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CONDENAÇÕES

Sexta-feira, 14.11.14

Era uma cozinha velha, esconsa e, terrivelmente, escura. No centro havia uma mesa grande com alguns bancos ao redor. Sobre a mesa havia pratos com os rebordos partidos, pão de milho e um bocado de queijo. Pendente numa trave, uma pequena candeia apagada, a abarrotar de gordura nos bordos. No lar panelas velhas e tisnadas, achas de lenha e garranchos à espera de lume. No chão um caixote a servir de parque a um bebé, o balde do porco e um gato a ronronar. A cozinha não continha mais nenhuma coisa ou objeto. Havia uma pessoa, uma menina jovem e frágil. Empunhando uma vassoura, varria e cantava:

“No alto daquela serra, no alto daquela serra,

Está um lenço, está um lenço a abanar.

Está dizendo: ”Viva! Viva!” Está dizendo: ”Viva! Viva!”

A quem o queira apanhar, a quem o queira apanhar.

No alto daquela serra, no alto daquela serra,

Está um lenço, está um lenço a abanar.

Está dizendo: ”Morra! Morra!” Está dizendo: ”Morra! Morra!”

Morra quem não o souber apanhar…

Sem que ela o esperasse interrompe-a o pai. Entrando de rompante, interroga:

- Amélia, viste o Álvaro? Sabes para onde está?

- Então meu pai não sabe?! É a mesma coisa todos os dias… Vai levar as vacas do primo Luís ao Outeiro Grande e fica por lá a manhã toda… Meu pai é que fez essas combinações...

- Quais combinações, qual carapuça! Não sabes a nossa vida, filha? Como é que eu posso pagar ao Luís para cortar o cabelo a teus irmãos e a mim? Sabes muito bem que o dinheiro que ia gastar por mês para cortar o cabelo a todos dá p’ro sabão, p’ro petróleo e, de vez em quando, comprar um bocadinho de açúcar. E nem fui eu que pedi ao primo Luís… Foi ele que me fez a proposta: se um dos pequenos lhe fosse levar as vacas todos os dias, ele cortava-nos o cabelo de graça e ainda nos soldava as latas do leite quando rompessem. Não achas um bom negócio? É claro que não ia deixar ir o Justino ou o Alípio, que me ajudam muito nas terras e me iam fazer muita falta. Além disso, o Justino tem que ir para a escola… Só podia ser o Álvaro. Só que aquele destróia leva horas para lá ir e vir… E eu aqui feito parvo à espera do sarigaito! E eu bem que precisava dele…

A miúda, sem levantar os olhos do chão e continuando a varrer, contrariava:

 - Meu pai é que tem a culpa toda. Deixa-o fazer tudo o que ele quer e não lhe diz nada. Eu bem precisava dele para me acarretar água, deitar comida às galinhas e tomar conta do Luís, quando ele vem para cá. Só que ele demora horas! E quando não vai ao Outeiro Grande é só brincar com a ovelha… E não sei se meu pai sabe, - (parando e dirigindo-se convicta pata o pai) - o pior são as queixas que têm vindo fazer dele: a Júlia Beliza já me veio dizer que qualquer dia vem falar com pai porque ele lhe deita as paredes abaixo e ainda o pior é que a Elisa Garcia já foi fazer queixa a avó porque ele entrou na quinta dela para apanhar maçãs. E olhe que já o vi chegar a casa com maçãs nas algibeiras das calças e nas mangas da froca… E o atrevido não me diz onde as apanhou. Eu bem aperto com ele e o belisco… Mas ele… Nada.

O pai ouviu-a, atentamente, calando-se por alguns segundos. Por fim, sentando-se à mesa, concluiu:

- Também há pessoas que se queixam por tudo e por nada… Tenho que o repreender, mas não vai ser hoje. Preciso é que ele vá comigo a Ponta Delgada, esta tarde.

