PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
LIGAÇÕES PORTO-PICO I
Hoje, 2 de abril, quinta-feira, a SATA Internacional, parte do Porto com destino a Ponta Delgada às 12,35, onde chega às 13,50, voo S42171. No entanto o único voo de hoje, de Ponta Delgada para o Pico, SP 430, está agendado para as 9,10. A hipótese seria fazer Ponta-Delgada Terceira, às 14,40, chegando às Lajes, às 15,20. Mas como o voo Terceira Pico SP 476 está agendado para as 15,45, não é possível fazer a reserva.
A solução mais viável parece ser ficar em São Miguel durante um dia e aguardar pelo voo SP430 que parte de Ponta Delgada para o Pico, amanhã às 9,10, chegando à ilha montanha às 10,00.
Autoria e outros dados (tags, etc)
LIMITE
O Carvalho levantou ferro da baía das Lajes com destino ao Faial já noite escura, pese embora estivéssemos em Setembro. Havia de chegar na manhã seguinte. Albano viera passar um mês de férias às Flores. Encostado à amarra do convés entretinha-se a observar as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que prendera o navio em frente à vila, durante várias horas. Alguns marinheiros já tinham levantado a escada e fechado o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, deu duas guinadas à retaguarda, apitou por três vezes, orientou-se rumo a leste e zarpou em marcha lenta, em direção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada. Quando, na manhã seguinte, depois de uma noite calma e tranquila, voltou ao convés, já o navio, muito lentamente, rodava a ponta da doca do Faial. Em frente, a Horta, disposta em anfiteatro, virada para a majestosa montanha, encastoada entre o Monte da Guia e a Espalamaca. O mar calmíssimo estava pejado de pequenas embarcações, onde se destacavam as lanchas que chegavam do Pico a abarrotar de pessoas, de malas e de fruta, e que pareciam afastar-se para dar prioridade ao enorme paquete que, soltando três longos silvos, seguia vagaroso, com as máquinas quase paradas e empurrado pela leveza da corrente, atrás de uma pequena lancha, com a bandeira da Capitania e que momentos antes acostara, permitindo ao piloto de barra saltar para bordo e atracar o paquete à doca. O portaló abriu-se, ligando o navio à ilha, numa espécie de ponte móvel. Albano decidiu-se por sair. Daria uma volta pela cidade, aproveitando para almoçar em terra que as refeições de bordo pouco lhe agradavam. Até Angra seriam mais dois longos e aborrecidos dias, com paragens obrigatórias e demoradas no Cais do Pico, nas Velas e na Praia da Graciosa.
Assim como Albano, a maioria dos passageiros que viajava no velho paquete rumava à Terceira. Por isso, depois do navio ancorar, na enorme baía, lada a lado com o Monte Brasil, a confusão no portaló e corredores anexos era grande. Padres de redingote e assinalados no cocuruto com a tonsura, seminaristas já vestidos de fato preto e cabeção, estudantes abraçados às namoradas, soldados fardados com bivaque e com botas de cordões entrelaçados até meia perna, empregados de mãos a abanar, doentes amparados por familiares e até uma velhinha, com o rosto muito pálido, enrolado num lenço de merino e transportada numa maca. Muito a custo, com uma mala em cada mão, Albano conseguiu aproximar-me do portaló, na tentativa de apanhar a primeira lancha. De repente, mais lhe parecendo uma miragem do que uma visão deparou-se na presença da mais bela mulher que alguma vez vira. Os cabelos louros, sedosos, presos por uma enorme prisão, deixavam-lhe cair uma pequena madeixa solta, sobre a testa. O rosto, branco, fino, macio, aveludado, sublime, de uma beleza invulgar. Os olhos de um azul pouco claro mas doces, maviosos, cativantes. Um sorriso angélico, puro, jovial, a emergir de entre dois lábios ligeiramente ondulados, afoitos, perfumados com uma deliciosa e inebriante ansiedade. Uma deusa! Uma esfinge! Postada mesmo em frente ao portaló, revelava uma inócua e imperiosa vontade de seguir para terra. Ao seu lado um homem e uma mulher cumprimentavam o imediato que, gentilmente, lhes disponibilizava a oportunidade de serem os primeiros a desembarcar.
Albano estarreceu. A muito custo tentou perfurar entre aquele amontoado de gente na tentativa de também seguir na primeira lancha e, sobretudo, de observá-la melhor, segui-la de perto, descobrir quem era. Não conseguiu. E a visão que momentos antes o deslumbrara, ao descer as escadas do portaló, perdeu-se entre as sombras enigmáticas e frias das torres da igreja da Misericórdia e dos telhados das Casas Alto das Covas e do Lameirinho. Na segunda lancha conseguiu vaga. Desembarcando no cais, entregou as malas a um bagageiro e dirigiu-se, apressadamente, ao edifício da Alfândega. No momento em que entrava ela saía. Durante os dias e meses seguintes nunca mais a viu. A imagem dela, no entanto, perseguia-o dia e noite. Não o deixava…
Foi num encontro de escritores e poetas que ela lhe surgiu pela frente. Nem podia acreditar. Cumprimentaram-se, conviveram, conversaram como se fossem amigos de há muito. Ele não se contendo, falou-lhe na viagem do Carvalho, em setembro último, durante a qual, estranhamente, nunca a vira e do desembarque, na baía de Angra, onde, pela primeira vez, se apercebeu da sua presença, junto ao portaló. Que sim, que se lembrava perfeitamente dessa viagem e que, também, o tinha visto. Quando o navio, no regresso, ancorara nas Velas. Os pais haviam-na recompensado, por ter terminado o curso, com um périplo pelas ilhas dos grupos central e ocidental. Uma viagem no Carvalho até às Flores e Corvo! Tanto sonhara com aquele passeio! Infelizmente, havia-se transformado em cinco dias de pesadelo e de angústia. Passara muito mal durante quase toda a viagem. É verdade que adorara conhecer todas as ilhas, incluindo as do grupo ocidental, mas passara muito mal, durante quase toda a viagem. Aquele balançar do navio, aqueles cheiros horríveis, aquela mistura de pessoas e animais haviam-na transtornado muito. No regresso apenas se levantou do beliche quando o barco ancorou nas Velas. Lembrava-se que era aí que o tinha visto. Quando seguia para terra. Ele estava debruçado sobre a amarra do convés da primeira. Aproveitou a oportunidade para visitar a única ilha em que na ida não conseguira desembarcar. Depois, com um discurso doce, meigo, sensato e profundo descrevia as belezas de cada ilha. Albano ouvia-a, extasiado, embevecido. Parecia-lhe um sonho. Estar ali sentado ao seu lado, ouvindo-a, olhando-a, sentindo o seu respirar. Por fim, não se contendo, arriscou:
- E das Flores? Gostaste?
