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O ENSINO DA FILOSOFIA NO SEMINÁRIO DE ANGRA,

Terça-feira, 17.06.14

Hoje é incondicionalmente aceite que o Seminário Episcopal de Angra, única instituição de ensino pós-secundário, nos Açores até 1976, ano em que foi criada a Universidade, foi um notável e inexaurível alforge de ciência e de cultura, onde se formaram, para além do clero açoriano, de onde emergiram muitas eminentes figuras da igreja católica, grande parte da classe dirigente, da intelectualidade e da cultura açorianas.

Foi sobretudo nas décadas de cinquenta e sessenta que esta instituição atingiu o apogeu da sua notabilidade e da sua génese formadora. Por um lado, o Seminário de Angra possuía, naquelas épocas, um notável lote de professores, homens de letras, de ciência, de grande sabedoria, de profundos conhecimentos e defensores dos mais nobres princípios de humanismo, formados na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, aos quais se juntavam alguns padres que mais se distinguiam na diocese pelo seu conhecimento específico, numa ou noutra disciplina. Por outro lado demandaram o Seminário, nessa altura, muitos jovens dotados de elevada capacidade intelectual, na maioria dos casos oriundos de famílias pobres e, por conseguinte, impedidos de frequentar as universidades do Continente, mas referenciados pelos seus professores primários, como possuidores de excelentes capacidades de aprendizagem e que, após o exame da quarta classe, “seria uma pena não continuarem os estudos”. Uns fizeram-no com enorme sacrifício dos pais, outros com algum mecenas protector que lhes surgiu no caminho e alguns, agregando-se a outras dioceses, como era o caso de Timor, que lhes custeavam os estudos. Eram uma espécie de “banco de inteligências”, nadas e criadas no arquipélago, sedentas de aprendizagens e conhecimentos, que urgia aproveitar. O Seminário de Angra era o seu destino natural e único.

Assim, durante doze anos, o Seminário de Angra disponibilizava, aos que o demandavam, um plano curricular exigente, completo, abrangente e rigoroso, complementado com actividades de índole intelectual e cultural, desde a música ao teatro, passando pelo jornalismo, através de academias, sabatinas, jornais, palestras, reuniões, semanas culturais, etc. Através dessas actividades, os seminaristas iam desenvolvendo e aperfeiçoando as suas capacidades, fortalecendo os conhecimentos adquiridos, enriquecendo e completando as suas aprendizagens, tornando-as mais profundas, mais seguras e sobretudo, mais diversificadas. Além disso era-lhes possibilitado assistir e participar em diversas iniciativas de índole cultural e de formação fora do Seminário. Todas estas actividades, internas e externas, porque privilegiavam a ciência, a cultura, a arte e a literatura, constituíram para muitos como que o dealbar de uma futura formação que mais tarde os tornaria baluartes das próprias letras, da ciência, das artes, da música e da cultura açorianas.

O plano de estudos no Seminário, nas décadas de cinquenta e sessenta estava dividido em três etapas: o ensino preparatório, o curso de Filosofia e o de Teologia. No âmbito desta “memória”, referir-me-ei, apenas, ao curso de Filosofia.

O curso de Filosofia que tinha a duração de três anos, sofreu a sua primeira “reforma curricular”, na década de cinquenta, altura em que a Ética e a História da Filosofia se constituíram como disciplinas autónomas. Nessa altura também se verificaram notáveis alterações, nos programas das várias disciplinas, na própria metodologia do ensino da Filosofia, numa melhor explicitação dos seus conteúdos, privilegiando-se não apenas as capacidades cognitivas dos alunos mas também a pesquisa, a investigação pessoal e o raciocínio. Na origem destas mudanças, como seu estratega e mentor, esteve o Dr. José Enes, com a colaboração do Dr Cunha de Oliveira. Na génese duma segunda reforma, realizada já em plena década de sessenta, que tinha como objectivos principais aproximar os currículos do Seminário aos do ensino oficial, enriquecer cultural e cientificamente a formação dos futuros sacerdotes e proporcionar aos que saíam, uma maior facilidade em obter equivalências, esteve, novamente, o Dr José Enes, na altura “Prefeito de Estudos”, uma espécie de “Director Pedagógico” do Seminário. No âmbito desta reforma, o plano curricular do curso de Filosofia foi enriquecido com as disciplinas de Português Medieval, Matemática, Química, Latim e Psicologia que assim também se separava, como disciplina curricular, da Filosofia.

