PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A CANADA BATEL/BANDEJA
Na década de cinquenta, ainda existiam vestígios de uma antiga canada que ligava o lugar do Batel à Bandeja, sendo nessa altura muito pouco utilizadas, apenas ou exclusivamente, por quem tinha terras naqueles andurriais.
A canada iniciava-se precisamente em pleno lugar do Batel, mais precisamente no descansadouro que existia naquele interessante e histórico local, a meio e à direita de quem subia a ladeira com o mesmo nome. A canada iniciava-se como que aproveitando o amplo espaço do descansadouro e, depois, prolongava-se na direcção leste/oeste, com destino ao caminho que começava no Cruzeiro e seguia pela Bandeja até às Queimadas. Ingreme e sinuosa, cheia de pedregulhos, muitas vezes servindo-se das próprias propriedades, esta canada desembocava, precisamente, na ladeira da Bandeja, quase formando um cruzamento com uma sua congénere que comunicava com o Outeiro e que mais se assemelhava ao seu prolongamento.
Quase inacessível, esta velha canada que hoje, muito provavelmente, terá desaparecido por completo, decerto que serviu, talvez nos primórdios do povoamento da freguesia, de caminho aos nossos avoengos, muito provavelmente quando o caminho Alagoeiro/Lavadouros ainda não existia e, por isso mesmo, naquela altura já apenas remanescia mais como um marco histórico, um mito, uma lenda, talvez, do que uma via rodoviária de interesse e utilidade.
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GARRAFA EMÉRITA
Emérita. Transparente na sua essência, leve na sua sustentabilidade, prática na sua função, a garrafa de plástico emerge em elegância e altivez, num misto de utilidade compassiva, de acompanhamento benéfico e facilitismo desregrado. Desconheci-a na minha infância. Nessa altura, era o vidro meu bem, mas raro e de difícil cesso. Por vezes retirado do mar. Nos tempos dos meus avós, o barro. Em ocasiões de emergência a folha de inhame. Tudo a substituir qualquer garrafa ou vasilha que, hoje, a garrafa de plástico consubstancia.
Agora, propala por todo o lado. Mas a sua principal soberania, solidifica-se sobre a minha mesa-de-cabeceira, onde jaz, aparentemente estática, na ânsia se ser enfiada e engolida até meio, num começo de manhã primaveril, chuvosa, fria a lembrar um Inverno teimoso na despedida. Geralmente, acompanha um Avodart de combate à próstata. Isolada no canto murado de um armário durante o dia, rejuvenesce e domina a sua estática funcionalidade, à noite e, sobretudo, de madrugada. Longe dos vidros, que os cristais são raros, repartidos em guarda-loiças de sala. Nem ela os via nem eles a olhavam com a vergonha incoerente de quem cuida que, pelo menos em questão de hormonas de consistência e durabilidade, se impõe por uma questão de diferença racial.
No subterfúgio da superficialidade, a repetência da garrafa, simula whisky de salas senhorias e ricas. Como superadora da sede, funciona, actua, propala, anima e, sobretudo acalma. Como guardada, surge indiferente no escuro do armário, agarrando-se no seu corpo, simuladamente vidrado, a um abandono desmedido e inerte. Desprezada na sua utilidade, onde ainda reina o copo de vidro, alto, esguio, elegante e luminoso a garrafa de plástico eriça-se na preservação da sua utilidade, no manter da sua funcionalidade, no permanecer da sua existência. Todos estes parâmetros, porém, parecem ruir, como castelos de cartas. Talvez, se não a garrafa pelo menos o seu conteúdo, se dissolva na ilusão de gotas de chuva suspensas nos beirais à espera que um talhão de barro qualquer, as receba, como mosto sagrado, como suco dulcificante como promessas de um regresso a uma serenidade persistente e indelével. Como o carácter de um sacramento.
Notícias recentes, informam que três estudantes duma credenciada universidade londrina, desenvolveram uma membrana orgânica, em forma esférica, que promete poder vir a substituir as tradicionais garrafas de plástico. Esta invenção, baptizada de Ooho, é constituída por materiais orgânicos, como algas marrons e cloreto de cálcio. Na sua génese parece produzir uma espécie de gel ao redor da água e poderá, a breve trecho, reduzir o desperdício de recursos associado às garrafas de água, revela, o que no mínimo, dará à garrafa de plástico o estatuto de emérita.
E toda a gente a envaidecer-se desta descoberta que além do impacto que terá em termos ecológicos, permitirá reduzir custos em termos globais, uma vez que estas bolhas, já alcunhadas de Ooho podem ser produzidas a muito baixos custos
E eu, no silêncio escuro da noite, ao tomar o meu Avodart que me há-de aliviar dos males da próstata, avanço devagar à espera que dela saia o precioso líquido que me permita engolir, com tranquilidade, a cápsula, esta sim, semelhante às tais bolhas que os estudantes londrinos inventaram. Por isso regresso e recorro à minha futura emérita garrafa de plástico, em cada madrugada, mesmo que esta não seja primaveril.
