PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MAIO MORNO
Não havia nas redondezas mulher mais esbelta e perfeita. Uma brasa! Aspergia amor, bondade e encanto, à mistura com um pouco de melancolia e amargura. Uma doce harmonia! A rapaziada do lugarejo ajoelhava-se à sua passagem, ao vê-la, os pássaros entoavam cantos mais alegres, o mar, toldado, a marulhar contra os rochedos, ao senti-la quedava-se e até a lua parecia ficar de sentinela a noite inteira, à sua espera, somente, para iluminá-la. Altiva e sublime, desenvolta e graciosa parecia que se ufanava-se do enlevo que sabia movimentar-se ao seu redor. Um hino à natureza!
Do rosto, aparentemente, amargo, transpareciam uns olhos grandes e envergonhados, uma boca rasgada, um sorriso inibido e um ar crespado. O cabelo caia-lhe espesso sobre a tez, cobrindo-a, parcialmente. Revelava, contudo, uma serenidade de costumes, uma ousadia de deslumbramento, um certo ar de menina inocente e pura.
E dela mais nada sabia o Crespo, a não ser que todas as tardes ia buscar os filhos ao infantário, aos sábados de manhã frequentava o mercado de fruta e, de vez em quando, visitava uma amiga que morava numa rua, junto da igreja. Nem o nome. Por isso e como o seu semblante lhe trazia à memória uma velha amiga de juventude, alcunhara-a com o mesmo nome – Cassilda.
E a apócrifa Cassilda, num ápice, tornou-se a senhora do seu destino, a dona do seu pensamento, a destruidora da sua quietude. Turvava-se-lhe o espírito quando a encontrava, palpitava-lhe o coração quando a via, desmaiava de deslumbramento quando a sentia perto de si. Os encontros que, intencionalmente, programava e premeditava, apesar de parcos e momentâneos, pareciam eternizarem-se. Persistente e sonhador, imperava-lhe na mente que um deles, um dia, havia de transformar-se em momento diálogo. Havia de arranjar maneira de meter conversa, de se envolver em partilha de sentimentos. A sua vontade era ouvi-la, o seu desejo escutá-la, saborear-lhe a presença, numa troca recíproca de emoções. Uma única palavra que fosse…
Foi num sábado, no mercado. Esperou que ela aviasse as compras. Seguia, atentamente, os seus passos, acompanhava os seus movimentos. Estava prevenido para o assalto. Uma lata de salsichas bastava para lhe ir no encalce, na caixa. Mal ela se posicionou na fila, à espera de vez, ele atrás, imediatamente atrás. Tão atrás que, com a mão esquerda, roçou-lhe, levemente, as costas. Sentiu um arrepio. Parecia que um raio lhe entrara pelo corpo dentro. Ela sentindo-o, voltou-se e sorriu, suavemente. Ele pediu desculpa e, juntando à socapa um pacote de café que ficara por ali, aproveitou:
- Isto não é seu?
Que não, que não era dela. Agradeceu-lhe com um novo sorriso e saiu apressada. Bem lhe apetecia atirar a lata de salsichas para os quintos dos infernos e correr atrás dela, segui-la até a casa. Ao menos saberia onde morava. Mas o quê!? A mocita da caixa demorou uma eternidade e ela desapareceu.
Foi uma tarde de setembro que a trouxe de volta. Chovia como Deus a dava. Quando o Semedo, displicentemente, entrava no café da Praça, deu de caras com ela, sozinha. Melhor oportunidade não lhe poderia ser oferecida. Ajustou-se na mesa ao lado, de forma que a visse e que fosse visto por ela. Por onde começar. Hesitou e voltou a hesitar. Por fim, prevendo que ela estava prestes a levantar-se, disparou ao acaso:
– São horas de ir buscar os filhotes?!
Ela, simplesmente, assentiu com a cabeça, levantou-se e saiu deixando, em cima da mesa, a chávena vazia e, ao lado, uma moeda. Apeteceu-lhe pegar na chávena, lambê-la… mas o empregado chegou primeiro.
Enquanto ela ali estivera, observara-a minuciosamente. Parecia-lhe uma mulher triste, talvez sofredora. O marido, ou lá com quem vivia, sim porque se tinha filhos alguém lhos havia feito, devia ser um perfeito crápula, um misantropo, uma palerma de alta qualidade, pois nunca a acompanhava. Sempre sozinha, como se não tivesse ninguém. Depois aquele ar amargo, talvez mesmo triste, aquela aparente solidão, aquele constante olhar para algo perdido. Tudo o confundia e atormentava.
E foi no auge de um sacrílego tormento que o Semedo despertou. Raios! Havia de a encontrar um dia, de estabelecer conversa, de lhe dizer tudo o que lhe ia na alma, do que sentia por ela, de quanto a amava…
Passaram, dias e meses. Nada! Ela sempre sozinha, sempre de ar triste e acabrunhado, a resplandecer beleza e graciosidade. O Semedo a desfazer-se entre programações de encontros, passagens por onde cuidava que ela andaria, tentativas, na maioria frustradas, de se deparar com ela, no mercado, à saída do colégio, na rua da igreja. Falas mansas e parcas e uma chusma de desejos, uma avalanche de sonhos. Mas nada. Apenas, de vez em quando, a via. Ela sempre igual. Atirava-lhe um sorriso, um bom dia, umas falas mansas, umas frases curtas. Diálogos de ocasião. Nada mais para além da frustração e do desespero com que voltava a revestir-se. Despejava tantos esforços em vão, o Semedo.
E foi num maio morno, chuvoso, sem flores e sem alegria. Num maio tolo, desalmado, despido de sol, daqueles que não deixam saudades. Ele, mais uma vez no mercado de sábado, emerso num enorme eirado de esperança. Desesperado. Num desassossego desestabilizador. Vem? Não vem? Talvez viesse…
E veio. Ao lado um gorila, barbudo, tinhoso, pançudo e ascoso. Um bicho do mato. O mundo nunca parira tal monstruosidade. Um espantalho de tentilhões ao seu lado era um príncipe. Tivesse vergonha, o tratante, de se por ao lado de tamanha beldade. Apetecia-lhe ir aos queixos, partir-lhe o focinho, pôr-lhe a cara num coicel. Mas o pior é que ela, a apócrifa Cassilda, parecia que andava vidradinha no estafermo. Tudo segredos, tudo sorrisos, tudo alegria. O pulha tinha-a enfeitiçado. Tantas loas lhe cantara, o safardana, tantas juras lhe fizera, o mariola, tantas promessas vãs, tantas aldrabices e outras tantas mentiras e a pobre caíra como uma papalva nas garras do infame. Ela, uma virgem inocente e bela. Ele um canalha asqueroso e perverso.
Saiu desolado, o Semedo. Aguardou que eles também saíssem, na tentativa de os seguir. Mas, no emaranhado dos vultos que entravam e saíam, perdeu-lhes o rastro. Que fossem para os quintos dos infernos. Ela também. Como enfrentava dia e noite um mostrengo daqueles? Como fora embrenhar-se com um cara de cu daqueles. Um turbilhão imenso de revolta assapava-lhe o pensamento. Desfazia-o. Aniquilava-o. Não podia fazer nada.
Calou-se muito calado, virou-lhes as costas. Dois meses depois, revoltado, partiu para a América.