PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
LENDA DE LISBOA NOVA
Conta uma antiga lenda que há muitos, muitos anos vivia na freguesia da Fajãzinha um rapaz muito destemido e trabalhador. Todos os dias ajudava os pais, ora cavando e sachando os campos onde florescia o trigo, ora ceifando erva e fetos para o gado, ora acartando lenha para a mãe acender o lume, cozinhar os alimentos ou para aquecer o forno para cozer bolo e pão.
Ora um certo dia, em que o rapaz foi buscar um feixe queirós ao mato para a mãe acender o lume, ao descer a ladeira dos Bredos, enquanto assobiava, distraidamente, olhou para o mar e viu uma ilha, com uma cidade muito grande e bonita, como ele imaginava que seria a cidade de Lisboa. Desviou os olhos por um momento e, ao voltar a olhar na mesma direcção, já não viu nada. Ficou tão espantado que passou o caminho o mais depressa que pôde e quando chegou cá baixo, junto do povoado, ofegante, só conseguia dizer:
- Eu vi Lisboa Nova! Eu vi Lisboa Nova ali por baixo do Portal, no mar.
Mas isso, afinal, não era novidade para as pessoas mais velhas da freguesia que muitas vezes já tinham visto a ilha encantada no mar, onde diziam que vivia el-rei D. Sebastião. Disseram-lhe então que ela costumava aparecer sempre, quando a noite de Natal calhava numa sexta-feira, e que se alguém fosse lá nessa noite a ilha ficaria desencantada para sempre.
O rapaz sonhou o resto de toda a sua vida em desencantar a ilha, numa linda Noite de Natal, mas nunca o conseguiu e por isso ainda hoje o povo, não só o da Fajãzinha mas até o da Fajã, acredita que existe, a Lisboa Nova, encantada no mar, por fora do Portal, na freguesia da Fajãzinha.
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ANINA INÁCIA
Morava na Fontinha, era casada com o Candonga e tinha dois filhos: O José e a Maria Silvina. A Anina Inácia era vizinha dos meus avós. O portão do pátio da sua casa ficava mesmo em frente à porta do piso superior do palheiro do meu avô. Como eu acompanhava os meus tios, sobretudo nos dias de chuva, em que passavam as tardes, por ali, a concertar corsões e arados, a preparar a comida para o gado, a arrumar os fetos e a rama seca e a tirar o esterco do gado ou ordenhar as vacas, encontrava-a todos os dias.
Era uma mulher muito humilde, sensata e trabalhadora, como se dizia na altura “não parava”. Como o marido, para além de esporadicamente ser acometido de doença mental, era baleeiro, pescador e, em tempos que não havia faina marítima, “dava dias para fora”, era ela, a Anina Inácia que era o homem da casa, executando, com perfeição, todas os trabalhos de cultivo dos campos e tratamento do gado.
Uma das principais tarefas, que logo de manhã executava, era o ir ceifar erva a uma lagoa que tinha, creio que para os lados da Figueira. Levantava-se de madrugada, foice ao ombro, corda na mão, saiote de lã, calçando umas grossas botas de borracha que lhe davam quase pelo joelho. Pouco depois regressava, com um grande molhos de erva à cabeça, para o sustento da única vaca que tinha no palheiro.
De seguida tirava o leite à vaca e regressava aos campos para ceifar, mondar, sachar, plantar ou então acarretava à cabeça pesados cestos de batatas, inhames, milho ou de estrume e até baldes de urina do gado. Fazia tudo esta mulher, apesar da idade e da doença, de fraca alimentação e da ausência de cuidados médicos.
