PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MEIGO
MENU 40 – “MEIGO”
ENTRADA
Pimentos salteados em azeite e alho, acamados sobre bolacha cream-caker
e barrados com geleia.
Rodelas de pepino grelhadas e barradas com queijo creme fresco.
PRATO
Febrinhas de porco, gratinadas em azeite e borrifadas com mel.
Migas de grelos de nabiça.
SOBREMESA
Pera cozida em calda de vinho, açúcar e mel e Gelatina de Morango.
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Preparação da Entrada: Perfumar seis colheres de chá de azeite, em lume brando com rodelas de alho. Retirar o alho, alourar a bolacha no azeite e, de seguida, partir tirinhas ou pedacinhos de pimentos (verde, vermelho e amarelo) e salteá-los no azeite que sobrou. Colocar a bolacha em prato e cobri-la com os pedacinhos de pimento, salteados. Finalmente espalhar uma colher de sopa de geleia sobre os pimentos, ainda quentes e servir. Grelhar as rodelas de pepino, barrá-las com o queijo e empratar.
Preparação do Prato – Aparar as febras, cortá-las muito finas e temperá-las com alho e pimenta. Grelhar o bife, regando-o com sumo de limão. Cozer os grelos em água temperada com azeite e alho. Partir o pão e ensopá-lo com água de cozer os grelos. Picar os grelos e misturar com o pão. Passar as migas no resto do azeita, até ficarem em massa. Empratar.
Preparação das Sobremesas – Confecção tradicional.
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A CANADA DA CABACEIRA DE BAIXO
Poucos se lembrarão dela. Decerto que se perdeu no tempo e nas memórias. Para além de exígua, esconsa e pedregulhenta, dava acesso apenas a terrenos de dois ou três proprietários, um dos quais era a velhinha Tia Maria Inácia, que a percorria quase todos os dias, na demanda de uns garranchos de lenha para acender o lume. Ali, na Cabaceira de Baixo, pelo menos nas terras mais afastadas do caminho e a que se tinha acesso, exclusivamente, pela canada com o mesmo nome, pouco mais existia do que incensos, faeiras, loureiros e um ou outro pau branco.
A Canada da Cabaceira de Baixo iniciava-se no caminho que ligava Santo António aos Lavadouros, logo a seguir à recta do Delgada e após uma pequena curva, precisamente na fronteira entre o Delgado e a Cabaceira. Era constituída por duas pequenas rectas. Uma primeira, como que a ligar o Caminho a uma terra que meu pai ali possuía e uma segunda, mais pequena e obliqua à primeira e que dava acesso a mais duas ou três pequenas propriedades.
Ladeada por árvores frondosas, centenárias, que a cobriam com uma sombra permanente e excelsa, delineada por baixas paredes recobertas de musgos e eras, atapetada com coicéis, fetos e erva-santa, a ocultarem a rudez do piso e as agruras dos pedregulhos aguçados e toscos, a Canada da Cabaceira de Baixo possuía uma sublimidade inexaurível, uma frescura inebriante, proporcionando, a quem por ali transitava, um caminhar envolvente, misterioso e sonhador.
Hoje, perdida, esquecida, inacessível, talvez mesmo inexistente, nem aspira a ser um mito.
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O PROMONTÓRIO DOS COXOS
Caminho sem destino, ilha fora, em direcção incerta. Emerjo de entre uma floresta jovem, repleta de faias, incensos, urzes, sanguinhos, um ou outro pau branco e figueiras raquíticas. Como se tivesse deixado a noite a meio e partido numa madrugada tímida mas deslumbrante e surpreendente. Surge à minha frente o mar, num vai e vem contínuo e caricioso, de ondas meigas, suaves, maviosas, a baterem com blandícia nos baixios e escolhos, que do alto do miradouro avisto. O espectáculo é belo, doce e sublime, pintado numa paisagem maravilhosa. Ao redor o silêncio dos rochedos negros, o odor das figueiras a definharem, amordaçadas, como que perdidas entre os silvados arrogantes. Apenas o mar domina o mundo, ligando-o ao universo do silêncio, quebrado, apenas, pelo esvoaçar erótico das gaivotas em cio. Lá longe, muito longe, um pequeno ponto entre o céu e o mar reflecte, num mítico raio de luz, a beleza infinita e enigmática duma esperança que urge solidificar.
