Laerte e Autólico, pai e avô de Ulisses respectivamente, Admeto, o profeta Anfiarau, o próprio Hércules e muitos outros que, em função do navio onde navegavam, ficaram conhecidos como os “argonautas”. É que o navio chamava-se Argo, nome que significava "Rápido", pois era o mais veloz navio até então existente, em toda a Grécia. Foi construído no porto de Pagasse, na Tessália, com madeira do Monte Pélion, sendo a proa feita com parte da madeira de um carvalho sagrado, trazido do santuário de Zeus, em Dodona, por Atena. Esta peça feita com madeira do carvalho sagrado era profética e poderia falar, em ocasiões especiais, a fim de proteger os argonautas ou orientar a rota do navio.

Para além da tarefa de lavrar o campo, Jasão ainda teria de nele semear os dentes de um terrível dragão que fora morto por Cadmo, em tempos idos. Uma e outra destas tarefas eram praticamente impossíveis para Jasão. Foi Medeia, que, conhecendo os segredos do pai e apaixonada perdidamente por Jasão, se dispôs a ajudá-lo em tão difícil tarefa. Movida pela sua enorme paixão, Medeia traiu o seu pai, o rei Eetes e usou os seus poderes mágicos para salvar a vida do amado e lhe dar o “Velocino de Ouro”. Foi Hera, deusa protectora de Jasão, que pediu a Afrodite que convencesse Eros a fazer com que Medeia se apaixonasse por Jasão, a fim de o ajudar. Em troca, Jasão casar-se-ia com ela, e levá-la-ia consigo, para Iolco. Para o ajudar Jasão, Medeia ofereceu-lhe um unguento com que deveria ungir o seu corpo, enquanto lavrasse o campo, tornando-se, assim, invulnerável ao fogo e ao ferro e, desta forma, conseguisse enfrentar os touros e lavrar o campo. Além disso, Medeia também o avisou de que dos dentes do dragão, depois de semeados, nasceria uma seara de soldados que se revoltariam contra ele e que matá-lo-iam. Para evitar que tal acontecesse, Medeia revelou-lhe o segredo de Cadmo: se ele, de longe, atirasse uma pedra para o meio desse exército nascido da terra, os soldados ficariam confusos e destruir-se-iam uns aos outros. Com tais conselhos, Jasão executou as duas tarefas com facilidade e perfeição, exigindo, no fim, a Eetes, a recompensa a que tinha direito: - o “Velocino de Ouro”. Eetes ficou furioso e tentou incendiar o navio Argo. Foi, novamente, Medeia que tal impediu, dando-lhe narcóticos e conseguindo adormecer o terrível dragão que guardava o “Velino de Ouro”, avisando-o, também, dos planos do pai, de lhe incendiar o navio. Jasão conseguiu, assim, fugir da Cólquida, com a posse do tesouro desejado – o “Velocino de Ouro”.

Medeia decidiu partir com Jasão levando consigo o seu irmão Apsirto. Sabendo que o pai lhes iria no encalço e para o confundir e atrasar, Medeia matou Apsirto e cortou-o aos pedaços, espalhando-os pelo caminho, pois sabia que o pai tentaria recolher cada pedaço do filho para lhe dar a sepultura devida e assim conseguiria que ele se atrasasse, impedindo-o de os apanhar. Mas tão hediondo crime fê-los incorrer na ira de Zeus que, para os castigar, decidiu afastar o navio da rota traçada. Mas nessa altura, a nau, Argo, utilizando o poder falante da sua proa, informou Jasão e Medeia de que teriam de ser ritualmente purificados do crime cometido contra Apsirto. Quem o faria, seria Circe, tia de Medeia, por isso, encaminhou-os para a ilha de Circe, onde a feiticeira os purificou, não aceitando, no entanto, que Jasão permanecesse na sua ilha.

Por isso, depois de purificados, continuaram a navegar, com destino à Tessália, mas chegados a Creta, Medeia voltou a ter um papel importante na luta de Jasão contra Talo, o homem de bronze, que, quase invulnerável, rondava a ilha, lançando pedras contra as naus que ali chegavam, impedindo-as de acostar à ilha. Medeia sabia que o seu ponto fraco consistia numa veia que ele tinha, protegida por uma cavilha, no fundo de uma perna. Graças às suas artes mágicas, o gigante foi enfeitiçado, levado à loucura e morto, após o que a tripulação pode, realmente, desembarcar em terra firme, na ilha de Creta.

Daí, Medeia, Jasão e o grupo dos argonautas seguiram para Iolco, na Tessália, onde foram recebidos com muito entusiasmo e grandes festejos. Com a sua arte mágica Medeia rejuvenesceu Éson, rei de Iolco e pai de Jasão, ajudando-o, mais uma vez, a matar Pélias, o usurpador da coroa de Iolco, fazendo com que as próprias filhas lhe dessem uma receita trocada e que estava envenenada. Esse crime, porém, fez com que a população de Iolco se revoltasse contra ela e contra Jasão, obrigando-os a fugir para Corinto, onde passaram a viver exilados.

Alguns anos depois, Jasão apaixonou-se e casou com Gláucia, a jovem filha de Creonte, rei de Corinto, desta feita, abandonando Medeia e os filhos e subestimando o seu poder de enfurecimento. Instigado pelo novo genro, o monarca decretou a expulsão de Medeia e de seus filhos de Coríntio, mas esta, inconformada, sentindo-se traída e humilhada, encheu-se de um ódio sobre-humano e arquitectou uma terrível vingança para aniquilar e destruir o seu ex-marido. Utilizando os seus poderes mágicos, matou os filhos que tivera com Jasão e presenteou a sua rival, Gláucia com um manto mágico que se incendiou ao ser vestido, matando-a a ela e ao pai, rei de Coríntio. Jasão enlouqueceu e suicidou-se. Depois da morte de Jasão, Medeia fugiu para Atenas e casou-se com o rei Egeu, pai de Teseu, com quem teve um filho, Medos. Mas, passado algum tempo, decidiu, conspirar contra a vida do enteado. Teseu, filho do primeiro matrimónio do rei Egeu, tentando envenená-lo. Descoberta foi obrigada a retirar-se de Atenas

Acompanhada do filho Medo, Medeia voltou para a Cólquida. Nessa altura o rei Eetes, seu pai, já tinha sido deposto por seu irmão Perses. Medeia e Medo mataram-no e Medo usurpou o trono da Colquídia. Apoiado pela mãe, tornou-se um rei forte e poderoso, conquistando um grande território, que passou chamar-se Média.

