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MUDANÇA

Terça-feira, 02.09.14

Entrou-me na sala já o ano lectivo teria começado há uns bons quinze dias.

- Não gosto da escola. Não gosto da escola. – Estrebuchou por entre dentes

Sem se dar conta do feito armava-se, assim, em objectora de consciência à escola, ao ensino e a todo o tipo de aprendizagem. Simplesmente incrível e a tarefa de desfazer este muro de vergonha e casmurrice.

Aproximei-me e fui dizemdo comalguma tranquilidade. Que sim senhora. Que tinha toda a razão, estava no seu direito de não gostar da escola. Mas a contrária também era verdadeira. A escola também não gostava dela. Sem dar grande importância às suas convictas opções. Por fim. apenas murmurei;

- Mas ainda se vão tornar grandes amigas.

Ela arregalou-me os olhos, a indicar que não percebera nada mas que também não estava interessada em perceber o que quer que fosse.

De seguida, agarrou dum saco que trazia, emborcou nele um caderno que lhe pus na frente, debruçou-se sobre a carteira e, aparentemente, adormeceu, alheada de tudo e de todos.

Na sala apenas eu seguia, com atenção, aquele pedaço de gente inerte e inactivo. Para os outros era como se estivesse ali uma estátua de gesso, inerte e inactiva. Permaneceu assim durante toda a aula.

No fim e depois dos mais apressados saírem, meti conversa. Nada. Permanecia inerte. Quando terminei a provocação, levantou-se e saiu da sala como entrara, repetindo vezes sem conta a mesma frase: - “Não gosto da escola.”

No recreio ainda lhe apanhei uma dica:

- Meu pai trabalha de baixo da terra.

(Só mais tarde percebi que o pai trabalhava no metropolitano do Porto.)

Depois outra, mais esclarecedora:

- Quero ser doméstica como a minha mãe. Não preciso de vir para a escola. - Depois num tom colérico – Eu odeio os professores. Não gosto da escola. Não preciso da escola para nada. Quero fazer como a minha irmã. Ela saiu de casa e casou cedo por causa do meu pai. Ele é teso da verga. Quem manda lá em casa é ele. Se não lhe obedecemos… Pimba! Tareia p’ra burro.

Percebi do que necessitava. De quem lhe desse o carinho e a amizade que lhe faltava em casa,

E ano lectivo lá foi decorrendo. Ao princípio um ou outro dia de aulas, intercalado com dias e dias de faltas. Foi chamada a mãe. Veio à quinta convocatória da Directora de Turma.

- Preciso da cachopa e se preciso da cachopa a cachopa não pode vir à escola. Ela nem gosta da escola.

Melhorou. Algum tempo depois, veio o pai:

- Vou meter a cachopa na linha. Vai saber que tem pai…

- O demónio em pessoa – comentava a senhora Otília da secretaria. - O homem não veio por causa da filha. Veio buscar o cheque dos livros… que se calhar nem comprou, porque a pequena anda sempre com a sacola vazia. E os pais sabem, mas não se importam.

Depois do Natal melhorou muito e a seguir à Pascoa, entrava-me na sala com um sorriso rasgado, de orelha a orelha. Fazia o que queria e o que lhe apetecia, Não a recriminava nem reprendia. Apenas lhe dava o que ela mais necessitava: amizade e carinho, sobretudo carinho, porque é um crime deixar viver uma criança sem carinho. É verdade que não aprendeu rigorosamente nada, mas isso, decerto, não era o mais importante.

No fim do ano, na última aula, aproximou-se e, a muito a medo, disse-me:

- Para o ano quero vir outra vez para a escola, mas só se for para a sua sala.

 

 

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publicado por picodavigia2 às 06:53





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