PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
BOIS DE SABUGO
O sobrado da velha cozinha da minha casa era o meu mundo. Mundo débil, abstruso, indefinido e obliterado mas fantasmagórico, cativante e sedutor. Mundo exíguo, aborrido, impetuoso e esburacado mas desvairado, quimérico e encantador.
A madeira do soalho, com o tempo e com o sucessivo e quotidiano sapateado de quatro ou cinco gerações, corrompera-se, apodrecendo aqui e além, adquirindo enormes e descomunais buracos que meu pai ia tapando. Para tal, pregava-lhes em cima pedaços de madeira, uns trazidos pelo mar e que ele ia encontrando e recolhendo, nas suas idas e vindas ao cerrado das Furnas ou ao curral do Canto do Areal, outros retirados das caixas de sabão que um outro comerciante, de vez em quando se desfazia, oferecendo-as a quem chegava primeiro ou a quem tinha o rol da caderneta limpo, que era o caso de meu progenitor. O sobrado adquirida, assim, uma irregularidade abominável e uma sinuosidade irreverente, sobretudo para a minha mãe, que em dias de lavagem da cozinha era forçada a escarafunchar com mais cuidado e redobrada atenção os recônditos dos remendos. Como consequência, ora esgarçava uma ou outra unha ora espetava algum estrepe nos dedos, resultante da aspereza dos pedaços de madeira. Como meu pai não tinha plaina, pregava-os na sua pureza original… com farripas e tudo. Até meu pai, apesar de autor daquela aberrante, invulgar e indesejada proeza, também se chateava de sobremaneira, quando empeçava num ou chavascava os dedos dos pés noutro.
Eu é que nada me ralava com aquele acervo de irregulares saliências e maquiavélicos altos-relevos. Antes pelo contrário adorava-os e por nada deste mundo os substituía pelo que quer que fosse. Eles eram a obra perfeita e inédita do meu mundo. Eles consubstanciavam a excelsa plenitude dos meus sonhos. Eles maculavam de mitos enigmáticos e sublimes o meu imaginário.
É que de baixo do lar, ao lado das achas de lenha picada e empilhada e dos garranchos de incenso amontoados em desalinho momentâneo, havia, nos dias subsequentes à debulha do milho para a moenda, um cesto com os sabugos que restavam das maçarocas e que a minha mãe utilizava para, depois de os encharcar em petróleo, acender o lume.
Então eu ia lá e, revirando o cesto até ao fundo, procurava os melhores, os mais felpudos, os mais inebriantes. Se houvesse um vermelho era um delírio!
Pegava, então em dois deles, anafava-os, alisava-lhes o pelo e, transformando-os em bois, baptizava-os. O mais pequeno ou o vermelho se o houvesse, era o Damasco. O outro, o maior e mais corpulento, o Gigante. Depois, amarrava-os na parte que fora a extremidade superior da maçaroca com um fiado que, muito a custo, roubava â minha mãe, de modo a que ficassem presos lado a lado, simulando uma junta de bois, jungida. De se seguida, amarrava outro pedaço de fiado a um pequeno garrancho de incenso em forma de vê, com uma das pontas mais curta e prendia esta pequena e simples geringonça à simulada canga dos meus bois. E lá ia, conduzindo-os e tangendo-os com uma aguilhada, até às minhas terras, retratadas nos remendos de madeira do velho sobrado. Bem no centro da cozinha, uma, resultante de um remendo quadrado, com uma tira num dos lados a fazer de canada e portal de entrada. Era tal e qual o Descansadouro do meu pai. Outro, junto à porta da frente, resultante de duas tábuas pregadas ao lado uma da outra. Tal e qual a Bandeja do meu avô, muito fértil em batata-doce.
E passava eu horas e horas, com a minha junta de bois de sabugo e o meu arado de garrancho de incenso, a lavrar, a gradear e a semear as minhas terras. Depois, o milho crescia, sachava-o e entremeava-lhe trevo e erva da casta para, após a apanha do cereal e o corte dos milheiros, colocar os meus bois, amarrados à estaca, refastelando-se, não apenas com as forrageiras mas também com carradas de incenso e erva que eles próprios acarretavam das terras de mato e das lagoas, personificados noutros remendos mais pequenos e distantes, apesar da indignação da minha mãe, que nos seus intensos afazeres e lides domésticas, de vez em quando, tropeçava em min, anestesiado pela sublimidade das minhas brincadeiras, a arrastar-me, ininterruptamente, pelo velho sobrado.
Mas um dia, uma enorme catástrofe havia de abater-se, pondo termo aos meus sonhos e cerceando, definitivamente, todas as minhas brincadeiras. É que meu pai, farto daquela degradante penúria, pôs à engorda um gueixo e vendeu-o a fim de ser embarcado para Lisboa, decidindo que o dinheiro que ele desse, havia de destinar-se a um soalho novo para a cozinha. Se bem o pensou, melhor o fez…
E lá vieram os homens, com martelos, pés-de-cabra, plainas, enxós, pregos e tábuas aplainadas… Arrancaram o velho soalho, substituíram uma ou outra trave também carcomida e pregaram um soalho novo na minha cozinha, destruindo, desfazendo e acabando de vez com os meus sonhos, com o meu mundo e com os meus bois de sabugo.
