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A JORNALISTA

Sexta-feira, 13.02.15

Foi num congresso de jornalistas que se conheceram. Ele do Informar, ela da conceituada revista Presente. Dias antes, Jacinto Belchior telefonara à redação da Presente. A ideia era saber se a revista estaria presente no congresso e, em caso afirmativo, quem a representaria. Era crucial. Muitos jornais e revistas já se haviam associado, em ordem a se unirem, na apresentação e aprovação de algumas medidas importantes para o jornalismo a que a Federação e o Governo se opunham. Que sim, que a revista faria jus ao seu nome. Estaria presente e far-se-ia representar pela jornalista Eduarda Borges.

Jacinto Belchior foi o primeiro a comparecer no hotel, aguardando, com impaciência, a chegada da colega. Sentado no hall de entrada, entretinha-se a observar dezenas e dezenas de congressistas que, à medida que iam entrando, se dirigiam à mesa do secretariado a fim de oficializar a sua acreditação. Muitas mulheres eram-lhe desconhecidas e era entre estas que procurava Eduarda Borges. Mas nada. Por momentos, cuidou que não seria capaz de a identificar, face aos elementos que lhe tinham fornecido. Esperou mais algum tempo. No seu pensamento trespassavam imagens diversas, confusas, indefinidas. Por fim, já cansado de tanto esperar, dirigiu-se à mesa do secretariado. Por feliz coincidência, precisamente no momento em que a representante da Presente recebia uma pasta com a documentação e o crachá.

Eduarda Borges já não era muito nova mas era possuidora duma beleza estonteante e duma graciosidade demolidora. Andaria nos quarenta. Morena, de semblante jovial, cabelo ondulado, olhos grandes e plenos de graciosidade. Falava com uma desenvoltura desusada, era senhora duma comunicabilidade avassaladora e, além disso, possuía um currículo invejável. Uma mulher distinta, uma jornalista notável. Os seus textos semanais na Presente, sobre os mais polémicos temas da atualidade, eram de um rigor acentuado e duma clareza impressionantes. Cativavam os leitores. Fundamentava as suas opiniões, confrontava, sem receio, as dos outros e formulava sínteses com clareza, rigor e determinação sobre os mais diversos e mais polémicos temas da atualidade.

Recebeu a prestabilidade do colega do Informar com alegria. Que lhe desculpasse o atraso. Havia de o ressarcir do tempo perdido. Depois ria, atirava-lhe frases cheias de sentido, galhofas de bom gosto, numa palavra envolvia-se com ele com se há muito tempo se conhecessem.

Jacinto Belchior ficou fascinado. Na companhia dela, o congresso seria muito mais alegre, vantajoso, benéfico, talvez mesmo mais divertido. Sim porque ficar três dias ali encurralado, a maior parte do tempo a ouvir larachas e coisas sem importância, seria uma chatice. Assim trocariam ideias, discutiriam propostas diversas, envolver-se-iam na discussão dos temas com mais entusiasmo e, sobretudo, com maior utilidade. bem que o destino acabara por dispor as coisas de maneira a que se conhecessem. Na verdade envolveram-se, lado a lado, no debate de alguns dos temas do congresso como jornalismo e sociedade, diagnóstico do jornalismo no país, jornalistas em defesa do trabalho e da democracia, o poder feminino nas redações, sensibilização da opinião pública para a degradação das condições de trabalho dos jornalistas e as suas consequências para a liberdade de imprensa e para a qualidade da democracia, o problema da formação, etc. etc.. Enfim uma panóplia de problemas que nunca mais acabava. Mas um congresso não se faz só de sessões, de debates e fóruns. Após os trabalhos havia que desfazer o cansaço, derrubar o entorpecimento, dar largas à diversão. Eram jantares longos e demorados, noitadas em bares, passeios pela cidade. Ela sempre ao lado dele como que a protegê-lo, a ajudá-lo, a aconselhá-lo e até, uma vez, uma única vez, a impedi-lo que bebesse de mais. Uma maravilhosa companheira! Um delicioso enlevo!

No regresso a casa Eduarda pediu-lhe boleia. Tinha vindo com um amigo que seguira viagem e agora não tinha como regressar. Deixasse-a onde lhe fosse mais conveniente. Depois havia de se haver. Era o que faltava. Havia de a ir levar a casa. As reuniões e os debates, no último dia, prolongaram-se mais do que era esperado, pelo que partiram já tarde.