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publicado por picodavigia2 às 13:53

O LOBO SEM SORTE

Sábado, 22.03.14

(CONTO TRADICIONAL)

Era uma vez um lobo que andava cheio de fome, pois há vários dias não conseguia caçar nada para comer.

Certo dia, acordou muito entusiasmado, cuidando que havia de encontrar alguma comida. Assim, logo pela manhã pôs-se a caminho do bosque e encontrou dois carneiros guerreando. Aproximou-se, sorrateiramente, sem eles se aperceberem. Ao chegar junto deles deu-lhes um enorme raspanete:

- Que desordem é essa? Aqui já não há rei nem roque?

- Ó senhor lobo – respondeu um dos carneiros, muito assustado, - bem sabemos que nos vai matar e comer, mas primeiro resolva-nos aqui uma dúvida: este meu amigo que é doutro rebanho, diz que esta pastagem é do dono dele e aquela é que é do meu dono, mas eu digo que não… Ora o senhor lobo podia ver se este marco está em endireito com aquele além…

O lobo armado em marcador de extremas e fronteiras, pôs-se a olhar muito atento, até que levou uma valente marrada de um dos carneiros que o deixou caído no chão e sem sentidos…

Ao acordar da pancada, lá pensou que não voltaria a ter tanto a azar nem nunca mais ser comido por lorpa, seguiu o seu caminho e, mais adiante, avistou, no meio de um vale, uma égua muito velha e magra com uma cria que andavam pastando.

 - Ora ali estará a minha primeira refeição, - pensou. - A mãe está velha e magra e a filha é muito nova para me fazer mal…

Aproximou-se e, delicada e sorrateiramente, pediu desculpa á égua e disse que teria de a matar pois há dias que não comia nadinha. A égua, tentando proteger-se a si e à filhota, disse-lhe que concordava mas que antes se lhe fizesse um grande favor. Se ele atendesse o seu pedido até lhe dava a filha que ainda seria um melhor petisco.

- Qual é o favor? – Perguntou o lobo, já sonhando com um belo almoço.

- Ora, senhor lobo, é só tirar-me um cravo ou um prego que se me cravou na pata traseira e que não pára de me incomodar.

O lobo concordou e, mal se baixou para observar a pata da égua, levou tamanho coice que caiu de costas com os queixos partidos, enquanto a égua e a cria se punham em fuga, correndo para casa do seu dono.

Algum tempo depois, o lobo, ainda atordoado, lá se levantou e continuou a sua caminhada. Logo a seguir atravessou um pequeno oiteiro, onde encontrou uma porca com bacorinhos. Pensando que era desta vez que saciaria a sua fome, aproximou-se da porca com bons modos:

- Ando tão dorido e com tanta fome, senhora porca, que tenho de comer a ti e aos teus porquinhos…

- Ó senhor lobo, eu nem me importo que nos coma, mas os meus filhos ainda não foram baptizados. Se o senhor lobo me fizesse o favor de os baptizar, depois pode comê-los e vão-lhe fazer melhor proveito. Depois ainda me pode comer a mim. É só subir para cima da borda daquele poço, eu vou-lhe dando os porquinhos um a um e o senhor lobo deita-lhes a água. Depois pode comê-los.

Comovido o lobo não se fez rogado e saltou para a borda do poço. Mal o apanhou ali encavalitado, disposto a baptizar-lhe os filhotes, a porca deu-lhe tamanho empurrão que ele caiu para dentro do poço, quase morrendo afogado. A porca fugiu dali a sete pés com os filhos e o lobo, só algum tempo depois e muito a custo, consegui sair do poço, onde, onde quase morreu afogado.

Mas mesmo assim não desistiu de procurar comida, pois realmente tinha muita fome. Continuou a andar e, mais adiante, encontrou uma vaca a pastar num campo mas presa por uma corrente a uma estaca.

- Mas que sorte! Esta não me vai fugir. Agarro a corrente, puxo e a vaca cai. Que rico almoço eu vou ter e que me vai dar para três dias!

Arrancou a estaca, agarrou a corrente e, sem se aperceber, ficou preso a ela. Mal se sentiu solta, a vaca começou a correr, levando o lobo de rastos, atrás de si, preso na corrente. Esta, porém, rebentou e o lobo caiu num valado enquanto a vaca se refugiava no palheiro do seu dono. Cheio de dores o lobo lá se levantou e lastimando-se disse, para consigo: - "Quem te manda lobo ser marcador de extremas, veterinário de éguas e baptizador de porcos?

E voltou para a sua toca esfomeado e triste pensando que se a corrente não se tivesse partido, tinha sido arrastado até à casa do dono da vaca onde, muito provavelmente, havia de morrer com um tiro.

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publicado por picodavigia2 às 09:40

A MÚSICA DA ALMA

Sexta-feira, 21.03.14

“A poesia é a música da alma, e, sobretudo, de almas grandes e sentimentais.”

