PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O INSUCESSO
"O insucesso é apenas uma oportunidade para recomeçar de novo com mais inteligência."
Henry Ford
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AMIGOS
O pai do Júlio, António Fernandes, era o maior amigo do senhor Resende, um lisboeta que, evadido da capital, há muito se fixara na ilha das Flores, com residência permanente, primeiro em Santa Cruz e agora em Ponta Delgada, na companhia duma antiga empregada, Ana Madruga, que, depois da morte da consorte, adotara como companheira. Muito doente dos rins, acicatado por dores fortíssimas, fora operar-se a Ponta Delgada regressando às Flores, permanecendo, no entanto, em prolongadaem convalescença.
Logo que António Fernandes soube que o amigo voltara de São Miguel, no Carvalho de Março, apressou-se a visitá-lo, atravessando a ilha de lés-a-lés, levando consigo um dos filhos mais novos, o Júlio que os mais andavam na safra da ceifa dos fetos.
António Fernandes e o filho foram recebidos à porta, por Dona Ana, a quem cumprimentaram, já dentro de casa:
- Como está Dona Ana? Dá-se licença?
- Façam favor. Entre, entre. Como está, Senhor António? Ah! E traz um menino consigo!
Mal os ouviu, Resendes, tentando levantar-se, gritou de lá de dentro:
- Ó home essa! É preciso bater à porta e pedir licença? Esta casa é tua, António!... – De seguida abraçando o amigo - Então como estás, homem?
- Como vai essa saúde, Resendes?
- Já esteve pior, muito pior, mas ainda não está bem. Esta viagem no Carvalho custou-me muito, quase me matou. E da Fazenda Santa Cruz para aqui, como não há estradas, nem carros… Olha, tive que vir de palanca. Esta terra não progride. Nunca mais fazem estradas… Admite-se que ainda não haja uma estrada a ligar a freguesia mais importante do concelho de Santa Cruz à vila?! E, como tu sabes melhor do que eu, no concelho das Lajes ainda é pior: quatro das sete freguesias ainda não tem estrada que as ligue à via. Vocês lã na Fajã querem tratar qualquer coisa na vila e têm que ir a pé! Isto não se admite…
Depois de parar um pouco como que para tomar fôlego, retorcendo as pontas do bigode, Resendes prosseguiu
- Bem, mas ainda mal consigo andar, meu amigo. Foi uma operação muito grande! Já me arrependi de ter vindo no último Carvalho! Devia ter ficado mais algum tempo em S. Miguel – e continuando a retorcer as pontas do bigode - Só que se o fizesse teria que lá ficar mais um mês. Não se admite que o navio só venha uma vez por mês às Flores. De duas uma: ou ficava mais um mês em São Miguel, gastando uma fortuna ou vinha-me embora para as Flores, fazendo um grande sacrifício e correndo grandes riscos. Mas vá lá que correu tudo bem e estou a ficar melhor. E voltando-se para o Júlio que permanecia mudo, sentado num canto, encantado com a imponente figura daquele ancião – Então trouxeste um dos pequenos!? E este qual é? É o mais velho? Como estás meu rapaz? Dá cá um abraço.
O pai do Júlio apressou-se a esclarecer:
- Este é o mais novo. – E voltando para o filho – Cumprimenta o Senhor Resendes, um grande amigo de teu pai. – E lá em Ponta Delgada, como foi?
- Ó homem tu também já foste, à faca. Sabes como é… Eles são uns carniceiros! Nos primeiros dias, é esperar, esperar, em casa das Senhoras Arrudas, na rua do Amorim, que é o hotel das Flores e do Corvo. Aquilo está sempre cheio de gente das Flores e do Corvo, uns à espera da faca outros de embarcar para a América. Depois lá consegui a consulta no Dr Horta e Câmara. Felizmente ele marcou logo a operação e internou-me imediatamente no hospital. Olha, ali a Ana é que gostou de estar em casa das Arrudas Ficou a saber a vida de toda a gente e os mexericos de toda a cidade.
- Credo, que exagero. – Retorquiu Dona Ana, envergonhada. - Mas olha que eu nunca perguntei nada a ninguém. Só ouvia o que me diziam. E olhem que não era pouco! Aquilo é que é pouca vergonha, naquela cidade. São lugares muito grandes. Se aqui já é o que se vê, o que não seria lá. Este mundo está perdido! Até já dizem que é o terceiro segredo de Fátima que vai ser revelado.
