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A PRIMEIRA NOITE NO FAIAL

Sábado, 29.11.14

O homem que José Pereira de Azevedo tinha à sua frente, chamava-se José de Ávila Coutinho e era descendente de Alexandre Coutinho, mais conhecido pelo Marialva, um dos primeiros povoadores da ilha. Essa a razão pela qual o povo do Pasteleiro e da Horta, sem saber muito bem porquê, chamavam àquela casa, “a casa do Marialva”.

José de Ávila Coutinho era um homem alto, elegante, já de avançada idade e muito acabrunhado por desgostos e dissabores recentes. A esposa, os filhos e os netos haviam sido atingidos pela fatídica peste que assolara a ilha e haviam falecido. José Coutinho ficara só no mundo. À maneira de Job, senhor duma paciência inquebrantável e duma bondade inexaurível, José Coutinho assistiu ao falecimento, primeiro da mulher e depois dos filhos e de dois netos. Um após outro, todos haviam sucumbido, vítimas daquela feroz e temível peste, frente à qual pouca ou nada se poderia fazer. Ficara sem família, sem alegria, sem esperança e sem vontade de viver. Sentindo que nada mais tinha que fazer na Horta, onde a vida para ele não tinha sentido, refugiara-se, como um ermitão, na casa do Pasteleiro, onde vivia só, entregue à dor e ao sofrimento. A casa não oferecia grandes condições, uma vez que, desabitada há anos, se fora degradando desalmadamente, José Coutinho sentia-se ali bem, perfeitamente isolado, sozinho, como se fosse um desterrado. Além disso e desde que ali se isolara não mais saía de casa. Simplesmente, vivia fazendo o bem, distribuindo o que ainda possuía, por quantos lhe batiam à porta.

O “Marialva” como era conhecido, recebeu José Pereira de Azevedo com uma enorme consideração e uma inusitada estima. Embora com um sorriso flamejado de dor aquele ancião calvo e de longas barbas brancas emanava doçura, encanto, dignidade e nobreza. José explicou-lhe, com palavras simples mas sinceras e humildes, o drama que o acompanhava, a razão por que abandonara o Pico e a sua presença agora ali, no Faial, acompanhado da mulher e do filho, sem ter onde pernoitar.

Compadeceu-se José Coutinho da desgraça e infortúnio dos Azevedos e prometeu-lhes que tudo se havia de arranjar:

- Muito provavelmente bateram à porta certa – comentava o velho Marialva, coçando, ao de leve o queixo - Estou para aqui só e triste, à espera que Deus me leve. A casa é grande! A comida não abunda, mas tu és novo, meu homem, poderás semear, a cultivar e colher. As casas não abundam por aqui e, a maioria delas, apesar de desocupadas, estão fechadas e seladas pelas autoridades. Mais não era de esperar, pois muitas fedem a peste e a morte. Por isso, podeis ficar por aqui, enquanto quiserdes e necessitares. É verdade que não disponho de abundância de alimentos mas partilharei convosco o pouco que tenho.

José agradeceu e por indicação do Marialva recolheu-se juntamente com a mulher e o menino, a um dos aposentos indicados. A criança chorava de impertinente e cansada. Pesava-lhe o sono e era urgente deitá-la. Pouco depois adormecia, encostada à mãe que de tanto cansaço, também não resistira ao sono.

José ficou só e acordado durante mais uns longos minutos. Levantou-se, deu uma volta pelo quarto onde, para além da velha enxerga havia apenas um pequeno armário a desfazer-se. Junto a ele José Pereira de Azevedo arrumou os cestos e os sacos que haviam trazido do Pico. De seguida assomou à janela, forrada de pequenos vidros e com umas portadas interiores já desfeitas. Em frente o Pico, na sua imponência total e absoluta. A imagem fosca, daquela espécie de triângulo de lava, espetado ali, em frente ao Faial, trazia-lhe à memória os trágicos acontecimentos dos últimos dias. Os primeiros abalos sentidos em Santa Luzia, aquela noite infernal, em que fora obrigado a refugiar-se no relento, o estrondo da madrugada do dia um e o fogo a nascer da montanha e derramar-se sobre os campos, sobre as casas, sobre tudo. Depois os momentos de aflição junto à igrejinha de Santa Luzia, o fradinho a levantar a coroa do Senhor Espirito Santo e a promessa, a promessa que todos haviam feito e que, estivesse ele onde estivesse, nunca havia de esquecer. Depois, assomava-lhe á mente, a imagem daquele velho, triste e amargurado mas generoso e caritativo, desprendido de tudo o que ainda tinha neste mundo. De que servem os bens, as riquezas, as fortunas se não temos a paz, a alegria, a felicidade de viver junto da família?

Era nisto que pensava José quando se sentou junto da mulher e do filho. Ambos dormiam, cansados do que fora aquele amargo dia. José beijou-os, implorou as graças e as bênçãos de Deus para todos, sobretudo para as vítimas da peste e dos abalos. Pouco depois adormeceu, também.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:37





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