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ALVOROÇO

Sábado, 28.02.15

Olhos grandes e esverdeados, a quererem engolir o mundo. Cabelos serpenteados e loiros a desafiar o vento. Boca acetinada a desenhar-se em sorrisos sublimes e um rosto ligeiramente moreno, perfumado a alecrim e a poejo, a confundir-se com o despertar das madrugadas florescentes. Corpo esbelto, elegante no andar, radiosa no trato, de fina sensibilidade ao exprimir-se, numa palavra – uma doçura.

Dera-lhe cabo da inocência o estafermo do José do Grotas, ao catrapiscar-lhe o olho. Era ela ainda muito nova. Ele? Um pulha! Barba por fazer, bigode espesso a cair-lhe da cara. Um barra botas mal-amanhado! Já fizera vinte e aguardava as sortes. Por certo que havia de ficar dentro e bater com os costados no Faial ou na Terceira. Pelo menos uma dezena de meses, talvez dois anos, havia de por lá ficar. O diabo era se fosse mobilizado para o Ultramar.  

E do ano dele foram todos apurados! No Carvalho de maio marchou para a Terceira. Assentou praça no Castelo de São João Batista, no Monte Brasil.

Ao princípio ela sentiu falta dele e, no dia do embarque, até chorou. Afeiçoara-se ao magano, apesar dos mexericos pouco abonatórios que sobre ele corriam na freguesia. Mexericos são mexericos… Mas do estatuto de malandro, de grandessíssimo preguiçoso é que não se livrava. O pai a ceifar, a mondar, a lavrar. Cestos e molhos às costas a cada hora do dia, a trabalhar como um mouro e o filho da manha, sentado à Praça, a falquejar, de cigarro na boca. Um sem não fazer nada! A tropa havia de o meter na linha… Ai se havia.

Passado algum tempo, no entanto, os estigmas da separação cicatrizaram. Cada Carvalho trazia uma carta e levava outra. Não fazia ideia de quando regressaria. Era tempo de guerra e, muito provavelmente, depois da recruta em Angra, seguiria para as Caldas, fazer a especialidade. Depois seria o que Deus quisesse… Mas decerto que o seu destino era Angola ou a Guiné.

Ela, Eulália, apesar de desolada, sem o amar muito, possuía contudo uma fleuma de confiança. Ocupava o tempo ajudando a mãe nas lides da casa, uma demão ao pai nas semeaduras, algumas tardes de costura junto da Tia Bernarda que a ensinava com paciência e sabedoria. Com mais quatro horas, duas de manhã e duas à tarde, na máquina, a assentar o leite, ia passando os dias. Aos poucos, a amargura e a tristeza iniciais foram-se desvanecendo. Foi-se diluindo a dor no lento esquecimento do filho do Grotas. Aos domingos ensinava catequese, cantava na capela e enfeitava a igreja. Passada meia dúzia de meses já não sentia a sua falta. Havia Carvalhos em que ela não recebia carta. No seguinte, pagava-lhe com a mesma moeda.

No verão chegou à freguesia, de férias, o Ilídio Salgado. Andava a estudar Medicina em Coimbra. Os pais e os irmãos haviam debandado para a América. Anuíram em deixar o rapaz em Portugal. Não queriam que ficasse com o curso a meio. Havia de formar-se e depois decidiria. Médico feito, talvez continuasse na terra que o vira nascer, talvez se fixasse no Continente, ou então juntar-se-ia a eles nos States, onde, decerto, também teria uma carreira brilhante. Um orgulho para os pais. O diabo era onde havia de ficar, durante as férias de verão. Foi o compadre Jesuíno que, de imediato, se prontificou. O rapaz havia de se hospedar em sua casa, havia de tratá-lo como um filho. E não se falava mais no assunto. Era verdade que a sua casa era pequena. Mas mesmo ali ao lado, paredes meias, morava a Tia Bernarda. Tinha um casarão enorme e vazio. Vivia praticamente sozinha. O marido e uma única filha haviam morrido há muitos anos, no desastre do Corvo. Não se importaria nada de o rapaz lá pernoitar. Sempre a queixar-se de doenças e achaques, havia de aproveitar a presença do futuro médico. Comida e roupa lavada eram por conta da sua Josefa, muito escoimada e uma excelente cozinheira.

Já de avançada idade, a tia Bernarda ainda cirandava sozinha durante o dia, mas à noite precisava de quem lhe fizesse companhia. Aquela maldita guerra de Angola levara-lhe o sobrinho de peito. Eulália fora a eleita para o substituir. De noite, apenas, porque de dia Bernarda Lisandra ainda se amanhava muito bem sozinha.