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OS DE 1958/59 - LISTA CORRIGIDA
O Onésimo com a sua prodigiosa memória, os seus riquíssimos apontamentos e o seu sempre disponível espírito de ajuda, ao ler a relação que há dias divulguei, de imediato corrigiu alguns falas que a mesma continha. A esposa do Gualter, também corrigiu a residência dele, naqueles tempos e o Carlos Sousa lembrou que o Octávio e o Gastão também se ordenaram, mas na diocese de Carmona, em Angola, não tendo, no entanto, completado o Curso de Teologia, no Seminário de Angra. De facto, é com a colaboração e ajuda de todos, que se consegue com maior rigor e verdade, reconstruir a memória de um passado que, parecendo perto, já está bastante distante – mais de cinquenta anos.
Eis a relação, devidamente rectificada:
No ano lectivo de 1958/59, matricularam-se no Seminário Menor de Santo Cristo, em Ponta Delgada, os seguintes alunos: António Adelino Moules Rocha, de S. Bartolomeu, Terceira, António Andrade Varão do Rosário, Lagoa, S. Miguel, António Filomeno Maia Gouveia, de S. José, Ponta Delgada, S. Miguel, António Francisco Ferreira, Povoação, S. Miguel, António Manuel Botelho Pimentel, Lomba Santa Barbara, S. Miguel, que não chegou a completar o 1.ºano, Carlos Alberto, de Ponta Delgada, S. Miguel que também saiu no 1.ºano, Carlos Joaquim Fagundes, da Fajã Grande, ilha das Flores, Carlos Medeiros Sousa das Capelas, S. Miguel, Eugénio Silva Melo, de Santo Amaro, ilha do Pico que adoeceu, não transitando de ano, Eugénio Ribeiro Carvalho, da Casa da Ribeira, Terceira, Fernando Sousa Mota, das Capelas, S. Miguel, Gualter Cordeiro Dâmaso da Ribeira Grande, S. Miguel, mas com residência em Santa Maria, Humberto Sousa Clementino, Lomba da Maia, S. Miguel, que reprovara no ano anterior, João Carlos Resendes Carreiro, da Fajã de Baixo, S. Miguel, João Manuel Vieira Dowling, natural da Fajã Grande, ilha das Flores mas residente no Corvo, que abandonou o Seminário logo no 1.º trimestre, João Manuel Rego Ferreira, das Furnas, S. Miguel, João Vasco dos Reis Cunha, de Santo António-Capelas, S. Miguel que também saiu ao longo do 1.ºano, Jorge Manuel Nascimento Cabral, de S. Pedro, Ponta Delgada, S. Miguel, Jorge Manuel Raposo da Povoação, S. Miguel que saiu no 1.ºano, José Adriano Borges Carvalho da Casa da Ribeira, Terceira, José Adriano Cota de S. Bartolomeu, Terceira e que também saiu no 1.ºano, José Augusto Melo Borges, de S. Pedro Nordestinho, Nordeste, S. Miguel, José Avelino da Silva Cunha, da freguesia da Luz, Graciosa e que também abandonou o Seminário no 1.ºano, José Fernandes de Andrade Rodrigues, da Ribeira das Tainhas, S. Miguel, também abandonando o curso no 1.ºano, José Francisco Rodrigues Costa, das Capelas, S. Miguel, José Francisco Lima Oliveira, de S. José, Ponta Delgada, S. Miguel, José Gabriel Lopes Machado Ávila, das Lajes do Pico, José Manuel Medeiros Franco, de S. Pedro Nordestinho, Nordeste, S. Miguel, José Maria Bettencourt Ávila, dos Rosais, ilha de S. Jorge, José Maria Furtado Couto, da Algarvia, S. Miguel, Luís Gonçalo Brum Galvão, de Rabo de Peixe, S. Miguel, que saiu no 1.ºano, Manuel Faria de Castro do Capelo, ilha do Faial, mas residente na Praia do Norte, da mesma ilha, Francisco Manuel Pavão Moniz dos Mosteiros, S. Miguel, que também saiu no 1.ºano, Manuel Jacinto Vasconcelos, de Vila do Porto, Santa Maria que apenas se matriculou, não chegando a entrar no Seminário, Noé Borges Carvalho da Casa da Ribeira, Terceira, Octávio Henrique Ribeiro de Medeiros, de Povoação, S. Miguel e Onésimo Teotónio. Pereira de Almeida, do Pico da Pedra, S. Miguel.
No segundo ano matricularam-se e passaram a integrar o curso; António Victor Serpa, natural do Lajedo, ilha das Flores, mas residente na Horta, ilha do Faial, Gastão Altino Furtado de Oliveira, natural de S. José de Ponta Delgada, Jacinto Manuel da Costa Correia, natural da Ribeirinha, S. Miguel, que reprovara o 2º ano, no ano lectivo anterior e Luís Francisco Sampaio Melo, da Povoação, S. Miguel e que abandonou o seminário menor, mais tarde.
