PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
OS COMPADRES (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)
Uma outra estória que eu ouvia contar quando miúdo era a seguinte:
Era uma vez um casal que tinha vários filhos e um compadre de quem eram muito amigos. A mulher, para além de muito religiosa, era muito íntima do tal compadre. O marido, inicialmente, não se apercebeu do caso, mas com o tempo veio a perceber a embrulhada e, por isso, começou a pensar na maneira como havia de os desmascarar.
Teve então uma ideia: quando a mulher fosse à igreja rezar aos santinhos da sua devoção, ele escondia-se e atrás do altar. Assim o fez. No dia seguinte, aguardou que a mulher saísse de casa para ir rezar e, correndo à sua frente, foi esconder-se atrás do altar. A mulher entrou na igreja, ajoelhou, rezando a seguinte oração em voz alta:
- Ó meu Santo cegai o meu marido.
O marido ouvindo isto responde-lhe lá de trás do altar, distorcendo a voz, como se fosse o Santo:
- Ó minha Senhora, dai-lhe bastante de comer e beber que ele há-de cegar pouco a pouco.
A mulher saiu da igreja e, convencida de que tinha sido o santo a ouvir a sua oração e a aconselhá-la, quando o marido se sentou à mesa, para almoçar, disse-lhe:
- Ó homem, come e bebe bastante que eu quero-te bastante forte e saudável.
Nos dias seguintes a mulher voltava à igreja para rezar e o marido, escondido atrás do altar, respondia-lhe como se fosse o Santo:
- Dá-lhe bastante comer e beber que ele há-de cegar, por completo.
Passados uns dias, ao almoço, o homem disse para a mulher:
- Ó mulher, não me deves dar tanta comida. Não vês que me anda a dar uma estranha cegueira.
A mulher toda contente diz-lhe:
- Ó homem, come e bebe, pode ser que te ponhas melhor.
No dia seguinte, voltou a mulher à igreja para ir rezar ao Santo da sua devoção. Ela a rezar a mesma oração e a voz disfarçado do marido, como se fosse o Santo, a dar-lhe o mesmo conselho. Alguns dias depois, o homem ao almoço voltou a dizer:
- Ó mulher, não sei o que se passa comigo. É que eu já não vejo mesmo nada.
- Ó homem, não te preocupes - retorquiu a mulher muito contente - os nossos filhos hão-de ajudar-te nos trabalhos.
Convencida de que o milagre tinha acontecido e de que o homem estava mesmo cego, a mulher deixou de ir à igreja e, passados alguns dias, convidou o compadre para jantar na sua casa, como se fosse comemorar o acontecido. O marido, muito convencido, dizia, ironicamente, à mulher:
- Ó mulher, come e bebe a ver se também ficas cega como eu.
A mulher nem desconfiou e, no fim do bródio, ficaram todos sentados à mesa, a conversar. Diz então o homem para o compadre:
- Ó compadre, o que mais me custa não é ter ficado cego. A minha maior tristeza é saber que o meu compadre e a minha mulher mesmo sem comer e beber muito ainda estão mais cegos do que eu.
Como não o entendessem, mas muito admirados, o homem voltando-se para a mulher, pediu-lhe;
- Ó mulher, traz-me a espingarda que eu, embora cego, ainda sou capaz de atirar certeiro.
A mulher, cada vez mais confusa, trouxe-lhe espingarda. O homem voltando-se para um dos filhos, pediu-lhe que lhe colocasse uma garrafa a uns bons metros de distância. Depois pegando na espingarda, fez-lhe pontaria, acertando-lhe em cheio.
Perante o espanto da mulher que, assim se sentia descoberta, o homem concluiu:
- Na garrafa, acertei-lhe de cifrada e aos que nos enganam atira-se a matar.
O compadre, cheio de medo, fugiu dali a sete pés, a mulher pediu perdão ao marido e este, pediu a um dos filhos que lhe guardasse a arma.
E o Santo, pelos vistos, nunca mais teve orações daquela mulher.