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UMA MADRUGADA INFERNAL
A noite embora permanecendo escura e fria, aproximava-se da madrugada. Aqueles trovões secos, terríveis e temíveis, que a todos assustava e horrorizava, agora eram mais espaçosos e sobretudo bem mais fracos. José Pereira de Azevedo, cuidando que o pior já passara e temendo que o frio da noite lhe engelhasse o filho, decidiu regressar a casa, com a mulher e o pequeno António. Era outro conforto, embora a segurança fosse quase nula. A mulher, inicialmente, manifestou determinada recusa, mas por fim cedeu. Não havia de ficar sozinha, ali ao relento, e o marido em casa com o filho. Foi sobretudo o argumento, teimosamente sustentado pelo marido de que o frio da noite iria fazer muito mal ao pequeno, que a demoveu da sua persistente teimosia. Regressaram os três a casa. Primeiro adormeceu o menino e, algum tempo depois, de tão cansado que estava, o pai. Madalena de São João, nervosa e temendo o pior, manteve-se acordada.
Não tardou muito! Seriam umas seis horas da madrugada, quando José Pereira de Azevedo, pese embora tivesse adormecido poucos momentos antes, acordou sobressaltado com um enorme, terrível e monumental estrondo. Ao seu lado a mulher, que, antes, na velha enxerga de pragana se havia voltado e revirado, vezes sem conta, sem pregar olho, contara bem, muito bem. Dezasseis vezes! Dezasseis vezes durante aquela madrugada infernal, a terra tremera em horrendos abalos, seguidos de grandes estrondos. O último, porém, aquele que acordara o marido, já quase madrugada, fora o maior, o mais horroroso, o mais tremendo, o mais demolidor. Parecia que a casa, a montanha, o mundo lhes desabava em cima.
Há noites e noites, que era aquele martírio sobressaltado, aquele susto contínuo, aquela maldição permanente. Quase não pregavam olho e se adormeciam, era como um passar por brasas, para logo acordar com um estrondo maior do que o anterior. O pequeno casebre de pedra negra e solta dos Azevedos, só por milagre do Divino Espírito Santo ainda lhes não caíra em cima. Em muitas casas da freguesia, algumas mesmo ali, ao lado, já não havia pedra sobre pedra.
Tresloucada e aos gritos, antecipando-se ao marido, Madalena saltou da velha enxerga num ápice e agarrou-se ao corpo do pequeno António, que dormia, ali ao lado sobre um tapete de palha, enrolado em grossos cobertores de lã, como que a impedir que as pedras que rolavam das paredes vacilantes caíssem sobre o filho. Depois agarrando-se e amparando-se ao marido, com o garoto muito embrulhado e muito aconchegado ao seio, saíram, os três, atónitos, assustados, porta fora.
Ainda não amanhecera por completo mas a madrugada, apesar de escura, parecia clarear com as revoadas dos trovões secos e com os estrondos sucessivos e aterradores, vindos das encostas da montanha. Atónita, apavorada e entontecida com o ribombar daqueles trovões secos, toda a população, temendo o pior, saíra para o relento da madrugada. Dos casebres ao redor, novos e velhos, homens e mulheres gritavam em alto berreiro, confusos e apreensivos, tentando encontrar um outro familiar que havia permanecido no interior dos velhos casebres.
De repente e por entre o escuro da madrugada e o cada vez mais aterrador ribombar dos ruídos, uma enorme clarão. Começava, lá no alto, entre a montanha quase invisível e o firmamento adormecido, um fogo terrível, vermelho, assustador que se escoava como se fosse um rio, na direcção das casas, dos campos, das hortas, das vinhas e do mar. Um verdadeiro inferno! Parecia que o mundo acabava naquele momento, ali sem salvação ou redenção possíveis para ninguém. O terror era geral e o pânico indomável. Cada qual procurava, sem proveito, os seus familiares.
A manhã até parecia que se clarificava com aquele fogo estranho e pavoroso, por entre um alvoroço louco e imaginável. O fogo descia cada vez com mais veemência, pelas encostas sobranceiras ao povoado, na direcção do mar e começava a atingir os casebres mais pobres mais pequenos, construídos no sopé da montanha, do lado das Bandeiras. O povo aos gritos, aos sobressaltos, aos berros corria sem fazer coisa nenhuma, tentando procurar os familiares desaparecidos. Era um alvoroço tresloucado, uma gritaria inaudita, um desassossego nunca visto. Parecia que a abóboda celeste se havia transformado numa enorme bola de fogo que caía sobre a ilha, aniquilando-a e destruindo-a por completo.