Voltaire

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publicado por picodavigia2 às 21:07

MAR PORTUGUÊS

Sexta-feira, 21.03.14

(POEMA DE FERNANDO PESSOA)

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

 

                    Fernando Pessoa, in Mensagem

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publicado por picodavigia2 às 18:51

DIA MUNDIAL DA POESIA

Sexta-feira, 21.03.14

A poesia é uma das sete artes tradicionais, pela qual a linguagem humana é utilizada com fins estéticos, ou seja de manifestar e comunicar algo em que tudo pode acontecer, dependendo quer da criação e imaginação do autor quer da compreensão e interpretação do leitor. Na realidade, se o sentido da mensagem poética é pertença do autor, cada leitor como que se torna um poeta, na medida em que a compreende e a interpreta à sua maneira. De forma a tornar-se, ele próprio, também um criado, um outro poeta. A poesia identifica-se com a própria arte, dado que esta também é uma forma de linguagem, ainda que, não necessariamente, verbal. Acredita-se, inclusivamente, que a poesia como uma forma de arte seja anterior à própria escrita. Muitas obras antigas, como os Vedas indianos, os Gathas de Zoroastro, a Odisseia. a Ilíada e até alguns livros da Bíblia, como os Salmos parecem ter sido compostas antes da invenção da escrita em forma poética e transmitidas oralmente, para ajudar a memorização e a transmissão oral nas sociedades pré-históricas e antigas. Sabe-se também que os provérbios populares se foram transmitindo de geração em geração, pelo mesmo processo. Daí a sua estrutura. Isto permite concluir que a poesia aparece entre os primeiros registros da maioria das culturas letradas, com fragmentos poéticos encontrados em antigos monolitos, pedras rúnicas e estelas, etc.

O poema épico mais antigo sobrevivente da humanidade é a Epopeia de Gilgamesh, originado no terceiro milénio a.C. na Suméria, actual Iraque, e que foi escrito em escrita cuneiforme, em tabletes de argila. Outras antigas poesias épicas incluem os épicos gregos da Ilíada e Odisseia, os livros iranianos antigos Gathas Avesta e Yasna, o épico nacional romano Eneida, de Virgílio, e os épicos indianos Ramayana e Mahabharata, entre outros

A poesia, independente da forma como é expressa ou escrita, é sempre a expressão de um sentimento, como por exemplo o amor, a saudade, a nostalgia, etc. O poema é um sentimento expressado em belas palavras, palavras que tocam a alma. Mas a poesia é diferente de poema. O poema é a forma em que está representada ou escrito o sentimento que a mensagem encerra, enquanto a poesia é a forma literária utilizada e que dá a emoção ao texto.

A poesia pode fazer uso da chamada licença poética, que é a permissão para extrapolar o uso da norma culta da língua, tomando a liberdade necessária para recorrer a recursos como o uso de palavras de baixo-calão, desvios da norma ortográfica que se aproximam mais da linguagem falada ou a utilização de figuras de estilo como a hipérbole ou outras que assumem o carácter "fingidor" da poesia, de acordo com a conhecida fórmula de Fernando Pessoa "O poeta é um fingidor".

A matéria-prima do poeta é a palavra e, assim como o escultor extrai a forma de um bloco, o escritor tem toda a liberdade para manipular as palavras, mesmo que isso implique romper com as normas tradicionais da gramática. Limitar a poética às tradições de uma língua é não reconhecer, também, a volatilidade das falas.

No dia poesia, façamos versos.

 

NB – Dados retirados da Wikipédia.

 

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publicado por picodavigia2 às 16:28

A VISITA DO SENHOR BISPO

Sexta-feira, 21.03.14

Em Novembro professores e alunos do Seminário Menor de Ponta Delgada tiveram a visita do Senhor Bispo, que, habitualmente, residia em Angra. Com a chegada do Sucessor dos Apóstolos, o Seminário, de repente, como que se tornou mais silencioso, mais recôndito, mais sombrio e mais enigmático. Algum tempo antes, o Senhor Reitor chamara-me, novamente, ao seu quarto. Como já estava habituado, nem me preocupei, cuidando que seria uma nova carta da minha tia. Mas não era. Com um pequeno dossier aberto à sua frente, que eu cuidei conter a minha documentação, disse-me que eu não possuía nenhuma certidão do crisma e que no registo do meu baptismo não tinha averbado a data de ter recebido o sacramento da Confirmação. Consequentemente, concluía ele, eu ainda não tinha crismado. Confirmei a sua conclusão e ele de imediato indagou:

- Então porque não crismaste se o Senhor Dom Manuel, depois de chegar à Diocese já visitou todas as ilhas, incluindo as Flores e o Corvo, onde administrou o Santo Crisma?

Expliquei-lhe que não o podia ter feito porque a minha mãe falecera precisamente no dia em que o Senhor Bispo visitara a minha freguesia. Nem eu, nem meus irmãos, nem meus tios, tínhamos tido a possibilidade de crismar.

O Senhor Reitor informou-me, então, de que eu não devia continuar no Seminário sem receber o Santo Crisma, até porque podia muito bem eu não estar nas Flores quando o Senhor Bispo lá voltasse. Que em breve o Senhor Dom Manuel viria visitar o Seminário e que me havia de crismar. Que arranjasse um padrinho. Ora eu tinha um vizinho, o senhor padre Jaime que era professor no Seminário de Angra. Uma das suas irmãs já era madrinha de meu irmão e outra da minha irmã, pelo que decidi que havia de convidá-lo para meu padrinho. Ele aceitou e nomeou seu procurador o padre Agostinho Tavares.

Assim, enquanto esteve de visita no Seminário, uma das tarefas que Sua Excelência Reverendíssima desempenhou foi a de me crismar, juntamente com mais um ou dois alunos, pois a quase totalidade já crismara nas suas paróquias. A cerimónia realizou-se na igreja de Todos os Santos, na presença de todos os professores, do seu secretário José Nunes e de todos os alunos. No momento de receber a cruzinha na testa, traçada com o polegar direito do Bispo, encharcado em óleo santo, foi o padre Agostinho Tavares que, aproximando-se, me colocou a mão sobre o ombro, como se fosse meu padrinho. Talvez por isso e talvez por tudo tratou-me sempre com um enorme carinho e com uma admirável consideração e grande amizade.

Apenas nesse dia e durante algumas refeições ou enquanto passeava nos corredores com o Senhor Reitor víamos o Senhor Bispo. Geralmente estava fechado no quarto, recebia o clero e visitava algumas paróquias da ilha. Quem nos recreios nos procurava, conversava e convivia connosco era o seu secretário José Nunes, um jovem simpático e meigo, hospedado na barbearia, transformada em quarto de hóspedes, que havia terminado o curso no Seminário de Angra e que aguardava a idade canónica para ser ordenado sacerdote.