A partir de então, o plano curricular do curso de Filosofia do Seminário de Angra abrangia as seguintes disciplinas: Filosofia (incluindo Lógica Menor, Lógica Maior ou Teoria do Conhecimento, Metafísica, Cosmologia, Teodiceia ou Teologia Natural); História da Filosofia; Ética; Psicologia (também designada por Filosofia II); Arte/História da Arte; Apologética; Português Medieval; Literatura/História da Literatura; Latim; Latinidade, Grego; História da Civilização Universal; Matemática; Química e Música. (1)

A Filosofia era a disciplina base deste curso, com maior carga horária e leccionada ao longo dos três anos. O compêndio utilizado era o “Cursus Philosophiae” (ad usum seminariorum) de Carolo Boyer, S.I, Desclée de Brouwer, em dois volumes, em latim. No entanto este facto trazia-nos algumas vantagens, pois para além de se aperfeiçoar o latim, obrigava a um estudo mais demorado e cuidadoso, o que, obviamente, facilitava as aprendizagens.

Na globalidade, os professores, dotados de uma competência capaz de mobilizar os parcos recursos pedagógicos disponíveis, na altura, e que quase se limitavam aos manuais, ao quadro e a alguma bibliografia complementar, dominavam com sabedoria os conteúdos programáticos, orientavam as aulas com uma linguagem erudita e motivavam os alunos na defesa não apenas dos valores religiosos e cristãos mas também dos culturais, humanos e morais.

Desde os anos vinte que o ensino da Filosofia foi da responsabilidade do Dr Manuel Cardoso do Couto, detentor de um notável percurso intelectual, filosófico e teológico, marcado pelo aristotelismo de inspiração tomista, sendo substituído, no início dos anos cinquenta pelo Dr Simão Betencourt e pelo Dr José Enes, que embora mantendo o compêndio de Boyer, como estrutura do programa, alterou a metodologia, alargou o debate filosófico a temas mais vastos e actuais, centrando o ensino nos alunos, incentivando-os à investigação, à reflexão e à pesquisa.

Nos anos sessenta o ensino da Filosofia e da História da Filosofia coube ao Dr Caetano Tomás. Em Filosofia, seguia Boyer, com rigor metódico, incentivando o raciocínio e desenvolvendo a memória dos alunos, “obrigando-os” a decorar as mais diversas definições, em latim, muitas das quais ainda hoje perpassam, como em eco, na nossa memória. Em História da Filosofia, através do “Précis d’Histoire de la Philosophie”, de François-Joseph Thonnard, explicava, pausadamente e os alunos tiravam apontamentos. Embora se tratasse duma síntese abreviada, era dada uma visão global da evolução do pensamento filosófico ocidental, desde a passagem do conhecimento mítico ao racional, com os filósofos da chamada escola milésia, até Fitche, Shelling e Hegel, com uma breve abordagem à Filosofia dos Valores de Max Scheller. Lugar de destaque tinha o autor-base da Escolástica, São Tomás de Aquino, o “Doutor Angélico”, sobretudo porque fora ele que fizera da Filosofia, a “ancilla theologiae”. De acordo com as directrizes existentes, na altura, o objectivo primordial desta disciplina, nos seminários, era “preparar os alunos para um posterior estudo da Teologia”. Esta insistência intensiva na Filosofia Escolástica, espelhada aliás em toda a orientação temática e argumentativa do livro de Boyer, dava-nos, no entanto, uma profunda e sólida formação nesta área. Pessoalmente, senti-a, dez anos mais tarde, ao frequentar a cadeira de Filosofia Medieval, no curso de Filosofia da FLUP. Apercebendo-se o professor das minhas persistentes intervenções nas aulas, quer sobre a Patrística quer sobre a Escolástica, perguntou-me, certo dia, se eu havia feito o curso de Filosofia nalgum seminário. Perante a minha afirmativa, convocou-me a dar algumas aulas sobre a Escolástica, tendo eu, então, preparado e apresentado um estudo sobre a Summa Contra Gentiles de São Tomás de Aquino. Na apresentação do mesmo, estavam presentes estudantes que haviam frequentado seminários do norte do país e pude aperceber-me de que, nesta área, a formação deles era, aparentemente, mais limitada.