- Ó António, fala-me de ti, homem. Que grande desgraça te aconteceu! E eu que não pude ir à Fajã para te dar um abraço. Naquela altura já estava muito doente… Mas conta-me, como foi que ela morreu?
- Foi uma desgraça. Foi uma grande desgraça!
E dona Ana a meter-se na conversa:
- E ela ainda era muito nova, não era Sr António? E é verdade que estava à espera doutro filho? Coitadinha. Deus dê paz à sua alma.
- Ó mulher, ouve e cala-te.
- Tinha 41 e estava à espera de um filho… estava… Sabes como ela era Resendes. Não parava, nem em casa, nem nas terras. Sempre a trabalhar, sempre a arrumar, sempre a mexer. Ajudava-me muito! E agora que a Amélia, a mais velha, já faz muita coisa em casa ela ajudava-me muito nas terras. Era uma mulher de trabalho! Foi tratar dumas galinhas e um sanababicha dum cricri deu-lhe um bicada numa perna, por azar, numa variz. Depois aquilo nunca mais curava… Fui procurar o senhor doutor… Corri a ilha toda atrás dele… Lá mandou que ela fizesse análises… Ela tinha a albumina muito alta, e ele pediu para a internar no hospital da Vila. Levei-a imediatamente, com muito sacrifício, porque ela já não conseguia andar pelo seu pé. Tivemos que subir a rocha dos Bredos com ela às costas, de palanca. Foi terrível! E, para desgraça minha, já não voltou a sair do hospital….
- Esse sanabagana desse doutor é que é o responsável por muitas mortes nesta ilha. Passa a vida a caçar e em jantaradas. Procura-se por toda a ilha e nunca se encontra. E quando se encontra, só sabe receitar leite de cabra. Mas a culpa não é só dele. É deste governo republicano, dos republicanos que desde o regicídio governam este país. Isto não se admite. O governo não olha por nós. Uma ilha com mais de dez mil pessoas tem só um médico e um hospital com meia dúzia de camas! Um hospital que é uma vergonha! A minha sorte foi nem lá entrar. Esta ilha está totalmente abandonada e desprotegida, homem. Isto é uma vergonha!... As pessoas morrem aqui com uma simples dor de cabeça, porque não há um comprimido para lhes dar. E ninguém faz nada para mudar isto! Eu bem falo e protesto, mas ninguém me ouve. Acusam-me de monárquico, como se fosse um crime desejar outra vez um rei para Portugal. E agora António, como é que vais organizar a tua vida, homem?
- Isso é que me preocupa e muito. Mas tenho que me amanhar sozinho. Os dois mais velhos já me ajudam muito, embora um deles ainda ande na escola, na 3ª classe. Mas eu não o tiro da escola por nada deste mundo! Eles a bem dizer já fazem tudo, menos lavrar com o arado de ferro. E a Amélia, a mais velha, foi muito habituada pela mãe na vida da casa. Já faz tudo sozinha. Coze pão no forno, coze bolo, acarta água, arruma a casa, faz a comida e vai lavar à ribeira. Olha até já remenda a roupa. Este é o meu companheiro! Acompanha-me sempre para todos os lados. Mas custa-me muito vê-los penar assim… e depois sempre a lembrarem-se da mãe… Custa muito, custa! Tudo a faz lembrar. Uma mãe faz muita falta numa casa…
- Se faz Antoninho, se faz. – Repetia dona Ana, limpando uma lágrima solitária com a ponta do avental. Olhe perdi a minha já era uma rapariga e a falta que ela me fez… Só Deus e eu o sabemos. Mas o Antoninho é muito novo. Não vai faltar mulher que o queira! Olhe o José da Grota, aqui de Ponta Delgada… Há pouco mais de um mês que a mulher lhe morreu e já anda com a mais velha da Ana do Outeiro. Dizem que nas terras aí para cima é uma vergonha! Louvado seja o Sagrado Coração de Jesus. Para sempre seja louvado.
- Ana, tem tento na língua, não comeces…
- Eu não ponho famas nem aleives a ninguém. Só digo o que oiço dizer.
- Dona Ana, com seis filhos para criar, com as terras para trabalhar e o gado para tratar… Não acha que tenho sarna bastante para me coçar?