Destes alunos, matricularam-se no Seminário de Angra, no ano lectivo de 1960/61, os seguintes: António Adelino Moules da Rocha, António de Andrade Varão, António Filomeno de Maia Gouveia, António Victor de Serpa, Carlos Joaquim Fagundes, Carlos de Medeiros Sousa, Eugénio Ribeiro Carvalho, Fernando de Sousa Mota, Gualter Cordeiro Dâmaso, Humberto de Jesus Clementino, Jacinto Manuel da Costa Correia, João Carlos Resendes Carreiro, Jorge Manuel do Nascimento Cabral, José Adriano Borges de Carvalho, José Augusto de Melo Borges, José Francisco de Lima Oliveira, José Francisco Rodrigues Costa, José Gabriel Lopes Machado Ávila, José Manuel de Medeiros Franco, José Maria Bettencourt de Sousa e Ávila, José Maria Furtado do Couto, José Victor Menezes de Sousa, natural da freguesia da Conceição, Horta ilha do Faial e residente em Santa Luzia do Pico, que não frequentou o Seminário Menor de Ponta Delgada, Manuel Faria de Castro, Noé Borges Machado Carvalho, Octávio Henrique Ribeiro de Medeiros, Onésimo Teotónio Pereira de Almeida e Gastão Altino Furtado de Oliveira. No ano lectivo seguinte, ou seja 1961/62, matriculou-se João Elias Maurício de Mendonça, natural da freguesia da Ribeira das Tainhas, Lagoa, ilha de S. Miguel.
Completaram o curso de Teologia, no ano lectivo de 1969/70, tendo-se ordenado os seguintes alunos: António Andrade Varão, Carlos Joaquim Fagundes e Humberto de Sousa Clementino.
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INTELIGÊNCIA E DIGNIDADE
O Abel Nóia nasceu nas Lajes das Flores, ingressando no Seminário de Angra, em 1961/62, onde completou o Curso de Teologia. Ordenado presbítero em 1973, iniciou a sua actividade pastoral na paróquia de Posto Santo da ilha Terceira, nesse ano, sendo transferido, dois anos depois, para São Mateus, na mesma ilha, onde permaneceu durante quatro anos, considerando-se, nessa altura, “mal preparado para a riqueza sociológica do meio”. Em 1979 foi colocado na Calheta, Biscoitos e Norte Pequeno, na ilha de São Jorge. De seguida fez um «ano sabático» na Diocese de Setúbal, integrando o trabalho paroquial normal da Cova da Piedade. Finalmente foi colocado nas Flores, assistindo espiritualmente várias paróquias, acabando por regressar à Terceira, mais concretamente a São Bartolomeu dos Regatos, ultima paróquia em que trabalhou, antes da colocação em Santa Cruz da Praia da Vitória, onde reside e trabalha actualmente. A partir de 2001 tem também a seu cuidado a simpática paróquia da Casa da Ribeira. Pessoalmente pensa que, assim como as caixas do «Gauarita» «já está «fora de prazo» para ambas, mas tem uma “«folha de A 4» em casa que aponta o fim para 1 de Agosto de 2016, se ainda tiver vida e saúde”. Durante largos anos, acumula o cargo de Ouvidor da ilha Terceira. Homem duma fina sensibilidade, de um humanismo profundo, duma dignidade gigantesca e de uma atenção extrema para os mais fracos e necessitados, Abel Nóia possui uma inteligência invulgar, uma capacidade inaudita de ler, apreciar e analisar os problemas da igreja e do mundo que, normalmente extravasa, através de uma escrita graciosamente audaciosa, sabiamente atrevida e delicadamente mordaz. Possui uma ampla cultura, sobretudo a nível da Teologia e da Bíblia. Os seus escritos, ultimamente colocados nas páginas do Facebook são atractivos, oportunos, sensatos, acutilantes e, como se isso não bastasse, de uma riqueza literária de excelente qualidade.
O Abel, devido às suas actividades pastorais, não pode participar em todos os eventos do Encontro, mas naqueles em que para isso teve disponibilidade, fê-lo com alma e coração, extravasando uma docilidade invulgar, uma camaradagem inaudita e um companheirismo sincero e verdadeiro. Descendo dos pedestais em que muitos clérigos ainda hoje se arrogam de permanecer, despojando-se de vestes medievais que outros ainda se ufanam de trajar, partilhando vivenças e costumes, o Abel partilhou o Encontro com uma alegria desmedida e uma vontade inaudita. Para além de ser o representante da “Troika” na ilha Terceira, o Abel cantou connosco, passeou pelas ruas de Angra, visitou o Seminário, sentou-se à mesa connosco e, sobretudo, ajudou-nos a recordar “estórias” passadas, memórias vivas, ditos, palavras, expressões, tornando ainda mais vivo aquele passado de que todos nos orgulhamos de ter pertencido e até nos envaidecemos de ser nosso. Por tudo isto o Abel tornou-se mais um dos “Senhores” do Encontro.