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publicado por picodavigia2 às 09:07

A RIBANCEIRA DAS COVAS

Quinta-feira, 20.03.14

O lugar chamado “Ribanceira das Covas”, na Fajã Grande, situa-se na margem direita da Ribeira das Casas, junto à rocha com o mesmo nome. Aliás o próprio lugar conhecido por esse nome situa-se dentro do próprio lugar das Covas, no caminho da Ponta, encastoado entre este lugar e a própria Rocha.

Diz a lenda ou talvez a história, embora esta não esteja escrita, que os primitivos habitantes da Fajã Grande, se terão, muito provavelmente, estabelecido, inicialmente, num outro local que não terá sido aquele onde hoje se encontra o povoado. Assim e segundo uma crença muito antiga, os primeiros habitantes do lugar da Fajã Grande terão procurado como local para se fixarem e construir as suas habitações, o sítio hoje chamado “Covas”, junto à rocha, na margem direita ou talvez em ambas as margens da Ribeira das Casas.

O maior argumento desta tese é precisamente o nome daquele curso de água – Ribeira das Casas. Porquê das casas se nunca ali houve casas? A este argumento, porém, juntam-se vários outros, embora todos eles hipotéticos. Por um lado, para os povos que demandaram aquelas inóspitas paragens fixar-se nas margens duma ribeira tornava muito acessível o acesso ao bem mais primordial de qualquer povoado: a água. Por outro lado naquela zona os terrenos são muito férteis e as próprias habitações ficavam sob a protecção da rocha, pois como o próprio nome do local indica, ali situar-se-iam algumas covas, ou seja lugares mais abrigados e protegidos dos ventos, sobretudo dos que vinham do norte e leste. Hoje, essas covas não existem, nem sequer há vestígios de alguma casa ali existente outrora. Apenas as ruínas de alguns moinhos, mas construídos dezenas de anos depois do povoamento primitivo. Ao colocar os nomes às outras ribeiras, geralmente nomes de pessoas (Ribeira de João Fraga), árvores (Ribeira dos Paus Brancos, animais (Ribeira do Cão), etc., a que ali corre teve e tem um nome diferente: Ribeira das Casas. Daqui se depreende que o topónimo adviria das casas que ali haviam sido construídas.

Hoje porém, delas não sobra nenhum vestígio, como também nada resta das tais “covas” que, eventualmente, ali teriam existido e dado nome ao lugar. Pelo contrário, mantem-se junto à rocha um gigantesco amontoado de terra e pedregulhos, totalmente coberto de árvores e arbustos, mas que é um claro indício de uma enorme ribanceira que há centenas de anos ali terá caído e que ainda hoje é conhecida pela “Ribanceira das Covas”.

Na realidade, ainda hoje se pode bem observar, sob o ponto de vista morfológico, ladeando o leite da ribeira, incluindo o local onde se situa o por demais conhecido “Poço do Bacalhau, dois cabeços ou montículos encostados à rocha: um do lado das Águas, ou seja na margem esquerda, mais pequeno e, aparentemente, mais antigo e um outro o do lado das Covas, ou seja na margem direita. Nos anos cinquenta, ainda era voz corrente na Fajã Grande, de que debaixo daquele monte de terra e de entulho caído outrora da rocha, estariam soterradas as primitivas casas do lugar da Fajã Grande.

Lenda ou história, nunca se saberá, pois é de todo improvável que algum dia se verifiquem ali as escavações adequadas com o objectivo de esclarecer a verdade. No ar fica no entanto e para sempre a pergunta: porquê o nome Ribeira das Casas?

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publicado por picodavigia2 às 17:04

SOU UMA ÁRVORE

Quinta-feira, 20.03.14

(TEXTO ESCRITO POR CATARINA FAGUNDES – 7 ANOS)

Sou uma árvore e vivo num jardim com roseiras, margaridas, tulipas e malmequeres.

A minha estação favorita é a primavera, porque é quando os passarinhos fazem os seus ninhos nos meus ramos, as abelhas tiram o pólen das minhas flores para fazer o mel e as crianças adoram brincar e fazer piqueniques com os pais, à minha sombra.

Eu adoro ser uma árvore e ajudar os passarinhos, as abelhas e as crianças.

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publicado por picodavigia2 às 09:41

AUTO DA DESTRUIÇÃO

Quinta-feira, 20.03.14

João Isirgo decidiu relegar os seus mais sublimes sentimentos, colocando-os em prateleira putrefacta e passou a usufruir de um dinâmico vazio, que o tornava aberrante, insuportável e, quase desajeitadamente, energúmeno. Nenhum homem pode desdenhar ou abandonar uma sentimentalidade persistente, mesmo que dotada de características que pouco ou nada abonam da sua dignidade. O desdém de si próprio é uma intempérie incontrolável e João Isirgo sentiu-o, embora desajeitadamente, por isso deu azo a sucessivas tentativas a fim de se erguer e sair do lodo em que jazia. Fracassaram todas! Todas não, pois num último e quase gigantesco esforço, na tentativa infrutífera de acalmar tempestades e alcançar a quietude que o conduzisse ao supremo domínio de todas as estrelas do firmamento, João Isirgo subiu um, dos muitos degraus que o separavam do patamar da não desistência. Mas o seu imperturbável desiderato estava cada vez mais longe de ser alcançado. Havia, ainda, uma vergôntea frágil em que se poderia apoiar e, sob a qual, tentou esconder-se, balbuciando palavras sem nexo, sem que alguém as procurasse entender ou sequer ouvir, assimilar e transformar num texto onde o sem sentido e a limitação espessa e expressa dos conteúdos não fossem pressentidos. Percorria, assim, o percurso de um movimento de distorção circular, não desejado e parcialmente encontrado. Assim quando atingisse o circo do nada onde estava contida a pureza original, inadvertidamente perdida, havia de despojar-se de todos os seus sonhos inócuos, despejá-los num lugar lúgubre, tormentoso e eterno, onde se enrolassem em espirais de espuma branca.

