PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
IN MEMORIAM DO NOÉ
Confesso que durante os anos que vivi no Seminário, nunca tive oportunidade de desenvolver e cultivar grande amizade com o Noé. Desde o primeiro ano que ele, devido à sua opulência corporal, pertencia ao grupo dos “grandes”, ou seja, dos últimos da fila, juntamente com o Onésimo, o Octávio, o José Maria Couto, o José Gabriel, o José Maria Ávila e mais um ou outro. Eu, o Faria, o Jorge Nascimento, o Lima Oliveira, o José Augusto, o José Adriano (de São Bartolomeu) e mais alguns, ocupávamos os lugares da frente, dos mais “pequenos”. Habituados a andar em “bicha” para todo o lado, nos passeios pelo Relvão, pela Doca, pelo Alto da Mãe de Deus ou pelo Jardim António Borges, ao dispersar, raramente nos separávamos.
Um episódio ocorrido no início do nosso 2º ano, veio agravar este injustificável “fosso”. No salão de estudo, estreito que nem um corredor, ao fundo, do lado das escadas que davam para os lavatórios e a seguir às malas dos alunos do 1º ano, existiam cerca de vinte carteiras pretas, grandes e com ampla capacidade de arrumação. Creio que teriam sido enviadas, como excedentes, do SEA, pois eram iguais às que ali encontrei mais tarde. As restantes eram umas simples mesas de madeira, envernizadas, muito pequenas e exíguas, com um tampo por cima, que mal fechavam se lhe colocássemos dentro mais um caderno que fosse. As carteiras grandes eram, obviamente, reservadas aos alunos do segundo ano, mas não chegavam para todos. Possuir uma carteira daquelas, no segundo ano, era um sonho de todos. Os “das ilhas de baixo”, no início do segundo ano, ao chegar, no Carvalho, uns dias mais cedo do que os de S. Miguel, ocuparam-nas, literalmente, todas. Chegaram os micaelenses, entre eles os “grandalhões” e não é que o padre José Franco, impõe uma imediata acção de “despejo” das ditas cujas, sem direito a protesto, a mim, ao Faria e a outros, alegando, simplesmente, “que aquelas carteiras eram para os maiores”. Ficamos furiosos!
É verdade que em Angra, já maiores e mais maduros, aquele “fosso” foi, naturalmente, diminuindo, sem no entanto se esvair por completo. O Noé abandonou o Seminário, creio que ao terminar o Curso de Filosofia e eu o de Teologia. Nunca mais nos encontrámos.
Mas quis o destino que, passados muitos anos, nos reencontrássemos num desses maravilhosos e inesquecíveis encontros do Mucifal - berçário de memórias e cimeira de troca de afectos - com a agravante de, nesse dia, sermos os únicos de 1958/59. Não nos largámos um ao outro e o dia foi pequeno para reavivarmos memórias, saudades, recordações e estórias dos anos do Seminário e para partilharmos as nossas posteriores vivências, humanas, familiares, profissionais e sociais. Foi então que percebi que o Noé fora um digno, competente e exímio profissional, orgulhoso do seu valor, ufano do seu excepcional currículo, aureolado de uma excelsa dignidade e de uma notável dedicação e empenhamento. Senti, sobretudo que o Noé era dotado duma grande alma e de um bondoso coração.
E creio que o Noé sentiu algo semelhante em relação a mim, porque no fim do dia, ao despedirmo-nos, ambos lamentámos, termos desperdiçado tantos momentos em que, no Seminário, poderíamos ter vivido sensações tão intensas e tão gratificantes como as daquele dia. Foi então que, para desagravar, esse défice de troca de afectos e amizade, prematuramente, desperdiçados, prometemos um ao outro que nos havíamos de voltar a encontrar, talvez no Norte, na Madeira ou até nos Açores…
Infelizmente, já não nos reencontraremos, porque o Noé partiu hoje e para sempre.
Autoria e outros dados (tags, etc)
A LENDA DOS NOVE IRMÃOS
Conta uma antiga lenda açoriana que há muitos, muitos anos, existiu no meio do Oceano Atlântico um país muito belo e próspero, com cidades maravilhosas, praias lindíssimas, campos muito férteis e montanhas cobertas com árvores frondosas, umas carregadas de frutos saborosíssimos, outras tão esplendorosas e altas que pareciam chegar ao céu. Chamava-se Atlântida.
Conta a lenda que nesse fantástico país existiu, numa dada altura, um rei que tinha nove filhos, todos eles rapazes, muito fortes mas também muito amigos.
Certo dia o velho monarca, sentindo que se aproximava o fim dos seus dias, resolveu chamar os filhos. Pediu-lhes que lhe dissessem que sítio preferia cada qual para viver, pois dividir o seu reino por eles, dando a cada um, a parte que mais lhe agradasse. Todos escolheram montanhas, mas como se entendiam bem, não houve discussões e cada um foi para um dos nove cumes montanhosos que o país possuía, decidindo que se haviam de reencontrar, passado um ano.
Após a morte do pai, partiram todos. Na véspera do dia combinado, porém, cheios de desejos de se verem uns aos outros e de se reencontrarem, estavam tão nervosos e excitados que mal conseguiram dormir. Malogradamente, nessa mesma noite ouviram um grande estrondo que se propalou por todas as montanhas. Ao acordar, aperceberam-se, com grande mágoa, que o território que constituía o seu maravilhoso país, se tinha afundado, e que haviam ficado, à superfície das águas, apenas os nove cumes das montanhas que cada um tinha escolhido para si e onde se encontrava naquele momento. Ficavam, assim, impedidos de se reencontrarem, podendo fazê-lo, somente, através do mar. Mas para isso teriam que construir barcos, tarefa que, no entanto, lhes estava facilitada, pois as montanhas que habitavam estavam cobertas de árvores com belos e rijos troncos. Assim decidiram todos e cada um por si, construir barcos, que algum tempo depois lançaram ao mar, viajando, de montanha para montanha, com sucesso. Assim conseguiram todos reunir-se, voltando a abraçar-se e a conviver como nos bons velhos tempos em que viviam no reino de seu pai. Foi assim que aprenderam a viajar pelo mar, e o facto de cada um viver sozinho na sua ilha, nunca mais os impediu de se juntarem e de se visitarem uns aos outros, passando, assim, a viajar de um para outro daqueles cumes montanhosos que eram as ilhas dos Açores.