Adorara. Era, sem sombra de dúvida a mais bonita. Deslumbrara-se com a imponência das cascatas naturais, com a graciosidade das lagoas, com a beleza das flores e com o verde dos montes e vales. Também apreciara muito a pacatez das freguesias, a simplicidade e simpatia das pessoas, enfim, deleitara-se com tudo. Percorrera toda a ilha e, obviamente, fora à Fajã Grande. Ele podia orgulhar-se de ter nascido num dos mais belos recanto dos Açores.
- E - acrescentou com um sorriso mavioso – eu conheço todas ilhas. Em tempos idos já visitei São Miguel e Santa Maria.
A tarde decorreu sublime, maravilhosa, delirante. Nem se aperceberam do passar do tempo. Terminaram os trabalhos. Despediram-se. Albano dificilmente acreditava no que lhe acontecera. Enlevado, até então, por sentimentos recíprocos de excelência e sublimidade que saboreara com encanto e enlevo, retorcia-se, agora numa mágoa profunda, num suplício tremendo. Nunca se sentira assim. Apetecia-lhe regressar ao início da tarde. Estar ao lado dela, sempre. Era sobretudo a maneira doce e meiga com que o tratara, o carinho com que o envolvera, a alegria que sentia por estar a seu lado, que o intrigava. Ela amava-o? Esta interrogação desfazia-o. Aniquilava-o. Regressou ao quartel, deitou-se, dando ordens para que não o incomodassem. Estava doente, muito doente. No dia seguinte não se levantou, não se alimentou, nem abriu a janela do quarto. Aquele encontro desfizera-o, aniquilara-o por completo. Dois dias depois, muito a custo levantou-se. Dominava-o uma perturbante e dolorosa angústia.
Surgiram reencontros. Infelizmente, momentâneos e raros. Seguiram-se dias de calma, tranquilidade e, sobretudo, de esperança. Umas vezes encontravam-se, conversavam. Outras viam-se de longe. Ela no Fiat azul, ele a subir ou a descer a Miragaia.
Um dia decidiu tolher-lhe os passos. Descobriu onde morava, que chegara a casa e bateu-lhe à porta. Do cimo do saguão que dava para o hall de entrada, ela, não se mostrando admirada, parecendo até que o esperava, que contava com ele, saudou-o com enorme alegria. Conduziu à sala, passando uma parte da tarde em alegre convívio. Não viera a coisa nenhuma. Ela, adivinhando-o, nem lhe perguntou ao que viera.
E foi no sarau da festa de São João que voltou a encontrá-la. Inicialmente rejeitara convites que o comandante lhe disponibilizara. A ele e a todos. Não tinha nem queria ter amigos a quem os entregar. Nem se lembrou que ela estivesse interessada. No dia seguinte encontrou-a na rua. Falou-lhe da festa, Para espanto seu, ela confessou que adorava ir. Ele emudeceu. Bem que poderia ter guardado os convites. Dois. Um para ela outro para a avó. Desesperou. Havia de os arranjar, custasse o que custasse.
Regressou a casa e procurou o comandante. Deparou- com duas desistências. E na tarde do dia seguinte esperou, ansiosamente, pelo Fiat azul. De novo, meiga, sorridente e bela como nunca, assomou no cimo do saguão. Convidou-o a subir. Tão grata que lhe ficava. Não tanto pelos convites mas, sobretudo, por ele estar ali. A mãe apareceu mas retirou-se de imediato. Para além de muita pressa não queria incomodar. A Jerónima havia de servir um chá com biscoitos.
A tarde foi doce e envolvente. Falaram, riram, sentiram-se um para o outro. Nem por nada deste mundo faltaria ao sarau. As luzes, as cores, os sons haviam de revesti-la duma áurea de sublimidade, cobri-la com um manto de excelência, orná-la com o resplendor da sua beleza. Ela fitava-o com atenção, olhava-o com carinho, sorria-lhe com doçura, enlevava-o com amor. Foi a noite mais envolvente de todas as noites, a noite de que nunca mais haviam de esquecer-se.
Trucidou-a dias depois, a predição da partida. O incontrolável e inconcebível limite de tão profunda relação. Ele, enfiado num casulo de indiscernimento, embora muito a medo, anunciou-lhe que partia, num destino incerto, nebuloso e indefinido. Consubstanciava, desta forma, a ridícula rejeição do destino que só haviam delineado, de que eram donos e que só eles conheciam. Ela revoltada, sentida, estigmatizada, retorquiu com mágoa:
- Na próxima semana, também parto, definitivamente. Para Londres.