Estranhas convicções, as de João Isirgo, que o levaram a auto suplícios nauseabundos e mefíticos, onde a noite não encontrava o fim e onde as trevas pontificavam como monumento irreverente, astuto e simbólico do nada.

Foi então que a loucura se apossou-se dele e o lançou num pântano deserto, onde deambulou sozinho, em busca de um sinal, talvez de uma luz ou voz que lhe trouxesse uma penumbra perene e infinita, necessária e exigida por uma ascensão lenta de ser e não ser ao mesmo tempo.

Regou, então, o tempo com alecrim e poejo, cantou canções de embalar em manhãs escuras, porque o sonho não era mais do que a ternura da solidão e da criação de espaços míticos, onde se conjugava abundância do destino.

João Isirgo, mesmo sem estátua em praça ou jardim, ressuscitou a certeza de um tempo abandonada, cicatrizado pelas raízes das pedras de lava, onde escoava o enxofre da acuidade inconstante e onde se reduzia a cinza, o prurido perene de todos os sentimentos que tão ingenuamente, havia renegado.

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publicado por picodavigia2 às 07:14

PRIMAVERA

Quinta-feira, 20.03.14

Ele era um anão e todos os anos, aguardava, ansiosamente, a chegada da Primavera. Esta, não se fazia rogada. Chegava sempre na altura certa e regressava, sempre, afável, alegre, libertadora, plena de simpatia e beleza, trazendo consigo o perfume das flores, o canto dos pássaros, a ternura das manhãs ensolaradas e um grande abraço de ternura e transcendência! O Sol, encoberto durante um longo e terrível Inverno, também agora, ressurgia, no auge do seu esplendor, no empolgante brilho da sua força e na irradiante beleza do seu ser, espargindo a doçura da luz e a sublimidade do calor, sobre os mais recônditos e obscuros recantos da terra. Amachucado, pesaroso, solitário e dolente, o anão rejuvenescia e ressurgia, da letargia enigmática e paradoxal que a ausência prolongada do astro-rei lhe impusera. O renascer das flores, o ressurgir dos frutos, o carinho dos dias quentes e maviosos e, sobretudo, a ternura do abraço primaveril, provocavam-lhe frémitos flamíferos e resplandecentes tais, que o catapultavam para uma nova, alegre e mais delirante vivência.

E mais uma vez, com a chegada da Primavera, os dias de paz e calor, de carinho e simpatia contagiante regressaram e, no pequeno povoado onde tinha o seu cardenho, o anão começou também a alegrar-se e a sorrir, a crescer e a abrir-se, a aceitar a suprema força que o Sol, gratuitamente, distribuía. Apenas um ou outro eclipse, ou algum amanhecer mais sombrio e enevoado obstaculizavam a desconcertante alegria de viver e, desgraçadamente, provocavam, no anão, arrelias e calafrios semelhantes aos dos longas e terríveis dias invernais. Mas agora, porém, a ocultação do astro rei, embora férula, triaga e acentuadamente dolorosa, era momentânea e efémera e, consequentemente, mais suportável para o carraceno.

Mas nos dias seguintes, após o regresso da Primavera, logo de madrugada, passeando pelos bosques, o anão aguardava serena e calmamente o nascimento do maior, mais potente e mais belo astro do firmamento. E a calma, a paz e a tranquilidade voltavam a reinar, até porque o Sol, agora e depois de tão duradoura ocultação, como que se mostrava mais cálido e longânime, mais acolhedor e contagiante, mais ardente e meiguiceiro. Por isso, toda a aldeia onde o anão vivia, florescia constante e decidida, apenas silenciada pela escuridão da noite, que se blasonava garbosa e enfatuadamente, de obstaculizar a concretização dos mais prestigiantes anseios do pequeno desolado.

Os dias, porém, passavam céleres e velozes. O espectro da aproximação de um novo e, quiçá, definitivo inverno, já pairava sobre o espírito do carraceno e, de um modo muito especial, começava a aniquilar-lhe a sua angustiante existência.

Era o princípio do fim de um curto reinado de excelência e de dignidade, onde tudo ao redor da pequena aldeia florescera, em que as árvores perdiam menos folhas, as flores tinham mais aromas e os frutos mais doçura, onde os animais conviviam em alegre e expressiva fraternidade, onde os dias eram de Sol, as noites de esperança, as madrugadas de cheiro a madressilva e a rosmaninho e as tardes com sabor a hortelã e a alecrim.

A catástrofe final, porém, estava eminente!

O trágico anúncio da chegada de um novo Inverno foi feito numa manhã cinzenta e enevoada. A sentença dramática e irreversível foi proclamada com agonia e soledade silenciosa, mas ecoou por toda a terra, qual estertor dolente de quem se fine. As manhãs radiosas não se lançariam nunca mais sobre as árvores e sobre as flores, sobre os arbustos e os insectos, sobre as folhas caídas e os ramos quebrados, sobre o espírito paradigmático dos serranos. A aldeia do anão nunca mais seria verde, nem teria flores de esperança nem frutos de simpatia. A partir de agora, paramentar-se-ia, contínua e ininterruptamente, de um negro fatídico e melancólico, para celebrar a liturgia do desespero e do abandono. Seguiram-se dias e noites de mágoa aflitiva! O povo saia à rua, mas já não vivia a liberdade e a fraternidade que a revolução solar lhe proporcionara. Viviam-se dias de dor e noites de mágoa. O espectro do regresso à solidão ou ao absentismo anteriores era a suma certeza do quotidiano carraceno. De todos os rostos transbordava, continuamente, um ricto que, prevendo a chegada da noite infinita, não era mais do que o reflexo deletério que emanava do terrífico e derradeiro ocaso do astro-rei.

