PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NA DEMANDA DE SÃO MIGUEL
À tardinha começou o embarque dos passageiros que, em grande número, viajavam da Terceira para S. Miguel, para Lisboa ou até para a Madeira. Havia também muita gente que de terra se deslocava a bordo para acompanhar os familiares, ou simplesmente para visitar o navio. Debrucei-me mais uma vez sobre a amarra do convés a observar toda aquela movimentação de gentes e de bagagens. Não é que entre os passageiros me aparece o Shilfering. Mal me viu veio ter comigo e, coincidência das coincidências, disse-me que também ia para o Seminário. Eu conhecia o Shilfering da Fajã, onde ainda viviam os seus avós paternos e alguns tios e primos. Ele morava no Corvo com os pais, embora se deslocasse à Fajã, de vez em quando. O pai era Cabo do Mar na mais pequenina ilha açoriana. Explicou-me porque embarcara em Angra. O pai já estava no Corvo há muitos anos e queria mudar-se para as Flores, onde agora havia uma vaga. Viera à Terceira meter a papelada a fim de pedir a transferência para Santa Cruz. Como tinha um amigo que era Cabo do Mar na Praia da Vitória, vieram todos passar um mês a casa desse amigo. Os pais tinham partido para o Corvo, enquanto ele ficara na Praia, à espera do regresso do Carvalho, para agora seguir definitivamente para S. Miguel. Mas o Shilfering tinha uma sorte danada, pois viajava em condições muito superiores e melhores do que as minhas: o pai comprara-lhe passagem em segunda classe, tinha acomodação apesar de a viagem demorar só uma noite e, a pedido directo do pai, viajava aos cuidados do Senhor Imediato. Invejei-o, não tanto pela protecção do Imediato mas pela acomodação e, sobretudo, pelo jantar que o esperava na segunda.
O Shilfering para além dum nome esquisito, tinha um feitio danado e, por vezes, exagerava nas brincadeiras. O avô, o velho Shilfering, chegara à Fajã havia muitos anos, vindo, não se sabia donde. Tinha olhos e traços asiáticos e fez constar pela freguesia que vinha da Madeira, embora falasse muitas vezes nas “Terras Canecas”, região do globo terrestre que nunca ninguém soube bem ao certo onde se situava, mas por onde ele tinha andado. Porém, fixou-se, definitivamente, na Fajã Grande, casou, teve filhos e netos. Como o fazia sempre que ia à Fajã, meteu-se comigo, chateou-me, aborreceu-me e pior do que isso, sem que eu o pudesse evitar, a dada altura, surripiou-me as chaves da mala e do baú que trazia comigo nos bolsos e, sem dó nem piedade, atirou-as para o fundo do mar.
Estarreci! Escondi-me para que me não visse chorar. Como ia ser ao chegar a S. Miguel, sem conhecer quem quer que fosse, com as malas fechadas e sem chave? Ao chegar ao Seminário, na manhã seguinte, como poderia mudar de roupa e fazer a cama? Estava rigorosamente tramado. Passei o resto da noite entre choros e soluços, maldizendo a minha sorte, evitando o Shilfering, para não me atirar a ele de unhas e dentes, sem sequer arranjar sítio onde me sentar, quer no convés da primeira ou no da segunda, quer em outro sítio qualquer, pois o navio estava a abarrotar com os passageiros oriundos da Terceira. Além disso estava previsto mau tempo para a noite que se aproximava, e o vento forte já começava a agravar o estado do mar, que piorava a cada momento, provocando um balancear contínuo e exagerado do velho paquete. Comecei, novamente, a enjoar, a sentir tonturas, vómitos e enormes dificuldades em segurar-me em pé, tal como acontecera na noite anterior, na Graciosa. O Carvalho navegava agora açulado pelo forte vento e com um ranger assustador dilacerava ondas enormes e altivas, provocando grandes balanços e sucessivos solavancos, que amedrontavam mulheres e crianças. Sentindo que ia vomitar e não tendo onde, desloquei-me para a terceira classe na tentativa de descobrir lugar onde me recostasse e onde, à socapa, me aliviasse. Entrei na sala de jantar estava repleta de crianças a chorar, de mulheres a gritar e de homens a gemer. Quase todos vomitavam e muitos outros estavam prestes a fazê-lo. A sala exalava um cheiro insuportável e o ar lá dentro era pestilento a ponto de sufocar. Saí cá para fora, para respirar o ar puro e fresco, acompanhado dos salpicos do mar. Mas sentia-me em piores condições do que quando entrei na sala. O mar piorava a cada momento o que agravava as condições de navegabilidade do navio que balouçava mais assustadoramente. À minha volta a maior parte dos passageiros vomitava. Eu não pude evitá-lo. Novamente aquela vasca nauseativa se apoderou-se de mim e o meu corpo, trémulo e inerte, estatelou-se no chão duro e molhado do convés. Ali fiquei por algum tempo. Salpicado com os respingos da água salgada que a proa do navio ao sulcar as ondas projectava no ar e que caíam em chuveiro sobre o convés e sobre mim, reanimei e tomei consciência da minha situação. Decidi aproximar-me mais da borda do navio e permanecer ali com o rosto exposto ao ar frio da noite e à água salgada. Assim sentia-me mais aliviado. Mas o meu corpo continuava inerte e sem forças. Um marinheiro viu-me e veio tirar-me dali, avisando que era perigoso, pois, na opinião dele, alguma vaga maior poderia molhar-me por completo ou até arrastar-me. Amparado pelo homem, sentei-me em cima de uns sacos molhados que por ali estavam mas onde continuava a ser bafejado pelo fresco da noite que me ia aliviando a náusea e a aflição.