Encontrava-a tantas vezes, ora carregando pesados cestos ou molhos, ora de foice ou machado ao ombro e cordas na mão. Condenada ao trabalho, no entanto, aquela mulher olhava para mim com um sorriso, é verdade que dolente e sofredor, mas contagiante e solidário. Quando me cruzava com ela nos caminhos e veredas, por aqui e por além, a blandícia do seu rosto, o trémulo brilho dos seus olhos, a sorumbática expressão do seu sorriso e, sobretudo o trabalho excessivo a que estava condenada mas a que se dedicava com resignação, faziam-me lembrar a minha mãe, lembrança fermentada com o facto de o Candonga, o seu marido, sofrer de doença semelhante à do meu pai…
E esta mulher, apesar de digna, nobre, trabalhadora, talvez nunca granjeou a merecida simpatia, a devida recompensa, nem sequer a devida estima social, que o seu árduo trabalho merecia, na terra onde nascera, só porque era pobre, muito pobre e o marido, doente mental!
A justiça do mundo onde devia imperar o reconhecimento pelo valor do outrem é um mar profundamente abalado pela incompreensão, pela indiferença, pela insensatez, pelo desprezo e, sobretudo pelo ódio e pela inveja!
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A BAIXA-RASA
Nos mares da Fajã Grande, plantadas na parte mais ocidental da enorme baía, circundada pelo extenso Rolo que se inicia no Pesqueiro de Terra e termina, já na Ponta, no Ilhéu do Cão, existem duas interessantíssimas formações rochosas, uma e outra muito bem visíveis de terra, formando uma espécie de par: ele, o Monchique, ela a Baixa-Rasa.
O Monchique, muito maior e mais alto, mais mítico e emblemático, tem sido muito divulgado em revistas e fotos, objecto de estudos e relatos e, além disso, hoje mais do que nunca, ufana-se de ser o ponto mais ocidental da Europa. A Baixa-Rasa, ao contrário, muito pequenina, silenciosa e humilde, perdida entre temporais e ciclones, a surgir apenas com a maré vasa, tem sido a eterna esquecida. Injustamente, diga-se em abono de verdade. E se não fosse o brilho e o fulgor do Monchique ou melhor, se este não existisse, a Baixa-Rasa possuiria, de certo, a excelência de todos os predicados que a este se atribuem e teria os requisitos necessários para ser considerada um outro ex-libris da Fajã Grande.
Segundo os estudiosos dos baixios e escolhos das ilhas açorianas, a Baixa-Rasa consubstancia uma espécie de afloramento rochoso marítimo, encafuado na direcção da Ribeira do Cão, localizado a duas ou três milhas marítimas de terra. Apresenta-se, aparentemente, com uma composição geológica bastante variada, cujos materiais de origem que a constituem tem origem vulcânica, sendo, muito provavelmente, originados em escoadas lávicas, principalmente, compostas por basaltos. Estas escoadas, que apresentam um elevado índice de facturação, com os planos dessa fracturação orientados principalmente na vertical, redopiam, permanentemente, numa constante agitação, formando uma espuma esbranquiçada que se agiganta sobretudo em dias de mar bravo e durante ventos e tempestades, sendo perfeitamente visível de terra. Em horas de maré vasa é possível ver o rochedo, como uma manha escura.
Desconhecesse-se a profundidade desta formação ronda e o acesso à mesma esta formação geológica só pode ser feito de barco. A fauna e a flora dominante desta formação geológica também não tem sido estudada, mas será muito semelhante a muitas outras da costa ocidental da ilha, nomeadamente da do seu parceiro o Monchique. Sabe-se, por relato de pescadores que por ali há muito peixe, sendo um privilegiado pesqueiro de vejas e bicudas. Mas por ali abundam muitas outras espécies piscatórias como barracuda, boga, bodião, peixe-rei, castanheta, lírio, mero, peixe-porco, polvo, ratão, para além de lapas, caranguejos, ouriços e uma enorme variedade de algas.