O anão, aflito, perplexo, desfeito em espuma, acorrentado à certeza duma esperança destroçada, expelia uma áscua ténue e rúbida, contemplando, quiçá pela última vez, aquele arquétipo de beleza suma e de sublimidade magnífica, que ao despedir-se, transformado em fulva esfera, que pairando sobre os telhados dos velhos casebres, deixava transparecer, no amarelado dos seus raios, a certeza de também não querer entrar em ocaso definitivo.

Mas o Inverno derradeiro, frio e terrível iniciou, decididamente, a sua marcha triunfante. A Serra entrava definitivamente no reinado da escuridão e da ausência e o anão, tremendo de frio, recolhia-se ao seu esconso e paradoxal valhacoito.

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publicado por picodavigia2 às 06:44

CASTIGO SEM CRIME

Quarta-feira, 19.03.14

No Seminário Menor de Ponta Delgada, na longínqua década de cinquenta, os recreios, geralmente, eram passados no maior corredor da casa, aquele que atravessava o edifício de norte a sul, paralelo à igreja de Todos os Santos, impropriamente chamado salão de recreio, embora fosse permitido que os alunos, se assim o entendessem, ficassem, durante os recreios, no salão estudo, conversando uns com os outros, por vezes até esclarecendo dúvidas sobre as matérias estudadas, com o prefeito ou com algum dos melhores alunos, à frente dos quais pontificavam o Onésimo e o Varão.

Certa tarde, terminada a hora de estudo, o Manuel Faria e eu descemos para o corredor que ficava ao lado da sineta, onde habitualmente brincavam muitos alunos. Entre outras brincadeiras, optámos pelas “cavalitas”. Eu ajoujava-me, o Manuel Faria saltava-me para as costas e eu transportava-me de um lado para o outro. Depois invertíamos os papéis e era o Manuel Faria a carregar-me, na maior das inocências e na mais ingénua e simples cumplicidade. Outros alunos brincavam por ali. Precisamente na altura em que eu carregava com o Manuel Faria “às cavalitas” de um lado para outro, passou o Senhor Reitor. De imediato parou, desabando um enorme raspanete e uma demolidora repreenda sobre o Manuel Faria, poupando-me, no entanto, do descalabro. Que aquilo não eram modos nem maneiras de um seminarista brincar e que se voltasse a fazê-lo que havia de o castigar. Depois seguiu o seu destino, na direcção do salão de estudo, enquanto o Faria, sentindo-se verdadeiramente injustiçado, desata a soluçar, num choro convulsivo, comprovativo da sua inocência e reprovador da injustiça de que fora vítima. O José Gabriel e o Octávio, sempre muito solícitos e atentos, logo vieram, junto dele, inteirar-se do sucedido, tentando acalmá-lo. Ele porém não se continha e para mostrar ainda mais sua inocência e que nada de mal estava a fazer, mas apenas uma simples e incauta brincadeira, decidiu-se pela reconstituição do folguedo, voltando a saltar-me para as costas, enquanto exclamava muito convicto da sua infantil, pura e genuína intencionalidade:

- Eu não estava a fazer nada de mal! Só estava a fazer isto! – E voltava a encavalitar-se nas minhas costas vezes seguidas, com a simples intenção de demonstrar que nada de mal estava a fazer.

Azar dos azares! O Senhor Reitor não demorara no seu périplo pelo salão de estudo e, voltando a passar por ali, depara-se com o mesmo quadro que, momentos antes tão radical e ameaçadoramente, havia condenado. Foi o bom e o bonito! Para além de uma reprimenda muito superior à primeira, o Faria levou três horas de estudo em pé, enquanto eu, na minha qualidade de cúmplice compulsivo, levei uma.

Bem me custou este primeiro castigo e ainda mais o Faria, pois tanto eu como ele estávamos apenas a brincar e, naquilo que o Senhor Reitor cuidou que era uma recaída intencional, provocatória e malévola, ele apenas estava a demonstrar, com a minha cumplicidade, a inocência de tão inócua e supérflua brincadeira.

Na realidade, um dos castigos mais frequentemente aplicados pelos perfeitos aos alunos era o de ficar de pé, durante uma ou mais horas de estudo. Um martírio e, sobretudo, uma vergonha. Enquanto todos os outros permaneciam sentados nas suas cadeiras, o prevaricador, verdadeiro ou injustiçado, era obrigado a ficar uma hora, duas ou até mais, de pé, junto à sua carteira, a estudar ou a ler. Para além de incómodo, uma vez que a posição de pé dificultava o estudo e sobretudo a escrita, era o pejo, a moléstia e o enfado de estar ali exposto aos olhares e por vezes aos vitupérios e exprobrações dos outros. Parecia um espantalho plantado no meio duma seara! Eu detestava este tipo de castigo, mas a ele não me podia esquivar. De vez em quando lá apanhava uma horinha e, além disso e para maior vexame, não só os castigos como também as infracções que os originavam, eram anunciados previamente e diante de todos, pelo perfeito. Outro castigo também muito frequente era o de ficar em silêncio, incomunicável, junto da sua carteira, durante um recreio, sem poder participar nas brincadeiras, nas conversas, nos folguedos e nos jogos com os outros. Este, pelo menos a mim, doía menos, pois éramos poupados aquela vil e detestável exposição que era ficar de pé, enquanto os outros estavam sentados a estudar.

Estes castigos eram resultado de pequenas asneiras, muitas delas inocentes, geralmente relacionadas com o violar de uma ou outra norma do regulamento, não respeitar o silêncio, brincar ou falar durante a noite nas camaratas, conversar na igreja, chegar atrasado a isto ou àquilo, ou até nem fazer a cama. No entanto muitas vezes violavam-se as normas, exageravam-se as brincadeiras e as conversas em lugares sérios, muitas conversas às escondidas, pontapés debaixo da mesa, caneladas no recreio, amuos, zangas, almofadas a voarem, por cima das camas e, até, muito chichi pingava durante a noite, sobre uma tipografia que existia por baixo da camarata do primeiro ano. De manhã o dono da tipografia, que ficava com jornais e outros papéis encharcados vinha queixar-se ao Senhor Reitor, mas, felizmente, nunca se sabia quem era. Por isso mesmo, muitas das nossas incautas mas pequenas infracções ou asneirazinhas ficavam sem castigo, pois como, no fundo, éramos todos bons amigos, não havia denúncias nem delatores.

