PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
7º DIA – FARTURA DE PEIXE E DE TEMPORAL
De manhã fartura de peixe. À noite um tremendo e assustador temporal!
São Caetano, desde sempre se encostou ao mar. Rodeado de ribeiras, grotões, ladeiras, maroiços e veredas escabrosas, tudo parece que se dirige e escoa para o oceano, nele encontrando sustento e fartura. Outrora fonte de alimento de muitas famílias, a pesca, quer a de pedra quer a de alto mar, hoje foi desporto. Manhã de Pesca Desportiva. Impressionante a quantidade e variedade de peixe pescado pelos vários concorrentes: congros, moreias, raias, gorazes, bocas negras, sargos, garoupas, rocazes, pargos, etc. etc. Uns transformaram-se num gigantesco caldo, outros foram assados na brasa. Um primor! E o povo acorreu em romaria ao Porto, para saborear tão apreciado cardápio…
Mas a chuva e o mau tempo não desprega. Continua a ameaçar. Apenas uma ou outra aberta durante a tarde.
Agora à noitinha, o pior havia de acontecer. Um vento fortíssimo caiu e continua a cair sobre casas e pessoas, soprando com grande intensidade, sibilando como se estivesse louco. Nuvens negras pairam sobre a montanha, para os lados de São Mateus. Meus Deus! Vem aí borrasca e da grossa…
O vento sopra cada vez mais. Até assobia e leva tudo pelos ares. Que susto! Que nervos” Em véspera de viagem, não poderia acontecer pior.
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LAMÚRIAS
O Justino e o Alípio chegaram a casa muito cansados, mas, cmo sempre, dispostos a queixarem-se ao pais, das estroinices do rebento mais novo.. Foice aos ombros, cordas a tiracolo e bordão na mão, foi o Alípio a anunciar:
- Pai, a Cabaceira ficou pronta, os feitos estão todos cortados.
- E também ceifaram a canarroca da belga do lado do Caminho Velho como vos mandei?
Agora foi o Justino, sempre mais atrasado, a esclarecer;
- Também ficou toda cortada. Ficou tudo pronto como pai mandou. E ainda cortámos umas faeiras que estavam lá muito bastas, por entre os inhames… p’ra lenha.
- E separaram a canarroca dos feitos? É que o outro dia, na Cancelinha, vocês misturaram tudo e depois foi o cabo dos trabalhos… Não viram o vosso irmão?
-Ele ainda não chegou do Outeiro Grande, de levar as vacas do Luís? - Insistiu o Justino.
- Claro que não chegou. Estás a vê-lo? Ele vai e vem é a brincar. Agora tem a mania de levar uma aguilhada e diz que vai tocando as suas vacas. Fala com elas e tudo, o palerma. – acrescentava o Justino ao mesmo tempo que tira um bocado de pão de cima da mesa, comendo-o com sofreguidão..
Logo a irmã, batendo-lhe na mão, ordenava, recriminando:
- Está quieto! Tens mais pressa do que os outros?
- Não mandas em mim! – ripostava o Alípio, comendo o pão e continuando o chorrilho de queixas contra o irmão - O José Coutinho contou-me que o viu o outro dia: quando vem a descer o Covão, faz de conta que vem a tocar a Moirata e o Damasco, encangados, puxando um carro de incensos. Depois, de vez em quando para e põe-se de cócoras, a fazer de conta que está apertar ou alargar, os parafusos dos queicões. Parece um toleirão!
- É mesmo tolo! – acrescentava o Justino. - Precisava era duns toitições bem dados. Quando não vai ao Outeiro Grande é só brincar: é com a ovelha, é com vacas de madeira, é de baixo do estaleiro a fazer que está a lavrar…. Passa a vida a brincar e nós…
E como se isso não bastasse para encher os ouvidos do progenitor a própria irmã atirava mais lenha para a fogueira.
- E está sempre a fugir para ir brincar com os amigos à pesca da baleia, ao pai-velho e sei lá o quê… O que sei é que nunca pára em casa…
O pai, em vez de se revoltar, bem os tentava acalmar;
- Ele ainda é uma criança. É muito mais novo do que vocês.
