PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
SECA DE ABRIL
“Inverno de Março e seca de Abril, deixam o lavrador a pedir.”
Abril geralmente é chuvoso e, na Fajã Grande, outrora, cuidava-se que isso era bom, pois umas secas no quarto mês do ano, sobretudo se o seu ante sucessor for invernoso, o que acontecia frequentemente, as colheitas poderiam ser muito prejudicadas, deixando os lavradores em apuros. É isso que se lembrava com este adágio, embora não muito frequente na Fajã Grande.
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UMA TRAGÉDIA BRUTAL
Atónitos, desesperados, aflitos e tresloucados, homens e mulheres velhos e crianças assistiam àquela gigantesca maré de fogo que, abrupta e intensiva, se escoava da montanha, em ondas avassaladoras, pelas encostas sobranceiras à freguesia, em direcção ao mar. Por onde passava, aquela torrente de lava incandescente deixava um rastro de destruição, queimando, sufocando, abrasando tudo, ao mesmo tempo que, do cabeço de Cima e do Cabeço de Baixo, continuavam a cair, como que vindos do Céu, revoadas de trovões e estrondos sucessivos e aterradores. Parecia o dia do juízo! Muitos acreditavam que o mundo havia de acabar mesmo ali, naquele dia, naquela hora, naquele momento, debaixo daquele fogo abrasador e terrível, emerso das entranhas da terra.
Perplexos, apavorados e entontecidos com o ribombar daqueles trovões secos e aterrorizados com aquela imparável torrente de lava, homens, mulheres, velhos e crianças, de joelhos, rastejando pelo chão, ao relento da madrugada, imploravam a clemência, a compaixão, a misericórdia e a bondade divinas, ao mesmo tempo que pediam perdão a Deus pelos seus pecados, gritando em altos berros, anunciando a todos, os delitos que haviam cometido, misturando as suas vozes com o aterrador ribombar dos ruídos que emanavam da montanha, cada vez com mais veemência e com os roufenhos rugidos do mar, até então adormecido, mas que aos poucos se fora revoltando e embravecendo, numa espécie de tentativa fingida e frustrada de se opor aquela espécie de ira e de ódio que a montanha vomitava e expelia por ali a baixo. Era um fogo terrível, incandescente, vermelho, cada vez mais assustador que se escoava pelas encostas, como se fosse um rio de lava, deslizando na direcção das casas, dos campos, dos currais das vinhas, das hortas e do mar. Um verdadeiro inferno! Uma tragédia brutal, uma calamidade nunca vista até então.
A manhã, no entanto, embora sombria, começava a clarear por entre um alvoroço louco, incrível e desmesurável. O fogo descia cada vez com mais veemência e intensidade na direcção do mar e começava a atingir alguns casebres, os mais pobres, os mais pequenos, construídos no sopé da montanha, do lado que dava para as Bandeiras. O povo aos gritos, aos sobressaltos, aos berros corria de um lado para o outro, sem fazer coisa nenhuma, tentando procurar os familiares desaparecidos.
De perto e de longe chegavam murmúrios e lamentações. A imparável torrente de lava incandescente e desmedida já destruíra muitos campos, desfizera muitas vinhas, atingira muitos currais, matando muitas ovelhas e cabras e já chegara às primeiras casas. Havia muitas zonas ao redor dos subúrbios da freguesia, do lado das Bandeiras, já totalmente cobertas de lava. No ar começava a sentir-se um estranho cheiro a enxofre e a carne queimada.
