PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O SOPRO DO VENTO
Em pé, no cais povoado de vultos em constante corrupio, esperava-o, olhando o oceano deslumbrantemente infinito. O Sol começava a espalhar-se sobre o casario em aguarela matinal, perfumada com o bafo dos incensos e das faias, ornada com o verde dos canaviais e o amarelo das giestas em flor. Um bando de gaivotas, em voos frenéticos e ciosos, derramava uma estranha melodia.
Não demorou muito e o Ilha Azul encheu a baía com um enorme buzinão, pondo as gaivotas em alvoroço. Um eco roufenho, mas possante e decidido, encastoou-se nos contrafortes da encosta. Depois, aos poucos, como um estertor dolente, foi-se diluindo pelos montes e escarpas circundantes, até se perder no horizonte. Como uma onda a desfazer-se no areal. Finalmente o ferry encostou ao cais e, ajudado por uma infinidade de cabos, guinchos e roldanas, abriu os enormes portões. Saíram pessoas e carros. Ele, na véspera, avisara-a de que faria ali uma curta escala. Gostava de a ver. Era imperioso encontrarem-se. Ela anuiu, com agrado.
Com destreza, desenvencilhou-se entre os primeiros passageiros, desabando, sobre ela a memória embevecida de um passado muito distante mas bem vivo. É verdade que haviam atravessado um terrível e longo muro de silêncio. Agora, por momentos, redimiam-se. Derrubavam-no, incrédulos, incapazes de dizer o que quer que fosse, para além do trivial. Uma pequena multidão, ao redor. Uns festejavam a alegria da chegada, outros aguardavam, impacientes, o embarque. Dentro em breve, teria que regressar ao Ilha Azul. Ela voltaria a estar só. Por detrás das rugas e dos cabelos esbranquiçados ficar-lhe-ia, mais uma vez, estampado no espírito o sabor amargo de um novo deserto.
Fora há muitos anos. Uma irmã dela, colega dele na universidade, aproximara-os. Depois, enquanto se abreviava a amizade da colega, agigantava-se a paixão por ela. Não era muito alta, nem deslumbrantemente airosa, mas consubstanciava um misto de ternura e de encanto. Atraía-o, fatalmente. Rosto macio, olhar doce, sorriso encantador. Uma beleza original e pura refletida na fluidez da sua essência e, sobretudo, no esplendor do seu caráter. Reinventava-se em cada momento, resplandecia em cada determinação, exaltava-se em cada atitude. Mulher menina perdia-se no que procurava e envolvia-se no que desejava. Era gota de água, orvalho, tormenta, enxurrada. Um mar de desejos, um oceano de entregas. Tudo e nada. Ele, refugiado no seu casulo, sempre tímido, hesitante, à espera do incerto, do indefinido. Encobria o bafo da paixão com o escapulário da inocência. Diante dela, refugiava-se, como um búzio, no seu esconderijo de lava. Cerceava tentativas, desmantelava aspirações, desfazia desejos e assolava paixões. Um tolo!
Um dia, porém, mandou às urtigas as hesitações. Ergueu-se em herói. Transformou-se em guia de uma longa subida. Por entre veredas sinuosas e escarpas íngremes subiram até ao cume de um pequeno outeiro. Lado a lado. A subida iniciou-se com determinação. Caminhavam como se não tivessem medo. Deslizavam por entre o soluçar do vento, arrastados pelo arfar de um contentamento disfarçado de cansaço. Primeiro o amarelado dos fetos, dos silvados, dos choupos a enfeitiçá-los. Depois o avermelhado dos tufos secos, seculares a tolher-lhe os passos. Alguns quase míticos. Ele conhecia na perfeição aqueles andurriais. Explicava-lhe o simbolismo de cada pedregulho, o misticismo de cada tufo e despertava-a para beleza da paisagem envolvente. Finalmente, já no alto, o verde das pastagens, o cheiro fresco da alfombra, a quietude das paredes circundantes, o reforço do ar puro da pequena montanha. Unia-os um ar envolvente, fresco e conciliador. E o cimo do pequeno outeiro, metamorfoseado em cúpula do mundo, a presenteá-los com uma vista maravilhosa. Aquém os telhados e frontispícios do casario do pequeno povoado, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito. E quando, no regresso, após a descida, atravessavam impávidos e destemidos o povoado, uma pequena multidão, aparentemente adormecida, como que acordou, erguendo-se contra ele, num contínuo vomitar de afrontas e insultos. Ela enfureceu.
- Canalha! Bando de invejosos! Corja de vadios!
Que não se incomodasse. Nada o afetava. E no domingo seguinte visitava-a, cada vez mais impaciente com a instantaneidade de cada encontro, com o aproximar-se do desmoronamento de cada sonho. Mas continuava entupido nas suas decisões, ancorado nos seus preconceitos. Grande palerma! Podia arrancar-lhe um beijo, um abraço, um carinho sequer. Mas nada! Era aquela estátua estratificada de desejos, corrompida de medos, aboborada de temores. Pouco depois ela partia, levando consigo a pérfida esterilidade das entregas de que haviam abdicado. Ele por medo, ela por compaixão. Agora e mais uma vez, mergulhavam numa separação que nem a um nem a outro agradava. Desfazia-os. Quase os amortalhava. De longe, apenas ecos dos sonhos vividos. Às vezes, um postal, uma carta, raramente um telefonema, a libertá-los do torturante pesadelo que o afastamento lhes causava.
Um dia decidiram subir ao céu! Quebraram amarras, destruíram grilhões e ele prometeu visitá-la. Ela esmerou-se em preparativos. Havia de o receber como um príncipe. Não fossem as bocas do mundo e ele havia de ficar na sua casa, dormir ao seu lado. Partilhariam momentos de intimidade. Mas não. Sucumbiu! É que, mais uma vez, foi trazido pelo sopro do vento norte, forte e intempestivo. Havia de atiçar labaredas descomunais. Indomáveis. Ele, açudado por um envolvimento desusado, vinha excitado. Ela estranha, confusa, mas disposta a tudo. Simulou doença e recebeu-o no leito. Comprometedora simulação que o atirava para bem junto dela. Que se sentasse na beira da sua cama, que enxugasse a cara com a sua toalha, que lavasse os dentes com a sua escova… Que a beijasse, que a amasse. Que fizesse tudo o que desejasse. Estranha hesitação a dele. Olhando-a, fixamente, apenas sonhou possuí-la como se de facto a possuísse.
Saíram na mira do almoço. Pela rua abaixo, mais uma vez, enlaçados pelo sopro do vento norte, agora mais calmo e sereno. Partilhavam uma cumplicidade íntima e recíproca. Ele nervoso, inquieto, a braços com desejos confusos, que se recusavam a sair-lhe do pensamento e ela, indignada, a aceitar com raiva aquela hesitação, aquele inequívoco desperdício de uma oportunidade que jamais voltaria. Seguiram-se três dias de sonhos desperdiçados, de esperanças atiradas ao ar, de decisões adiadas. Sustentavam, em vão, uma luta contra forças que eles próprios haviam cultivado, um inexplicável embate entre dois seres que sabiam que se amavam, mas não o queriam dar conhecer um ao outro. E assim ficariam a sonhar, de olhos cravados no infinito.
Agora que o ferry se afastava, com um buzinão ainda mais roufenho do que o que emitira à chegada, ela voltou a sentir um novo sopro de vento, uma enorme lufada de ar a toldar-lhe o rosto. Mas era um ar quente, amorfo e pestilento Estava só.