E logo o Justino:
-É muito novo mas já anda a fazer das suas… O Paulino já me disse que ele lhe abriu o portal da relva da Ladeira, para passar com a ovelha e depois pôs-se a andar e não o tapou.
- E o Delfim diz que ele lhe atira pedras às ovelhas. E elas têm crias…
-E demora uma manhã para ir levar as vacas e uma tarde para as ir buscar. E eu é que tenho que ir buscar a água à fonte, acartar lenha e deitar comida às galinhas… Fazer tudo…
- Ele podia bem pegar numa foice e ir connosco… Podia ir ajudar-nos a ceifar feitos. Ou pelo menos ir atrás de nós fazendo as mancheias. A gente a ceifar e ele a fazer as mancheias era muito mais rápido.
- E podia andar mais depressa… Meia hora dá para ir e vir ao Outeiro Grande…
- E o primo Luís diz que ele sobe o Covão agarrado ao rabo das vacas e a bater-lhes desalmadamente.
- Elas andam que se fartam. Não há vacas na Fajã que subam o Covão tão depressa como as do primo Luís e foi ele que as pôs assim. E a Trigueira deu leite há bem pouco tempo.
Por fim foi a Amélia que suplicou;
- Pai tem que por cobro nisto!... Venham para a mesa que o pão e o queijo já estão partidos. Não vale a pena esperar por ele. Quem não está não come.
E sentaram-se à mesa, saboreando uma boa sopa de feijão, com um pequeno naco de toucinho.
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AS PALAVRAS
(POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE)
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
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6º DIA - LEVANTAR UVA
A vinha do Cabeço hoje, mais se assemelha a um torrão sagrado, ungido com o sereno da madrugada, um pedaço de chão verde salpicado e tingido de vermelho, onde proliferam dezenas e dezenas de cachos de uvas, muitos deles à espera de uma mão amiga, que os levante, que os salve, que os suspenda e retire do charco onde jazem e onde, muito provavelmente, estão condenados a serem destruídos ou apodrecer. A vinha do Cabeço, hoje de manhã, parecia a uma espécie de cratera lávica, a ejacular do seu seio o intenso o perfume das uvas, misturado sabor acre das maçãs, uma leiva domesticada onde se confundem vides, mondas e uma ou outra macieira. A vinha do Cabeço assemelha-se a uma enorme navio, com a proa voltada para a montanha, a carregar o castanho dos troncos arquejados das vides, o verde saltitante das folhas o roxo hesitante dos cachos e, lá no cimo, naquela espécie de castelo da proa, milho, feijão, batata-doce, à mistura com silvados, beldroegas, milhãs, junquilhos, ortigas e muitas outras daninhas. Nas paredes vizinhas alguns braços de caseiras atrevidas e abóboras penduradas, a simularem as bóias de encosto ao cais.
Esta vinha, metamorfoseada em torrão, em leiva, em cratera ou até em navio atrai, convoca e até pede a insolvência de tão famigerada conjugação, tornando-se numa vinha real, cercada de paredes construídas de pedras lávicas, repletas de vides, cujos cachos de uva, levantar. Na verdade, as videiras, aqui no Pico, requerem, exigem, obrigam, intimam e até ordenam que se lhes salvem os cachos rastejantes. Levantar uva é com ser bombeiro, é salvar quem jaz amordaçado, espalhado pelo chão térreo, encharcado de ervas, com a própria sobrevivência em perigo, a roçar o infortúnio, a cercear a sustentabilidade da vindima. Mas é uma operação delicada, quase cirúrgica, como que feita a bisturi, Impõe-se, onde existem cachos despejados sobre o solo, pegar nos ramos rasteiros, com cuidado, a fim de não desfazer a forma, o feitio e a existência dos pobres cachos e, por outro, ao caminhar por entre os vinhedos, não calcar os outros cachos que dormem sossegados de baixo das folhas esverdeadas, a protegerem-se do Sol. Levantado o ramo, coloca-se uma pequena pedra de baixo, de forma a que os cachos fiquem como que suspensos, sem rastejar o solo. Caminhando pela vinha, detectam-se os cachos caídos, mas enquanto se vai retirar a pedra da parede lateral perde-lhe o rasto… Há que inventar uma estratégia para resolver este imbróglio. A mais simples e prática é adquirir um ramo de incenso e deixá-lo a assinalar o local da anormalidade detectada. Resulta! Depois ali ficarão os cachos ora levantados juntamente com os outros, a amadurecer, à espera da safra que lhes há-de chegar, imperiosamente, dentro de três semanas.