O futuro médico, não se fez rogado, nem se incomodou nada em ir dormir a casa da tia Bernarda, nem coisíssima nenhuma. Ia lá aborrecer-se… Nem pensar. Além do mais, a velhota levantava-se cedíssimo. Podia dormir até às tantas. Além disso sabia que a senhora Bernarda, desde pequenino, lhe manifestara sempre muita afeição e carinho. E na primeira noite, logo após uma opípara ceia em casa do seu anfitrião, lá foi, saindo pela porta da cozinha que desembocava no balcão da tia Bernarda. Sem o esperar, deu de caras com Eulália. A moça ao primeiro relance ruborizou. Germinavam ainda recordações e amizades de infância. Na escola, na catequese e na festa da Senhora do Carmo. Acrescia que ele, agora, estava mais forte, mais belo, mais homem. Ela também estava diferente, muito bonita. Poder-se-ia dizer que encarnava a suprema beleza. Alvoraçados, perturbados e, aparentemente, nervosos, pouco falaram. Mas nos dias seguintes, nas horas em que ele percebia que ela andava por ali, a janela do senhor Jesuíno era um nicho estuante. E ela, vezes sem conta e sem precisão nenhuma, muito generosa e muito solícita, vinha, durante o dia, a casa da tia Bernarda, simplesmente para saber se ela precisava de alguma coisa. Se a janela do senhor Jesuíno estava deserta, Eulália demorava-se na entrada, nos degraus, no pátio, à porta, onde quer que fosse, até que ele aparecesse. Ele não se fazia rogado. Adivinha-lhe a presença e postava-se à janela. Ela também exagerava ao simular encobrir os seus sentimentos. Não se coibia. Sabia que ele a queria ver. Desejava, também, ser vista. E vê-lo. Sobretudo vê-lo. Também nela se enraizara um supremo deslumbramento. Queria mostrar-se à luz do seu olhar, bela, ditosa, atraente. E não precisava de se esforçar muito. Era-o por natureza.

A tia Bernarda, apesar da sua provecta idade, reparou que a moça, era agora muito mais devota de sua casa. Regozijou-se sem perceber o verdadeiro motivo de tal mudança. Visitava-a durante o dia, adorava limpar-lhe os pátios, sacudir-lhe os capachos, estender-lhe os cobertores à janela e, sobretudo, chegava bem mais cedo, ao serão. Até os pais estranharam! Mal ceava, pisgava-se para casa da tia Bernarda numa precipitação desusada. E de manhã ficava no quarto, tanto tempo quanto podia, enquanto a pobre da tia Bernarda, madrugadora por natureza, caminhava na demanda de uma mancheia de couves, de uns garranchos de lenha, dumas maçarocas de milho. Ela, Eulália a cirandar da cozinha para a sala, ansiosa, a tentar perceber se ele vigilava. Ele acordado, a ouvir-lhe os passos e a imaginá-la na sua elegância deslumbrante. Manhãs e noites a fio. Ela ansiosa por persenti-lo, ele desejoso de a contemplar.

Finalmente, numa manhã dourada de sol encontraram-se. Ela erguera-se cedo. Fora e voltara. Ele em férias não tinha horas. Levantava-se quando queria. Saudaram-se com palavras triviais. Trocaram olhares recheados de emoções. Geraram, sem o perceber, uma cumplicidade amorosa recíproca. Na manhã seguinte a conversa prolongou-se e, à noitinha, ele perseguia-lhe os passos. Ela demorava a caminhada. Aguardava entrar, esperando por ele, de forma a acompanhá-lo, como se fosse uma casualidade. Certa noite, a tia Bernarda, mais por cortesia do que por vontade, foi deitar-se. Deitava-se cedo! Deixou-os na sala, com as paredes repletas de fotos antigas. Ilustres antepassados. Ele de imediato se declarou apreciador de tais preciosidades. Ela orgulhosa de lhas mostrar. De lhe explicar quem eram… Aos anos que haviam vivido… Nesse vai e vem os seus corpos tocaram-se. Uma, duas, várias vezes. De propósito. Por vontade dele e aquiescência dela. Nessa noite quase não adormeceram.

Seguiram dias de encontros, diálogos e até pequenos passeios. Um fascínio! Um alvoroço! Mas um inesperado falatório rebentou quando a Pintassilga deu com os dois sozinhos, enfiados no Caneiro do Porto, no banho e não teve papas na língua. Ela, pelos vistos, não sabia nadar e o gajo, no dizer da Pintassilga, para a ensinar, punha-lhe as mãos por baixo. Parecia que lhe apalpava tudo.

Ameaçada pelos pais, que consideravam aquilo de ir tomar banho para o Caneiro do Porto, com um estranho, não ficava bem a nenhuma menina, muito menos a quem tinha o namorado ausente, Eulália aquietou-se, enquanto ele, manifestava ganas de dar cabo do estupor da Pintassilga. E o pior foi quando as suspeitas daquela cabrona chegaram aos ouvidos, primeiro do compadre Jesuíno e, depois, aos da velha Bernarda. Jesuíno, inicialmente preocupou-se. Se os pais soubessem, o que haviam de pensar? Mas depois aquietou-se, iluminado pelo ditado popular ó vizinha acautele a sua galinha que o meu galo é solteiro. E não se incomodou mais com coisíssima nenhuma. Mas tia Bernarda, sim. Ficou muito nervosa e entrou num dilema tremendo. Gostava tanto daquele menino que por nada do outro mundo o punha fora de casa… Mas se os pais proibiam a rapariga de ir lá pernoitar, o que seria dela, sobretudo nas noites longas do inverno? E se acontecia uma desgraça. Experiente e sensata, resolveu mandar às urtigas o diz-se diz-se e vai de bendizer e proclamar em alto e bom som, a bondade do menino Ilídio e o respeito que ele tinha pela sua sobrinha. Depois, era uma questão de estar mais atenta. Sabia muito bem como eram os verdores da juventude.

Depressa se esqueceram as suspeitas da Pintassilga que também não era boa bisca. Além disso, agosto caminhava a passos largos para o fim e o Carvalho era no princípio de Setembro.

No verão seguinte Ilídio poi passar as férias à América e, quando dois anos depois, regressou a casa do compadre Jesuíno, Eulália já tinha partido com os pais, também para a Améria.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:52





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