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publicado por picodavigia2 às 16:27

O PAI

Quarta-feira, 19.03.14

(POEMA DE PABLO NERUDA)

 

Terra de semente inculta e bravia,

terra onde não há esteiros ou caminhos,

sob o sol minha vida se alonga e estremece.

 

Pai, nada podem teus olhos doces,

como nada puderam as estrelas

que me abrasam os olhos e as faces.

 

Escureceu-me a vista o mal de amor

e na doce fonte do meu sonho

outra fonte tremida se reflecte.

 

Depois... Pergunta a Deus porque me deram

o que me deram e porque depois

conheci a solidão do céu e da terra.

 

Olha, minha juventude foi um puro

botão que ficou por rebentar e perde

a sua doçura de seiva e de sangue.

 

O sol que cai e cai eternamente

cansou-se de a beijar... E o outono.

Pai, nada podem teus olhos doces.

 

Escutarei de noite as tuas palavras:

... menino, meu menino...

 

E na noite imensa

com as feridas de ambos seguirei.

 

Pablo Neruda, in Crepusculário

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publicado por picodavigia2 às 16:09

FESTA DO PADROEIRO SÃO JOSÉ

Quarta-feira, 19.03.14

A Fajã Grande, ainda antes de ser paróquia escolheu São José como seu padroeiro. Não se vislumbram facilmente as razões desta opção. No entanto, não será de estranhar, que tendo a sede da freguesia das Fajãs, ou seja a Fajãzinha, a que o lugar da Fajã Grande pertenceu até 1861, como padroeira a Virgem Maria, Mãe de Jesus, sob a invocação de Senhora dos Remédios, aquele lugar escolhesse o Pai Putativo de Jesus, São José, como seu padroeiro, mantendo-se o orago, aquando o da criação da paróquia. Assim ficaram as duas localidades vizinhas sob a protecção de Maria e José, os pais de Jesus. Além disso, São José foi sempre considerado um dos Santos mais populares da Igreja Católica e padroeiro dos trabalhadores, portanto um Santo a cuja devoção não podia ser alheio o povo de uma terra onde o trabalho era condição fundamental de vida.

A mais antiga imagem de São José de que há memória na Fajã Grande, ainda existe na sacristia da igreja paroquial. Trata-se uma bela e valiosa obra artística, do século XVII, pintada a ouro, de pequenas dimensões, representando o Santo, com aspecto de caminhante, calçado com umas botas, com o Menino ao colo e uma açucena a servir de bordão. Dado o seu valor histórico, esta imagem foi sempre muito cobiçada por coleccionadores de arte e directores de museus. Nos anos cinquenta foi substituída por uma nova, moderna, em que o Santo se apresentava como carpinteiro, conduzindo o Menino por uma das mãos e segurando uma serra com a outra.

Colocada no altar-mor, em lugar de destaque, a imagem de São José, quer a nova quer a velha, foi sempre muito venerada na Fajã Grande, sendo, na década de cinquenta, celebrada uma festa no seu dia litúrgico, 19 de Março.

A festa de São José era uma das maiores da Fajã Grande, depois do Espírito Santo e da Senhora da Saúde e a ela vinham, a pé ou de barco, muitos romeiros de toda a ilha, sobretudo das freguesias vizinhas, nomeadamente da Fajazinha, Mosteiro, Ponta Delgada, Lajedo, Lomba e Cedros. Muitos deles vinham de véspera, hospedando-se em casa dos seus “conhecidos”. Era também o dia em que as crianças, geralmente, faziam a primeira comunhão e a comunhão solene.

A festa iniciava-se com um tríduo preparatório, constituído, por missa, sermão e devoção a São José. Na véspera e dia tocavam-se Trindades dobradas. Para a freguesia deslocavam-se sempre, no mínimo três padres, sendo que um deles vinha mais cedo para pregar o tríduo. Na véspera todos os padres se disponibilizavam para as confissões, dois nos confessionários laterais e outros dois nos ralos da grade, aproveitando o padre Pimentel para fazer, nessa altura, a desobriga pascal. No dia da festa, durante a manhã havia três ou quatro missas. A da manhã destinada às donas de casa e a quem não pudesse assistir às seguintes. A segunda era a missa da Comunhão, onde toda a gente comungava, pois sendo obrigatório o jejum desde da meia-noite, era quase impossível comungar na missa da festa. Esta era sempre de três padres, celebrada e cantada por um, geralmente o pároco, com outros dois a acolitá-lo e com um quarto a pregar o sermão, assumindo assim o epíteto de o “pregador da festa”. A quarta missa, se a houvesse, era celebrada no altar da Senhora do Rosário e contrariamente às outras esta não tinha sermão. De tarde realizava-se uma grande procissão. Para além da imagem de São José saíam também a da Senhora da Saúde e a de Santa Teresinha e nela se incorporavam as crianças da cruzada, os homens com as opas vermelhas, uns a transportar os andores e o pálio, outros as lanternas e a cruz, muitas pessoas e o clero, sendo que três padres seguiam debaixo do pálio, um de capa de asperges, transportando o Santo Lenho e os outros dois acolitando-o, revestidos com dalmáticas. Se a Páscoa fosse baixa, e o dia de São José coincidisse com algum dia da semana da Paixão, os Santos estavam todos retirados ou cobertos com véus. Nesse caso só saía na procissão São José.

Durante a restante parte da tarde havia arraial, com quermesse, vendas de bebidas e chocolates, arrematações e jogos, nomeadamente o do boneco de atirar bolas e o da pesca às cervejas, sob a orientação e coordenação do Albino. Antes de ser criada a Filarmónica Senhora da Saúde geralmente a procissão e o arraial não eram acompanhados por filarmónica.