Mas a manhã parecia que havia ensandecido. Nascia possessa, senhora duma bruma friorenta, escura, desagradável, com que a forçar o reconforto dos lençóis. Tudo encharcado de chereno muito húmido e contagiante. Havia que esperar, para que o Sol, aparecendo lá no alto, por de trás da montanha tudo secasse. E o astro-rei não se fez esperar e veio, na sua enorme luminosidade. Em breve tudo secou. O Sol radiante, bonançoso, contrariamente ao dos dias anteriores que parecia que havia descambado por completo para os lados do Faial, deixando São Caetano emerso num espectral e escuro sossego. Neste Pico e em pleno mês de Agosto, a regra tem sido a de acordar envolvido por brumas matinais, inicialmente húmidas e escuras, mas que ao longo das manhãs se vão diluindo e desanuviando, embora lentamente, a desfazerem-se como se fosse um novelo de lã que se vai desenrolando, muito devagar, até ao fim.
E quando o Sol, arrependido de tão inusitada graçola, regressou ao seu posto, encastoando-se nos rebordos da montanha, já as vides ardiam em resfolgo, acariciadas por mãos que, embora inexperientes, lá foram colocando, pedra aqui, pedra acolá, a sustentarem a desejada sustentabilidade dos cachos hesitantes. Uma hora e um quarto e havia-se chegado com o primeiro eito ao cimo, ao tal castelo da proa, outrora degredo, berçário de ondas e cana roca, hoje viveiro de batatais verdejantes e promissoras. Significavametada da tarefa cumprida. Há que a acabar, iniciar, pelo lado leste ou da vila, o resto do terreno. Consegue-se mais um pouco mas o desânimo é mais forte e tentador. O cansaço também já é muito e as costas doem. Decisão tomada: o resto fica paa a tardinha, quando Sol abrandar… Não há que preocupar porque a maioria das tarefas programadas para esses dias já estão cumpridas: apanhar as cebolas na Ribeira, cavar a terra e semear feijão - a semente que estava no porta-bagagem do carro era de feijão-verde -, mondar os caculos da batata-doce e sachar o milho. Tarefas árduas, ignóbeis, cansativas, a que se acrescentou a saga dos tomates, alfaces e até um repolho para a sopa. Quase hora e meia, vergado ali no duro, muito tempo a Sol, grande esforço e o corpo num Cristo. A salvação consubstanciou-se num bom duche na adega, que o mar hoje não permite grandes banhos. Mas no corpo ficam as marcas indeléveis de um inócuo esforço: pernas, braços, costas, mãos… Tudo dói!
São Mateus foi o destino no início da tarde. Uma miniatura do Mucifal Havia que descansar e recuperar um pouco, embora sem a habitual sesta. À tarde consumou-se a tarefa de levantar a uva. Menos morosa. O espaço era menor e, aparentemente com menos uva para levantar. Mas mais algumas tarefas foram compridas, como aquela do Coliveda do banheiro, com a vantagem de, ao chegar ao Cais, para tomar uma banhoca na Poça e encontrar o Delfim que, generosamente, interrompe a hora de banha, para vir colocar. Boa notícia, esta, a da recuperação o banheiro. Pior é a água quente que continua em falta.
Finalmente, fez-se escuro e foi o fim do sexto dia e o início da sétima noite que, a julgar pelos astros, parece que vai ser de chuva, assim como o dia de amanhã. A ver vamos.