- O quê!?O A Ponta Delgada?! - E arrumando a vassoura, num canto da cozinha, prosseguiu - Meu pai não está bom do juízo! Vai para Ponta Delgada a estas horas? Com o Álvaro?

Entram o Justino e o Alípio, irmãos mais velhos. Vêm cansados, trazem foices aos ombros. O Alípio foi o primeiro a anunciar, em tom triunfante:

- Pai, a Cabaceira ficou pronta, os feitos estão todos cortados.

- E também ceifaram a cana roca da belga do lado do Caminho Velho como vos mandei?

Foi a vez do Justino

- Também ficou toda cortada. Ficou tudo pronto como pai mandou. E ainda cortámos umas faeiras que estavam lá muito bastas, por entre os inhames… p’ra lenha.

- E separaram a cana roca dos feitos? É que o outro dia, na Cancelinha, vocês misturaram tudo e depois foi o cabo dos trabalhos… Não viram o vosso irmão?

O Justino muito admirado:

- Ele ainda não chegou do Outeiro Grande, de levar as vacas do Luís?

- Claro que não chegou. – Esclareceu o Alípio em ar condenatório e de acusação, enquanto tirava um pedaço de queijo de um prato. - Estás a vê-lo? Ele vai e vem é a brincar. Agora tem a mania de levar uma aguilhada.

A irmã, batendo-lhe na mão, ordenava com desusada autoridade:

– Está quieto! Tens mais pressa do que os outros?

– Não mandas em mim! - O José Coutinho contou-me que o viu o outro dia: quando descia o Covão… O palerma vinha a fazer de conta que vem a tocar a Moirata e o Damasco, encangados, puxando um carro de incensos. Depois, de vez em quando parava e punha-se de cócoras, a fazer de conta que estava apertar ou alargar, os parafusos dos queicões. Parece um toleirão!

E o Justino, logo:

- Não parece, é. É mesmo tolo! Precisava era duns toitições  bem dados. Quando não vai ao Outeiro Grande é só brincar: é com a ovelha, é com vacas de madeira, é de baixo do estaleiro a fazer que está a lavrar…. Passa a vida a brincar e nós…

- E está sempre a fugir para ir brincar com os amigos à pesca da baleia, ao pai-velho e sei lá o quê… - Acrescentou a irmã. - O que sei é que nunca para em casa…

O pai bem tentava apaziguar tanta fúria e alienar-se de tantas condenaçõe

- Ele ainda é uma criança. É muito mais novo do que vocês.

- É muito novo mas já anda a fazer das suas… O Paulino já me disse que ele lhe abriu o portal da relva da Ladeira, para passar com a ovelha e depois pôs-se a andar e não o tapou.

- E o Delfim diz que ele lhe atira pedras às ovelhas. E elas têm crias…

- E demora uma manhã para ir levar as vacas e uma tarde para as ir buscar. E eu é que tenho que ir buscar a água à fonte, acarretar lenha e deitar comida às galinhas… Fazer tudo…

- Ele podia bem pegar numa foice e ir connosco… Podia ir ajudar-nos a ceifar feitos. Ou pelo menos ir atrás de nós fazendo as mancheias. A gente a ceifar e ele a fazer as mancheias era muito mais rápido.

- E podia andar mais depressa… Meia hora dá para ir e vir ao Outeiro Grande…

- E o primo Luís diz que ele sobe o Covão agarrado ao rabo das vacas e a bater-lhes desalmadamente.

- Elas andam que se fartam. Não há vacas na Fajã que subam o Covão tão depressa como as do primo Luís e foi ele que as pôs assim. E a Trigueira deu leite há bem pouco tempo.

E foi a Amélia a colmatar:

- Pai tem que por cobro nisto!... – Depois, dirigindo-se ao pai e aos irmãos - Venham para a mesa que o pão e o queijo já estão partidos. Não vale a pena esperar por ele. Quem não está não come.

           

 

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publicado por picodavigia2 às 22:12





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