Deitado, de costas entretinha-me a contemplar os salpicos da água a projectarem-se sobre a proa do navio e a reflectirem-se nas luzes, formando pequenas bolinhas vermelhas, alaranjadas, amarelas, verdes, azuis e violetas, como as do Arco-íris. Os barulhos das máquinas assemelhavam agora a um sussurrar longínquo, suave e doce. O Carvalho seguia em grande velocidade, com os motores parados, parecia que voava. Um forte vento agitava-me, levantava-me e eu sentia que me atirava pela borda, para fora do navio. Em grande aflição, agarrava-me com ambas as mãos à amarra do convés, evitando cair no fundo mar. O Shilfering numa risota pegada e gozosa, calcava-me as mãos com os pés, obrigando-me a despegar da borda da amarra do convés e eu caía no mar, estatelando-me no abismo. De repente a Dona Celina conduzindo uma pequena chata semelhante à que viera atracar o Carvalho na Horta, corria a grande velocidade, na tentativa de me salvar. A muito custo agarrava-me e puxava-me para dentro da embarcação, encostava-me a ela, enxugava-me a roupa molhada e o corpo a pingar de água salgada e de espuma do mar e, num ápice, conduzia-me ao cais das Lajes das Flores, em cima do qual me colocava. Eu ficava sozinho, triste e macambúzio a acenar-lhe e a vê-la partir. Depois iniciava uma enorme correria pela vila, galgando-a de lés-a-lés, procurando ansiosamente meu pai, mas não via. Largava, então, sozinho, no escuro da noite pelo interior da ilha, até à ladeira da Boca da Baleia, no cimo do qual estava escondido, por trás de uma moita de hortênsias, o Adão que, colocando-se à minha frente me apanhava de surpresa. Segurando-me pela gola do casaco, ameaçava-me:
- Ah! Seu grande mariola! Ias a fugir com medo dos padres.
Depois, pegando-me à força metia-me novamente no Carvalho, repleto de pessoas a vomitar, de crianças a chorar e de vacas a mugir, conduzindo-me definitivamente para São Miguel. Um marinheiro de maleta a tiracolo, vinha cobrar-me o dinheiro do bilhete da viagem, mas eu não o tinha. Para me castigar por não ter dinheiro para o bilhete, o marinheiro atracava o navio numa ilha estranha e escura, iluminada apenas por uma ténue coluna de fogo, onde me deixava sozinho. De repente a ilha enchia-se de água e começavam a aparecer padres de todos os lados e entre eles estava o Senhor Natal, de tesouras em punho, a repreender-me exasperadamente.
Acordei assustadíssimo com os três estridentes apitos do Carvalho. Levantei-me sobressaltado. Já era dia claro. Olhei á direita e vi o mar. Olhei à esquerda e vi uma cidade enorme, enevoada e coberta duma chuva miudinha. Era Ponta Delgada e eu estava com a roupa toda encharcada.
Aproximei-me da borda do navio. A doca estava pejada de gente com guarda-chuvas abertos, de guindastes à espera de carga e de carga à espera de guindaste.
Ao redor apercebi-me de outras crianças da minha idade que teriam destino igual ao meu e apontavam lá para o fundo onde se via uma padre, ainda jovem, cabelo muito negro e ondulado, batina preta e coberta com uma gabardina azul, a proteger-se da chuva por um enorme guarda-chuva.
Saí do navio e segui os outros que se dirigiam na direcção do padre.
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O SEGREDO DA PAZ
“O segredo para viver em paz com todos, consiste na arte de compreender cada um segundo a sua individualidade.”
(Federico Luis Jahn)
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MARIA CRISTINA D’ARRIAGA
Maria Cristina d’Arriaga nasceu na cidade da Horta, ilha do Faial, em 1835, falecendo na mesma cidade aos oitenta anos de idade. Nasceu no seio de uma das mais ilustres famílias faialenses, tendo revelado desde cedo uma particular sensibilidade para a poesia, tal como seu tio Miguel Street de Arriaga e seu irmão, Manuel de Arriaga. Dotada de nobres sentimentos caritativos, dedicou-se a obras de assistência social, contribuindo para a fundação de uma Cozinha Económica, destinada à protecção alimentar de pessoas indigentes. Além de uma colectânea de pensamentos, publicou em 1901 um livro de poemas a que deu o título de Flores d’Alma, um livro percorrido por um «lirismo profundo», no dizer do poeta faialense Osório Goulart.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores