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A FUGA

Sexta-feira, 30.01.15

A Bernarda era a rapariga mais bonita da freguesia. Não havia homem que, ao vê-la atravessar as ruas ou vielas do pequeno povoado, elegante e desenvolta, não a desejasse. Ela porém, apesar de sempre generosa e solícita para com todos, repelia piropos lascivos e repudiava galanteios maliciosos. Umas vezes enchia-se da raiva e apetecia-lhe atirar-lhes à cara umas valentes bátegas de insultos, outras cuidava que o silêncio e o desprezo eram a melhor arma contra tais afrontas Mas sempre firme nos seus sentimentos de rejeição, alheia aos ultrajes e ignomínias daqueles crápulas, seguia adiante, como se nada fosse. Ficar presa a emoções negativas e de revolta não conduziam a coisa nenhuma. Era um desperdício. Aquela cambada não merecia sequer o seu desrespeito. O único, na freguesia, que granjeara a sua simpatia e lhe despertava uma enorme afeição fora o Júlio Moleiro. Foi junto à aba de uma das altivas e hirtas paredes que delimitam os caminhos do Batel que se encontraram a sós, pela primeira vez. Foi aí que ela se declarou. Afirmou, sobre jura, que o amava-o e era com ele que havia de casar. O rapaz ouviu-lhe a jura desconfiado. Sabia bem o que sobre ela se dizia, recordava os olhares lascivos dos que estavam sentados à Praça e que, ao vê-a passar, desembuchavam um rosário de lérias e galanteios maledicentes. Além disso, dizia-se à boca cheia pela freguesia, que ela se havia envolvido com o José Castro, carpinteiro de profissão, e que este já a fora pedir aos pais. Ele que sim. Ela que não. Grande mentira! Puro aleive. Mexericos não faltam nesta terra. Estavam roídas de inveja as que haviam inventado tal despautério. E logo ela, com um canalha daqueles que desgraçara a filha do Timóteo. Nunca havia de ter sequer uma nesga da sua amizade, muito menos a plenitude do seu amor. Era a ele e só a ele que ela amava. Era unicamente ele que ela queria. Fez-se silêncio. A chuva a cessar e um sol brilhante e primaveril a ressurgir, desenhando um emblemático arco-íris, na Rocha da Ponta.

Bernarda de Lemos era muito jovem. Andava pelos vinte e cinco anos. Era loura e tinha os olhos azuis, mais brilhantes do que estrelas do céu quando disfarçadas de pérolas. O rosto bem delineado, de faces macias e a tez coberta por uma madeixa de cabelos sedosos, desleixadamente penteados. Para além de um olhar terno e meigo, possuía um sorriso inebriante e comunicativo. Um deslumbramento! No entanto, o que Júlio mais apreciava nela era aquele seu ar imponente, altivo, destemido e elegante, permanentemente, enlaçado com uma ternura desenvolta e descomplexada. De porte deslumbrante e andar expedito, aspergia simpatia, aureolava-se em dignidade, sorria com ternura. As suas palavras, embora parcas mas comedidas, saíam-lhe da boca límpidas, quentes e solenes. O seu pensamento era cristalino e puro e as suas atitudes e vontades pautavam-se pela hombridade, pela honradez e pela dignidade.

O segundo encontro, menos parco em hesitação mas mais lauto em ousadia, aconteceu para os lados do Areal, numa tarde de outono. Ele na ceifa do restolho do trigo, ela de cestinha no braço, com meia-dúzia de ovos, vindos de um curral que o pai possuía, à beira-mar, onde esgravatava e debicava uma dezena de galinhas. Ele mais tímido e indeciso do que da primeira vez. Ela mais desenvolta e ousada. Falava-lhe com todo o respeito, e, tão certo como dois e dois serem quatro, amava-o. Não, havia dúvidas nenhumas a tal respeito. Amava-o e muito. Animou-se o rapaz. Da sinceridade que aquelas palavras revelavam não podia duvidar. Ele também a amava. Nos últimos meses Bernarda não lhe saía do pensamento, nem por um segundo. Pensava nela noite e dia. Deslumbrava-se quando a via, enlouquecia se a sua ausência era prolongada. Queria-a só para si e, por isso, irritava-o a forma como os outros a olhavam, como se referiam a ela, os piropos malévolos que lhe atiravam, as mentiras que diziam a seu respeito.

Mas naquela tarde, não. Naquela tarde, aureolada por um sol outonal, ela estava ali presente, junto dele. Sua, só sua. Talvez por isso, parecia-lhe mais doce, mais meiga, mais atraente e, sobretudo, mais sincera. Entrelaçado entre as pavias de restolho, tinha-a tão perto de si como nunca, o que lhe permitiu reparar melhor nela e apreciar com maior esplendor, a doçura do seu olhar, a ternura dos seus lábios, a elegância divinal do seu corpo. Mas a sua presença, ali a seu lado, também lhe trazia um pânico, tremendo e gigantesco, que lhe despertava os mais íntimos afetos. Primeiro uma espécie de tição de fogo, um vulcão a despertá-lo. Depois um raio invisível a digladiar-lhe o peito, um calafrio medonho a desfazê-lo por completo. Queria falar mas não tinha palavras, queria abraçá-la mas não conseguia, queria possuí-la mas não tinha força. Ela, ali tão perto, à sua frente, meiga, sublime, aberta, disposta a ouvi-lo, capaz de o aceitar. Sentia o seu respirar, ouvia o bater do seu coração, recebia o halo da sua entrega. Ele nada. Uma vela apagada, uma flor murcha, um diadema sem brilho.

Perante a indecisão dele e num ímpeto de justificar o injustificável, de o libertar de complexos e inseguranças, Bernarda abriu as mãos e mostrou-lhas. Estavam ásperas, doridas, secas e, consequentemente, incapazes de o abraçar. Júlio, sem perceber o enigma daquela obstrução, ao ver-lhe as mãos naquele estado, no seu íntimo condoeu-se. Não entendia como um corpo tão suave, meigo e aveludado possuía umas mãos tão rugosas carregadas de tanta dor, de tanto sofrimento. Procurava, no seu íntimo, uma palavra que fosse mas não conseguia dizer nada. Ela também não. Ficaram os dois estáticos, inquietos, gerando um silêncio de tal modo profundo que, apenas, lhes permitia ouvir, com clareza, os rugidos roufenhos que assolavam o interior das suas almas. Um silêncio inexplicável e sem sentido que lhes obliterava evocações dilacerantes Um silêncio que lhes permitia olhar, ver e compreender a impossibilidade da sua paixão.

Um denso nevoeiro se formava, agora, entre ambos, O sol caíra de vez e sumira-se no horizonte. A lua, no vazante, tentava delinear-se no céu brumaceiro, muito vaga, esparsa. A mancha negra da Rocha, desde as Águas ao Curralinho definia-se emanando um negrume estonteante e vertiginoso, que parecia tornar a tarde mais escura. O mar, revolto, retorcia-se em extensas ondas que, ao chegarem junto à costa, se desfaziam nos rochedos do baixio, produzindo um rugido roufenho e vesano, desenhando rastros de espuma que ora se encolhiam ora se alastravam, numa tentativa frustrada de galgar a terra. De cima, do alto das Courelas, chegava um rumor abafado de vozes humanas. Das encostas do Pico ecoavam murmúrios alegres e frenéticos de pássaros em cio.

Não houve mais tempo. Nem naquele fim de tarde nem em nenhum outro. Tantos sonhos perdidos, tantas lágrimas derramadas, tanta confidência dispersa. Cada dia, para Júlio, transformava-se num império de desespero. Para Bernarda, num desmoronar de sonhos.

E numa manhã Bernarda partiu, em direção a uma América distante, longínqua e indefinida. Uma América da qual nunca mais voltou.

Todas as manhãs Júlio sentava-se, sozinho, sobre um maroiço do cerrado do Areal, onde já não havia restolho de trigo e onde a tivera à sua frente, pela última vez. Dali, olhava o mar azul e infinito, na direção do horizonte. Sabia muito bem que era naquela direção que ficava a América, onde cuidava que ela estaria escondida, talvez perdida.

 

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publicado por picodavigia2 às 12:17





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