PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
IMPOSIÇÃO DO ESCAPULÁRIO DA SENHORA DO CARMO
Nossa Senhora do Carmo é um título ou invocação da Igreja Católica consagrado à Virgem Maria. Este título apareceu com o propósito de relembrar o convento construído em honra da Santíssima Virgem Maria nos primeiros séculos do Cristianismo, no Monte Carmelo, em Israel. A principal característica desta invocação mariana é apresentar o Escapulário do Carmo, símbolo que representa o acto de se estar, permanentemente, ao serviço de Deus e que, em contrapartida, acarreta muitas indulgências, graças e outros benefícios espirituais a quem o traz ao peito ou vestido, no caso da Ordem Maior.
Na Fajã Grande, sobretudo no lugar da Ponta, havia grande devoção à Senhora do Carmo e era costume muitas pessoas usarem o escapulário, sobretudo mulheres e crianças, pois acreditava-se que Nossa Senhora acompanharia e livraria de males e perigos quem o utilizasse. Na igreja paroquial, num nicho lateral do altar do Coração de Jesus ou do lado da Epístola, havia uma pequena imagem da Senhora do Carmo. Mas a grande e mais conhecida e venerada imagem da Virgem sob essa invocação, não só na freguesia mas em toda a ilha das Flores, encontrava-se na igreja da Ponta da qual era a Padroeira. A sua festa litúrgica era celebrada no dia dezasseis de Julho, mesmo que este não coincidisse com um domingo, transformando, assim, esse dia num verdadeiro dia Santo na freguesia. Mais tarde a festa passou a realizar-se no domingo de Julho mais próximo daquele dia.
Era no dia da festa, antes da missa do dia que, em cerimónia solene, presidida pelo pároco, com mandato canónico para tal, que se procedia à imposição do escapulário, constituído por duas pequenas tiras de pano castanho, uns com a imagem em plástico da Senhora do Carmo, presas uma à outra com dois elásticos que devíamos colocar ao pescoço de forma visível apenas no dia da festa e nos restantes dias por debaixo da roupa. Uma tira devia ser colocada sobre o peito e a outra nas costas. Isto no caso de se aderir apenas à Ordem Menor, porque mulheres havia que, aderindo à Ordem Maior, teriam que andar vestidas com um vestido castanho sobre o qual usavam o escapulário, também imposto numa cerimónia ainda mais solene. Neste caso, as tiras, também de cor castanha, eram muito maiores cobrindo-lhes o corpo quase por completo como se fosse um avental ou uma bata aberta nos lados. Na Ponta havia muitas mulheres que se vestiam assim, permanentemente, fruto de promessas que haviam feito.
O Escapulário, como era explicado pelo pároco durante a cerimónia de imposição, era um sinal de aliança com a Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa mãe e exprimia a consagração a Ela dos que aceitavam usá-lo em Seu louvor.
Afirmava o pároco nas prédicas dos dias de tríduo preparatório, que, poucos anos antes, em 1951, por ocasião da celebração do 700º aniversário da entrega do Escapulário, o Papa Pio XII escrevera aos Superiores Gerais das duas Ordens carmelitas, afirmando que: "… o Santo Escapulário, que pode ser chamado de Hábito ou Traje de Maria, é um sinal e penhor de protecção da Mãe de Deus". Depois concluía que o uso do Escapulário do Carmo, havia sido recomendado por vários Papas e que muitos Santos o haviam utilizado durante toda a sua vida.
E nós inocentes e crédulas criancinhas, logo após a idade da\razão, lá íamos, à festa da Senhora do Carmo da Ponta, em romaria, receber o escapulário ou usá-lo, com maior solenidade naquele sai, colocando-o, ostensivamente, sobre a roupa.
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O SENHOR JOÃO FAGUNDES
O Senhor João Fagundes morava no Cimo da Assomada, precisamente na última casa, no Caminho que dava para as hortas, terras de mato e Lavadouros. Na verdade, a rua da Assomada, a primeira que demandava quem vinha dos lados da Fajãzinha, ou seja do Sul da ilha, tinha a forma de um ípsilon, isto é, no seu cimo, ramificava-se em duas vielas ou caminhos. À direita de quem a subia, a Assomada como que continuava através do Caminho da Missa, com destino à Eira da Quada, à Fajãzinha e às outras freguesias e vilas da ilha. Mas se, pelo contrário, voltássemos à esquerda, a dita rua prolongava-se pelo início do caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para O Delgado e Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho.
Ora era precisamente deste lado que se situava a casa do Senhor João Fagundes, a última de quem subia e a primeira de quem descia este caminho, um dos mais importantes e mais frequentados da freguesia. Para aqueles lados se situavam as melhores relvas, as mais férteis terras de cultivo do Vale da Vaca, as excelentes hortas do Delgado e Cabaceira, para não referir o lugar da Cuada, na altura habitado por cerca de trinta pessoas. Essa a razão pela qual passavam ali, diariamente dezenas e dezenas de pessoas e animais, embora a casa ficasse com a frente voltada para o lado contrário ao caminho. A casa situava-se muito próximo da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água.