Desiludido com o inatingível do distante, concentro-me no perto e procuro a pujança duma visão rígida, serena e real. Este mar não pode ser feito só de espuma amuada, nem de ondas entontecidas ou de reflexos de raios de sol perdidos no horizonte. Aqui bem perto, há, neste mar, uma rigidez tremenda, uma força telúrica como que presa, agarrada à lava embriagada e adormecida sobre os rochedos que as gaivotas escolheram como habitat. O mais mítico e emblemático de todos estes rochedos é o metamorfoseado em promontório, a que deram nome dos Coxos, a emergir do seio da ilha, na sua exuberância pubescente, como se fosse um falo intumescido e húmido.
Quando pelas primeiras vezes o vi, quer na sua exorbitante ostentação de ubérrimo e fertilíssimo recanto de pesca, quer como inexaurível e indelével marco de um roteiro, sob a forma de trilho tortuoso e íngreme, mas inebriante e sonhador, evitei as palavras que agora me são ditadas pela emoção. Emoção de ter emergido daquela floresta, outrora inexistente, resultante da desertificação dos vinhedos primitivos, originais e puros, agora floresta florescente, cativante e atractiva mas sem utilidade e proveito. Emoção forte e vibrante, conjugada com a serenidade incongruente do oceano.
As lembranças chovem como sonhos suaves duma história apenas contada que não deixa de ser verdadeira, somente por não ser escrita. Os rumores do passado reclamam para ali um cais natural, desenhado no recorte das falésias, patrocinado pela rigidez milimétrica das formas, estampado na alternativa dos posicionamentos. E assim, na inebriante penumbra dos penhascos enegrecidos, vejo, como se existissem, vultos de homens de albarcas, calças de cotim e chapéus de palha, a subir e a descer, a carregar pipas de vinho, molhos de lenha, sacos de trigo, rolos de couro, o que a terra ressequida mas trabalhada produzia. Lá em baixo, batelões vazios, à espera de serem carregados com todo aquele entulho lávico que, depois se há-de guiarem na direcção do Faial: pão, vinho, bolo do forno, peixe salgado, fruta, e uma ou outra garrafa de bagaço. Tudo rasteja e se esgana por entre as pedras negras, tingidas com excrementos de gaivotas.
Nunca me sentei sobre o rochedo dos Coxos, demandando o prazer da sua essência, nem se quer circulando os rebordos das suas extravagâncias, mas sentei-me ali, ao lado, tantas e tantas vezes, sonhando como se tivesse partido para terras distantes.
Para lá do oceano, numa América imensa e sempre sonhada, há os que estão prisioneiros do sonho e lutam por uma vida melhor. Apenas sorvem, nos momentos em que filtram o barulho das festas e o tédio do trabalho, a saudade, imensa, infinita e perene.
Tantas foram as vezes com que sonhei com aquele rochedo na sua magnífica e vivencial exuberância. Dali partiram barcos e barcos cheios com o suco da lava, muitas vezes ainda a verter o enxofre, sufragando uma insustentável coragem de enfrentar a aventura do sonho, onde tudo é tido e possuído. Mas todos os sonhos nos abismos deste rochedo promontório, onde há a magia necessária para tentar construir um futuro sustentável, apesar de inverosímil e cerceado pelas agruras do destino. A proposta de ali se construir um marco turístico e histórico já foi engavetado. Cuidei que era o dono deste rochedo, que o envolvia num cometimento ousado e perturbador, que o purificava de algas destruidoras e o edificava como baluarte eterno e infinito dos meus sonhos de deficitário pescador. Sou descendente das partilhas naufragada, das entregas dolorosas, das supremacias desoladas e das constâncias, definitivamente, obstruídas. Sou herdeiro dos que tentam preservar as memórias não escritas, dos que decalcam a tradição, dos que despejam, em vasos de terra ressequida, as mágoas dos sonhos desfeitos.
Não sei se no promontório dos Coxos existem vestígios de escolhos intumescentes e libidinosos, colónias de recifes multicolores e petrificantes, nem restolhos de navios naufragados ou magia de destinos perdidos. No rochedo dos Coxos há sim, memórias vivas de um passado escrito com lágrimas, embalsamado com sofrimento, galvanizado de honra e dignidade.
E se de nome ouve assim, talvez a sua génese esteja gravada na gesta dos que ali subiam e desciam, vergados às estravagâncias da lava vulcânica, a coxear, não porque fossem “coxos” mas que apenas e tão só, porque pareciam “coxos”, devido aos carregamentos que transportavam e às íngremes agruras do trilho. Nem sempre o que parece é.