Teria talvez passado uma hora de viagem quando resolveram parar para comer qualquer coisa. Falaram, riram, conversaram e desabafaram. Aquela carta que meteram debaixo da porta do quarto dele. Uma vergonha! Há pessoas que vêm aos congressos para isto! Esquece, rasga. Aquele dar nas vistas do Primeiro de Dezembro! E as imbecilidades do presidente. Metia dó. Começava a admirá-la cada vez mais. A segurança das suas opiniões era, deveras, convincente, a serenidade das suas palavras conciliadora, a clareza das suas atitudes fascinante. Os seus diálogos eram sábios, as suas ideias úteis, os seus escritos atrativos. Sentia-se fascinado e ela percebeu-o. Pudera ele, ali, em pleno restaurante, pegar-lhe nas suas mãos e havia de levá-las à boca para as beijar. Talvez ela não reagisse negativamente. Hesitou.

Fizeram o resto da viagem em alegre cavaqueira. Ela falava, ria e ouvia-o com atenção. Por vezes até lhe parecia querer aconchegar-se no seu ombro. Chegados à porta da sua casa, convidou-o a entrar. Ele embasbacado, hesitou. Ela percebendo o embaraço, adiantou de imediato:

- Talvez seja melhor não. Já é muito tarde.

Seguiram-se dias, semanas de silêncio! Não se continha. Arrochado pelo suplício da sua ausência, definhava. Fora um fraco! No restaurante, na viagem e sobretudo à porta de casa dela. Agora ressuscitava. Nenhum temor havia de o entupir quando estivesse na presença dela. Telefonou-lhe a combinar encontro. Gostava de a ver… de conversar. Tinha muito gosto, mas ela engenhosa e determinada, marcou encontro num café, longe de sua casa. Tudo veio à baila. Ecos do congresso, recordações dos convívios noturnos, o último artigo que publicara, projetos futuros, problemas da classe… Tudo, menos o que ele pretendia. Seguiram-se outros encontros. Sempre no café. Sempre sobre jornalismo. Dias e dias enfarruscado em encontros monótonos, sempre iguais, mas plenos de emoções. Bastava-lhe que estivesse na sua presença. A arfar ânsia, mas a nadar em enlevo. Era hora de mudar de estratégia. Convidou-a a visitar o Informar. Um dia levou-a ao jornal, apresentou-a ao diretor e teve a distinta lata de a propor como colaboradora. Referenciou-a como uma excelente jornalista. Os seus escritos atraíam leitores. O jornal ganharia com a colaboração dela. O diretor acabou por aceitar. Teria à sua disposição uma coluna semanal.

Durante quase um ano Eduarda Borges visitava com alguma frequência as instalações do Informar. Jacinto Belchior esperava, ansiosamente, a sua chegada e acompanhava-a com enlevo, enquanto ela ali permanecia. Trabalhavam lado a lado. No fim, apenas um café em conjunto, às vezes um lanche. Sentia que ela adorava a sua companhia mas percebia que todas as demais hipóteses, para além duma amizade recíproca, estavam arredadas. Apenas uma miragem indecisa, ténue.

Certo dia o diretor chamou-os ao seu gabinete. Achava que profissionalmente se completavam. Considerava-os capazes de orientar um projeto de formação de jornalistas. A ideia agradou-lhes. Para além da valorização que tal projeto lhes havia de trazer a todos os níveis, para ele era uma excelente oportunidade de a encontrar com mais frequência, de estar com ela mais vezes, de partilhar dias, talvez noites. A proposta não podia ser melhor. Orientar um curso de formação de jornalistas implicava um trabalho conjunto, quase diário. Decerto que se aproximariam muito mais, emocionalmente. E aproximou. Sobretudo a ele que de dia para dia mais se fascinava, mais se enlevava, mais se apaixonava.

Certa tarde, após mais um encontro de trabalho, ele levou-a até à porta de casa. Com o mesmo à vontade com que o fizera na noite em que regressavam do congresso, ela convidou-o para entrar. Ele aceitou. Subiram. Sentado na sala, o filho via televisão.

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publicado por picodavigia2 às 10:26





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