O senhor João Fagundes, um homem já de provecta idade, com o nome rigorosamente igual ao de meu progenitor, razão pela qual meu pai, por ser mais novo, assinava o seu nome sempre seguido de Júnior. Assim não havia confusão, não tanto pelas cartas que estas traziam remetente, mas sobretudo pelos avisos amarelos, anunciadores das encomendas da América ou daqueles que eram para pagar dízimas e impostos e que não continham remetente. O senhor João Fagundes era um homem muito trabalhador e respeitado na freguesia, tendo exercido alguns cargos de responsabilidade e era irmão da mãe do José Nascimento e de minha tia Adelina, casada com um irmão de meu pai. Muito sério nos seus contratos, honesto nas suas atitudes, não se metendo na vida de uns e de outros. Raramente se vinha sentar à Praça, porque a sua casa ficava muito distante do centro da freguesia. Imagine-se o que seria percorrer toda aquela distância de noite, sem iluminação nas ruas. Por isso e pelo seu feitio e temperamento, o Senhor João Fagundes era um homem muito caseiro. A sua postura, digna, nobre e séria, impunha respeito. A sua bondade e simplicidade auferiam-lhe o apreço, a consideração e a estima de todos, Vivia com a esposa e os dois filhos mais novos, dado que os restantes já haviam casado. O João ingressou na Guarda-Fiscal, deslocando-se, mais tarde, para Santa Cruz, juntamente com a mulher, enquanto a filha casou e partiu para o Canadá.
Dada a situação da casa, muitos homens que vinham das terras, cansados, carregados com molhos e cheios de sede, paravam ali para pedir água. Assim, o largo que existia junto ao palheiro que ficava ao lado da casa como que se transformara numa espécie de descansadouro.
Com a abertura da estrada, no final da década de cinquenta, a frente da casa ficou voltada para esta e, por isso o acesso passou a fazer-se pela nova estrada.
É esta casa, a primeira da freguesia a ser visitada pela coroa do Senhor Espírito Santo, por altura da distribuição da carne, a primeira em que íamos cantar os Anos Bons e os Reis, que actualmente está à venda
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MENINOS DE TODAS AS CORES
(UM CONTO DE LUÍSA DUCLA SOARES)
Era uma vez um menino branco, chamado Miguel, que vivia numa terra onde todos os meninos eram brancos e, por isso, ele pensava que todos os meninos do mundo eram brancos. Brincavam todos juntos, faziam desenhos de meninos brancos, e, juntamente com os todos os meninos brancos, o Miguel dizia:
É bom ser branco
Porque branco é o açúcar, que é tão doce
Porque branco é o leite, que é tão saboroso
Porque branca é a neve, que é tão linda e fofinha.
Mas certo dia, os pais do Miguel resolveram viajar e o Miguel partiu, com eles, num grande num barco. A viagem demorou muitos dias, porque os barcos andam devagar, mas o Miguel, finalmente, chegou a uma terra onde, ficou muito admirado porque todos os meninos eram todos pretos.
Passado pouco tempo, fez-se amigo de um menino que era caçador e tinha um nome muito estranho, chamava-se Lumumba. Ele e o Miguel juntaram-se a todos os outros meninos pretos, brincavam todos juntos, faziam desenhos de meninos pretos, e, juntamente com todos aqueles meninos pretos o Miguel dizia:
Afinal, é bom ser preto
Porque preta é a noite, durante a qual nós dormimos tranquilamente,
Porque pretas são as azeitonas que são tão saborosas,
E pretas são as estradas onde andam os carros.
O Miguel, passado algum tempo fez uma outra viagem de camioneta e chegou uma outra terra onde todos os meninos eram castanhos. Tornou-se amigo de um menino que fazia corridas de camelos e se chamava Ali-Babá. Ele e o Miguel juntaram-se a todos os outros meninos castanhos, brincavam todos juntos, faziam desenhos de meninos castanhos, e, juntamente com todos o Miguel dizia:
É bom ser castanho
Porque é castanha a terra do chão que nos dá as ervas e as plantas,
Porque castanhos são os troncos das árvores que nos dão a madeira,
Porque castanho é o chocolate que é tão doce…
O menino branco ainda fez uma outra viagem de avião, e só parou numa terra onde todos os meninos eram vermelhos e estavam a brincar aos índios. Tornou-se amigo de um menino chamado Pena de Águia e com ele também aprendeu a brincar aos índios. Então o Pena de Águia e o Miguel juntaram-se a todos os outros meninos vermelhos, brincavam todos juntos, faziam desenhos de meninos vermelhos, e, juntamente com eles, o Miguel dizia:
É bom ser vermelho
Porque vermelhas são as fogueiras que são tão quentinhas
Porque vermelhas são as cerejas que são tão apetitosas
E vermelho é o sangue que dá vida ao nosso corpo.
Finalmente o Miguel fez uma viagem de barco, de camioneta e depois de avião para uma terra muito, muito distante onde todos os meninos eram amarelos. Tornou-se amigo de um menina chamada Flor de Lotus. Ela e o Miguel juntaram-se a todos os outros meninos amarelos, brincavam todos juntos, faziam desenhos de meninos amarelos, e, juntamente com todos o Miguel dizia:
É bom ser amarelo
porque é amarelo o Sol que nos dá a luz e o calor,
porque é amarelo o girassol que é uma linda flor
e porque é amarela a areia da praia, para onde vamos tomar banho nas férias.
Depois, quando o Miguel voltou à sua terra, a terra onde todos os meninos eram brancos, brincava com todos os seus amigos que eram brancos e todos juntos, faziam desenhos de meninos brancos, pretos, castanhos, vermelhos e amarelos e, juntamente com os todos os meninos brancos, o Miguel dizia:
É bom ser branco como o açúcar
É bom ser preto como as azeitonas
É bom ser castanho como o chocolate,
É bom ser vermelho como as cerejas
É bom ser amarelo como o Sol.
E, a partir desse dia, na escolinha do Miguel, todos os meninos brancos pintavam em folhas brancas desenhos de meninos brancos, pretos, castanhos, vermelhos e amarelos, todos muito felizes e sorridentes.
Luísa Ducla Soares (adaptado)