A Ética, assim como a Literatura, eram leccionadas pelo Dr Francisco Carmo, possuidor duma cultura elevadíssima e duma eloquência exuberante, utilizando uma linguagem rigorosa e erudita. Na disciplina de Ética, sobre cujos temas dissertava com um à vontade e uma segurança científica impressionantes, pese embora seguisse, parcialmente, o compêndio de Boyer, recomendava várias leituras complementares, enquanto em Literatura, para além de leccionar os conteúdos, incentivava os alunos â criação literária - poesia e prosa.

O Dr José Enes, também professor de Filosofia durante uma boa parte das décadas de cinquenta e sessenta, era um estudioso da língua e da cultura portuguesa, tendo posteriormente leccionado em diversas universidades, nomeadamente na dos Açores, da qual foi Reitor, sendo também um dos elementos responsáveis pela sua criação. As suas aulas eram cativantes, atractivas e motivadoras. Com recurso aos Textos Portugueses Medievais  de Correa de Oliveira e Saavedra Machado transportava-nos ao maravilhoso mundo dos primórdios da língua portuguesa escrita, aos remotos tempos da poesia trovadoresca, aos textos do Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende, aos primeiros documentos escritos em português nos séculos XII e XIII, aos Cronicões das ordenações afonsinas e da criação dos mosteiros medievais, aos clássicos dos Príncipes de Avis, a Fernão Lopes, e tantos outros. Além disso, dotado de uma escrita de elevada sensibilidade e excelente qualidade, paralelamente a Francisco Carmo, incentivava-nos na arte de bem escrever, dando complementaridade aos alicerces construídos pelo padre Coelho de Sousa, nos anos anteriores. O Dr José Enes foi ainda o responsável pela reabertura da biblioteca do Seminário e pelo início da sua reorganização, actividade em que se envolveram e colaboraram vários alunos.

O Dr Artur Goulart, substituindo o Dr Garcia da Rosa, em História da Arte, e o Dr Edmundo Oliveira. Substituindo o Dr Antonino Tavares, em Música, exímios conhecedores, quer na teoria quer na prática, dos conteúdos programáticos da Arte e da Música, encantavam com aulas aliciantes, motivadoras, por vezes acompanhadas de audiovisuais, no primeiro caso slides de obras de arte dos vários museus de Roma e de outras cidades europeias e, no segundo, com discos de música diversa, nomeadamente clássica. O Dr Edmundo de Oliveira, por sua própria iniciativa e manifesta vontade, alterou o programa da disciplina de Música, enriquecendo-o com a “História da Música”.

Pela sua humildade e sabedoria primava o Dr José Nunes, o único deste vasto elenco, que ainda exerce a docência no Seminário de Angra. Não resisto a recordar um pormenor das suas aulas de grego, nas quais traduzíamos textos variadíssimos, nomeadamente as fábulas de Esopo. Perante um e outro erro que cometíamos nas traduções, por mais exagerados que fossem, nunca o Dr José Numes nos recriminava com frases condenatórias ou humilhantes. Apenas esboçando um sorriso dizia: “Eu acho que se pode traduzir doutra maneira”. Pessoalmente, confesso que esta atitude me marcou bastante, tendo procurado fazer dela uma espécie de lema do meu percurso pedagógico, como professor. A completar o estudo das línguas clássicas, o Dr Cunha de Oliveira, numa abordagem ao Grego Bíblico e ao Hebraico, realizada já no nono ano, com métodos pedagógicos modernos, profundamente centrados no aluno e com os seus amplos e profundos conhecimentos das Línguas e Ciências Bíblicas, permitia-nos já descortinar o que seriam as aulas de Sagrada Escritura dos anos seguintes. 