No dia do padroeiro as refeições, em quase todas as casas, eram melhoradas: comia-se pão de trigo com manteiga de manhã e ao meio dia e à noite carne de vaca ou de ovelha. Caso uma e outra faltassem recorria-se a uma galinha da capoeira ou a torresmos e linguiça, tudo, é claro, acompanhado com inhames e pão de trigo

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publicado por picodavigia2 às 13:06

BARULHO QUE PENSA

Quarta-feira, 19.03.14

“A música é o barulho que pensa.”

Victor Hugo

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publicado por picodavigia2 às 09:15

ESCADA

Quarta-feira, 19.03.14

São outros os degraus,

Mas a escada é a mesma…

Era ali!

 

Descíamos

E subíamos,

Nas manhãs frias,

Sonolentos,

Acorrentados a uma crença,

Afoitos a um ideal.

 

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publicado por picodavigia2 às 01:05

Quarta-feira, 19.03.14

A Primavera chegara há pouco e, no ar, pairava um perfume, densamente, azedado. A tarde, ainda muito desobscurecida, teimava em aproximar-se do fim. Sentada num banco do jardim, Irene olhava, displicentemente, os caros que passavam velozes, intransigentes, na rua em frente, como se fossem ondas que iam e vinham, apenas elas e só elas a tentarem, infrutiferamente, desfazer-lhe a solidão em que emergira.

Desde há muito tempo que vivia sozinha, isolada, triste, imersa numa espécie de escuridão que a impedia de despoletar vivências gratificantes, de se imiscuir em prazeres amantéticos ou de se encharcar em cometimentos hedónicos.

De vez em quando, porém, gostava de passar o tempo que tinha livre – e tinha muito - ali, sentada num banco, abstracta e abstrusa, no meio daquele silêncio, umas vezes eloquente e acariciador, outras, plangente e opressivo, apenas entrecortado pelas buzinas e motores dos carros, pelo chilrear dos pássaros e pelos gritos das crianças que brincavam no pátio de uma escola, do outro ado da rua. O habitat das suas horas de lazer parecia estar, inevitavelmente acorrentado ao remanso daquele solitário s sombrio jardim.

Os dias passavam lentos e monótonos. Duma caixa de supermercado passara a vendedora de produtos de beleza, numa perfumaria dos arredores. Apesar de, diariamente, lhe surgirem ao balcão dezenas de clientes, geralmente mulheres, muitas delas ávidas de conversas, desejosas de contubérnio, sempre a bisbilhotar, a fazer perguntas, a despoletar silêncios, sempre prontas para devaneios supérfluos, Irene sentia-se cada vez mais só. Tinha trinta e cinco anos e a hipótese de encontrar o companheiro idealizado com quem havia de partilhar momentos de felicidade, de alegria, de bem-estar e, sobretudo de prazer, começava a diluir-se.

Um dia, porém, enquanto almoçava no snack-bar em frente à perfumaria onde trabalhava, renasceu-lhe na alma, uma estranha auréola de esperança. Recebeu um estranho telefonema! Alguém, do outro lado, um homem, numa situação semelhante à sua, pretendia que se encontrassem, a fim de conversarem, partilharem mágoas e angústias. Que esperasse. Em breve chegaria ali. Um fato preto e uma camisa azul escura, haviam de identificá-lo.

Inquieta, expectante e, sobretudo, muito ansiosa, Irene desligou o telemóvel, sem responder e, enigmaticamente, pensativa, voltou à perfumaria. As clientes rareavam, acabando por se reduzirem a zero. Decidiu-se por voltar ao snack-bar. Apenas o dono e duas senhoras, já de idade, sentadas numa mesa, em frente à montra, mantinham-se entretidas com o vai e vem dos automóveis que, apressados, continuavam, cada vez mais intensamente, a cruzar-se na rua, em frente. Pediu um café, abriu o jornal com o intuito de alienar-se, enquanto aguardava. O tempo demorava em passar e, por isso, movia-se emocionalmente, açulada por uma curiosidade inexplicável. Passou um quarto de hora, meia hora e nada. Decidiu-se por regressar, definitivamente, à perfumaria e telefonar. O número ficara-lhe registado no telemóvel. Apenas um silêncio profundo, angustiante e perturbador, do outro lado. Tentou mais uma vez, naquele dia, uma outra no dia seguinte e ainda outra no terceiro dia… Nada. Sempre o mesmo silêncio, sempre a mesma estranha e intrigante e rejeição. Desistiu

Voltaram a rolar vagarosos e monótonos, os dias e os meses… talvez um ano.

Um dia, do lado de fora do balcão da perfumaria, onde geralmente só iam mulheres, encostou-se um homem, já aparentando alguma idade. Uma acentuada calvície a denunciar que já andaria muito para além dos cinquenta, muito magro e alto, mas elegante, charmoso e simpático, muito simpático. Não havia mais clientes. Falaram sobre coisas supérfluas, conversaram sobre assuntos triviais e, Irene sorriu, o que há muito não acontecia. O homem vestia um fato preto, sobre uma camisa azul escura, desajeitadamente desabotoada no pescoço, aparentando que a gravata havia sido retirada há pouco tempo. Voltou no dia seguinte e ela desejou que ele voltasse em mais um dia, em muitos outros dias.

Mas no dia seguinte, o homem de fato preto e camisa azul escura não voltou. Nem em mais nenhum dia. Apenas de vez em quando passava, na rua, em frente à perfumaria. Apenas olhava, sorria e cumprimentava-a com um solene acenar da cabeça. Depois, triste e sorumbático, continuava o seu caminho…

E Irene regressou ao silêncio amargo da solidão, ao emaranhar-se entre as conversas supérfluas dalgumas clientes, o sorriso fingido de outras, entra a indiferença de todas as que demandavam a perfumaria. E ao sentar-se, nas tardes de folga, abstracta e abstrusa, num banco do velho jardim onde apenas, as buzinas dos carros, como se fossem sirenes distantes se misturavam com o chilrear dos pássaros, Irene continuava a sentir uma solidão, aparentemente, ainda maior e, sobretudo, mais dramática. É que na escola em frente, os gritos das crianças que brincavam no pátio, desde há muito que se haviam calado.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:50






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