Porém, no largo fronteiro à pequenina ermida de Santa Luzia, a torrente de lava ainda não chegara, parecia mesmo que dali se afastava, escoando-se pelos terrenos mais distantes, situados entre Santa Luzia e as Bandeiras. Junto à pequena igrejinha de Santa Luzia já se aglomerara muita gente. Era lugar, aparentemente, mais seguro e um sítio de súplicas a Deus e preces à padroeira. Ali, o povo de joelhos, juntamente com o vigário e com Frei José das Cinco Chagas, ermitão de grandes virtudes, que por ali se havia refugiado desde há muitos anos, vivendo sozinho num humilde casebre no sopé da montanha, rezava, pedia, implorava e suplicava a protecção divina. Deus, por intercessão da Virgem e Mártir Santa Luzia, a sua querida padroeira, em hora de tão grande angústia e em momentos de tão excessiva aflição, havia de os aliviar de tamanha e brutal tragédia. Alguns entravam na ermida e, percorrendo-a de joelhos, imploravam, por intercessão da sua padroeira, a misericórdia e o perdão divinos, enquanto outros visitavam as doze estações da via-sacra. Por sua vez, os que ficavam fora do templo faziam Rogações, dando voltas à pequena igreja, cantando a Ladainha de todos os Santos. O vigário, Francisco Dias, paramentado com as vestes roxas celebrava missa votiva “In die cataclismus”, invocando a protecção da Virgem e Mártir Santa Luzia. Mas muito povo ou porque não coubesse na pequena igreja ou porque tivesse receio de ali entrar, permanecia no exterior, rezando preces emotivamente fervorosas dirigidas à misericórdia de Deus e manifestando o arrependimento dos seus pecados e o firme propósito de emenda, manifestados com o coração contrito.
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MAR BRAVO
O vento trouxe a tempestade
e todas as ondas perderam a quietude
e arremessaram-se, contra as fragas,
num frenético vaivém
como se estivessem loucas,
ou fossem rouxinóis
à procura das fêmeas
em dia de cio.
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A APANHA O MILHO EM SÃO CAETANO
Na freguesia de São Caetano, a economia baseou-se sempre numa agricultura de subsistência, em que um dos principais e mais importantes produtos cultivados era o milho, do qual dependia, em grande parte, a sobrevivência da população. O ciclo do milho, cultivado nos terrenos mais férteis e mais próximos das habitações, prolongava-se por etapas diversas e diferentes e abarcava tarefas múltiplas e diversificadas, ao longo de quase todo o ano. O que de mais importante se extraía do milho era a farinha, com a qual se fazia o pão e o bolo, elementos básicos na alimentação diária e, por isso mesmo, o milho era a base de sustento da maioria dos habitantes de São Caetano. Durante o mês de abril fazia-se a sementeira do milho à estaca ou em regos feitos com arado puxado por animais. Durante o seu crescimento tinham lugar, sucessivamente, outras tarefas, tais como sachar, desbastar, abarbar e quebrar a espiga, sendo esta guardada nos palheiros para alimento dos animais no inverno. Por sua vez o pasto que era cortado logo a seguir, servia para fazer a cama aos animais, transformando-se em estrume para ser utilizado nas sementeiras. Finalmente a apanha do milho, nos campos a abarrotar de maçarocas, após a qual eram transportadas em cestos, às costas ou em carros de bois para a loja da atafona, a fim de serem descascadas. Ao serão juntavam-se as famílias para descascar e amarrar as maçarocas que depois eram colocadas, umas vezes nas burras, feitas com paus de faia, outras nos tirantes das própria habitações. Era durante o desfolhar que os homens retiravam as folhas mais finas do interior da maçaroca, as quais guardavam para, mais tarde, nelas embrulhar o tabaco e “fazer” os cigarros. O dia de “apanhar o milho” era, pois, um dia de muito trabalho e de grande azáfama e canseira. Mas como geralmente aos trabalhos duros e pesados o povo dava sempre um certo sentido de alegria, este dia também se tornava, de alguma forma, numa espécie de dia de festa. Homens e mulheres muniam-se de cestos que eram colocados, estrategicamente, em pontos diversos, ao longo do terreno. Enquanto iam arrancando as maçarocas dos pés do milho com perícia e destreza, atiravam-nas para dentro dos cestos, até os encher por completo. Muitas terras ficavam longe do caminho e a elas tinha-se acesso apenas por canadas ou veredas muito estreitas e sinuosas, onde os carros de bois não passavam. Era aos mais jovens, mais robustos e mais fortes que competia a tarefa de acarretar os enormes e pesados cestos a abarrotar de maçarocas, até à atafona, onde eram despejadas e onde ficavam aguardando que ao serão se juntasse a família, os parentes, os amigos e os vizinhos para, num ambiente de alegria e folguedo, as descascar e amarrar.