O Dr Weber Machado, dotado de grande sabedoria, sempre atento aos problemas dos alunos, trouxe de Lisboa e Coimbra um lufada de ar fresco para a Matemática que até então se ensinava no Seminário, mas com a qual naturalmente terá colidido, tornando difícil as exigentes aprendizagens que a caracterizavam, bem como a assimilação dos conteúdos programáticos que continha.

Acresce dizer-se que em Latim e Latinidade, o padre Jacinto Almeida, com o rigor e a exigência de que não abdicava nas suas aulas, forçava-nos a prepará-las meticulosamente e a estudar com rigor e frequência. Utilizando um método bastante ancestral de “chamar à sorte”, obrigava-nos a nunca ir “em branco” para as aulas, o que geralmente também acontecia em todas as outras disciplinas e que redundava em nosso benefício.

A Psicologia, leccionada pelo Dr José Enes e pelo dr Artur Custódio, permitia-nos entrar no reino do experimental, do empírico e estudar o comportamento dos processos mentais do indivíduo, enquanto a Apologética mais não era do que uma síntese daquilo que, na disciplina de Religião, em anos anteriores, se havia aprendido sobre o Cristianismo, a que o Dr Américo Vieira acrescentava uma interessante síntese da história e dos princípios gerais das grandes religiões da humanidade.

Estas disciplinas, com carga horária diversificada, distribuíam-se ao longo dos dias da semana, excepto às quintas-feiras e domingos, com quatro horas lectivas durante a manhã e uma à tarde. Para prepará-las dispúnhamos de quatro horas diárias de estudo obrigatório, durante o qual reinava um silêncio profundo e absoluto em todo o Seminário. Uma hora de manhã, entre a missa e o pequeno-almoço, duas, intercaladas com um intervalo de quinze minutos, após a aula da tarde e antes do jantar e uma à noite. Assim como as aulas, o seu início e o seu termo eram anunciados por uma sineta ou “cabra” colocada em frente à sala dez e tocada, à vez semanalmente, por cada um dos alunos mais velhos da prefeitura dos “médios”. Era também durante algumas dessas horas e às quintas-feiras que se realizavam as actividades de complemento curricular, nomeadamente ensaios de música, teatro, as sessões académicas e outras reuniões. Às quintas-feiras, também tinham lugar as visitas de estudo, na altura designadas “por passeios grandes”, a formação espiritual, os retiros mensais e outras actividades.

Acresce dizer-se que eram os alunos do 1º ano de Filosofia que dinamizavam e organizavam a festa de São Tomás de Aquino, padroeiro dos filósofos, a maior festa realizada no Seminário.

Foi a competência, a sabedoria, o humanismo e a dignidade destes e de muitos outros mestres que constituíam o corpo docente do Seminário de Angra nas décadas de 50/60, os planos curriculares que eles próprios construíram, os conteúdos programáticos das disciplinas que leccionavam e as diversíssimas actividades culturais, artísticas e até de lazer em que connosco se envolviam e nas quais nos acompanhavam com dedicação, amizade e esmero, que fizeram, daquele punhado enorme de jovens açorianos que naquelas décadas procuraram o Seminário de Angra, e que nele encontravam uma segunda casa e uma segunda família, aquilo que de facto hoje são. É verdade que alguns saíram ao longo do duro e sinuoso percurso de doze anos de estudo. Mas muitos outros chegaram ao fim e ordenaram-se, atingindo o objectivo primordial pelo qual haviam lutado e que constituía o sonho de qualquer simples e humilde família açoriana, na altura – ter um filho sacerdote. Muitos destes, no entanto, alguns anos mais tarde, por isto e por aquilo ou simplesmente porque quiseram, resolveram alterar o destino da sua vida. E, porque haviam armazenado, ao longo do seu percurso no Seminário, uma sólida formação, fizeram-no com dignidade, com convicção, com nobreza de carácter e de acordo com os valores humanos e morais que ao longo dos anos haviam adquirido e que lhes permitiu através da formação académica ali obtida, singrar com êxitos assinaláveis nos mais diversos âmbitos das letras, das artes, da ciência, da cultura, da sociedade e da religião.

Nota:

Também existia Educação Física, vulgarmente designada por Ginástica, mas era mais considerada uma prática do que propriamente uma disciplina, uma vez que não tinha qualquer componente teórica, nem avaliação.

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