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PIRADA 1974
Véspera de Páscoa, do ano da graça de 1974. A tarde, apesar de inquietante e trémula, aproximava-se, lentamente, do fim, mas disfarçava-se de alegre e folgazona. Garrafas de cerveja e copos de whisky esbanjavam-se em catadupa e misturavam-se gracejos supérfluos e a palavrões insignificantes, provocando um alarido desusado, transformando a pequena messe de oficiais do velho e caquéctico quartel de Pirada, numa espelunca de recordações perdidas, no epicentro duma camuflada alegria pascal, eivada de revolta, de indignação, de raiva e de melancolia.
Um ribombar repentino de obus, sem que ninguém o esperasse, silenciou por completo, a messe e todo o quartel Seguiu-se outro estrondo e mais outro, ainda maior. O silêncio escarrapachou-se em todos os olhares, o pânico instalou-se em todas as mentes.
- Porra! Estamos a ser atacados! – Gritou, exasperadamente o major, Seabra, que substituía, no comando do batalhão, o coronel Matoso que viera passar a Páscoa à metrópole. O alferes Aires reúne os seus homens à pressa e assume uma resposta rápida, com a artilharia. A confusão assume a liderança. Pirada estava a ser atacada massivamente. Continuavam os rebentamentos, aqui e além caiam morteiros, a pequena vila fronteiriça com o Senegal transformara-se, de repente, num mar de medos, de fugas e de gritos: Um tiroteio aéreo, com epicentro no interior do quartel, abalava, assustadoramente, o pequeno povoado.
Todo o quartel se refugiara nos abrigos e nas valas. Apenas o major Seabra, o alferes Aires juntamente com os homens da artilharia, por ele comandados e o furriel Secundino, das transmissões se mantinham nos seus postos. As trémulas luzes do quartel haviam-se apagado por completo. Apenas os holofotes da rede exterior compassavam reflexos dolentes a emperrar e obstruir entradasentradas.
Indiferente aos obuses e morteiros o dr Sabrosa, tenente e médico, calcorreava as valas uma a uma. Vigiava, cuidava, e repetia com desculpa insensata:
- Ando a ver o que se há-de cagar mais de medo!
Cuidava-se que para além de atingidos por uma basuca – o que seria morte imediata - nas incidências de tão abrupto e inesperado ataque, se provocassem danos morais. As valas, eivadas de condenados eram um rio de medo, um recinto de dor, uma arena de desolação.
A noite escurecera por completo e congregava ainda mais medos e sustos. O silêncio emergente da escuridão era apenas interrompido pelo ribombar de um novo rebentamento, vindo de longe, a assobiar como sanguessuga que perfurava o ar e ia cair não se sabia onde. Ao aterrar, apenas uma única certeza: não caíra sobre aqueles que ainda o ouviam.
Só de madrugada os tiros cessaram. Um a um os que se haviam escondido nas valas iam regressando aos seus postos. A escuridão continuava medonha no quartel, alguns oficiais, mais destemidos e habituados à guerra, recolheram-se, rapidamente. Em voz serena e pausada o 1º sargento Benavides, murmurava consigo, mas de forma a que o ouvissem:
- Esta merda tinha que dar torto! Não se esperava outra coisa depois do massacre que ontem se fez no Dambo!
- E sabe, meu primeiro,- acrescentou o Pimenta que caminhando ao seu lado, o ouvira – sabe uma coisa: não é que para além de matarem quase todos os habitantes da tabanca, ainda deixaram lá um letreiro a provocar o inimigo… Parece que o tal letreiro dizia “Amigo turra, esperamos-te, amanhã, em Pirada”
Não se enganara o 1º sargento Benavides. Ao massacre de Dambo, o PAIGC, de uma base anti-aérea sediada no Senegal disparara massivamente contra Pirada, unidade situada junto à fronteira com aquele país. Para garantir a defesa do Quartel e da população civil o comando-substituto deu ordens para a artilharia responder com obuses. A noite de Pascoa de 1974, em Pirada foi longa, ansiosa, terrível e muito dolorosa.
Miraculosamente, nessa noite, não houve mortos…