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PERDIDOS NO MATO

Quinta-feira, 16.04.15

A noite era escura, muito escura. O céu estava de tal forma encoberto que nem se via uma única estrela. Álvaro e o pai caminhavam nos matos, atravessando a ilha, ora andando sobre a fresca alfombra das pastagens ora furando tapumes, saltando valados e grotões, trilhando veredas e atalhos sinuosos. Haviam partido de Ponta Delgada, à noitinha, com destino à Fajã Grande. A certa altura, Álvaro, muito a medo, quebrando silêncio, interrogou o pai:

- Ó pai, no fim da missa o senhor padre reza uma oração para afugentar os espíritos malignos que vagueiam pelo mundo para perdição das almas… É verdade que aparecem espíritos ou almas do outro mundo, durante a noite?

O pai, mais preocupado com as dificuldades de tão ignóbil caminhada, nem lhe respondeu. Mas uns momentos depois, ou porque o miúdo insistisse ou porque outro assunto o preocupasse, parou e disse-lhe:

- Espera! Olha Álvaro, perdidos estamos nós. Mas não te preocupes. Antes de chegarmos às relvas vínhamos por um atalho. Era fácil encontrá-lo. Agora entramos nas pastagens, andamos por carreiros formados pelos passos das pessoas, através da erva, separadas por cancelas, tapumes de hortênsias e por grotões e ribeiras. É difícil seguir pelo carreiro certo sem nos desviarmos. Mas vamos voltar a encontrá-lo. Não te preocupes.

- Ai, meu Deus! Tenho tanto medo, pai! E agora? Perdidos no mato! Vamos ficar aqui até de manhã?

- Não. Temos que seguir para nossa casa. Vamos procurar o caminho e vamos encontrá-lo. – Calou-se, por uns momentos. Pouco depois, prosseguiu: – Olha filho, há aqui um tapume de hortênsias. Perto deve haver a cancela que dá para a relva seguinte… Vamos procurá-la.

Calaram-se, novamente. Foi o miúdo, de novo, a quebrar o silêncio:

- Pai, encontrou alguma cancela?

- Não, Infelizmente, não. Estamos mesmo perdidos Mas acalma-te. Vamos resolver isto.

De novo reinou um silêncio temeroso entre eles, interrompido de vez em quando pelo bramido de uma ou outra onda mais afoita, lá ao longe, a desmoronar-se contra os rochedos. Pouco depois o pai, como se acordasse de um pesadelo, ordenou:

- Vamo-nos sentar um pouco.

- Pai, a erva está molhada!

- É do sereno. Senta-te em cima da minha froca.

- Ó pai, cada vez tenho mais medo. Vamos ficar aqui toda a noite?

- Não. Vamos resolver isto e já. Descalça os sapatos!

- Ó pai! Para quê? Tenho os pés quentes e a relva está toda molhada…

- Faz o que te digo. Descalça-te e dá-me os sapatos. Vou guardá-los na manga da minha froca, até ao Risco, onde acabam as relvas. Do Risco para lá já os podes calçar. Agora vais andando à minha frente, muito devagar, caminhando com cuidado de modo a sentires a relva debaixo dos teus pés, até encontrares o carreiro, onde ela está amachucada. Estás habituado a andar descalço. Passa muita gente por aqui. A erva está muito amachucada no sítio onde as pessoas passam. Assim, com os teus pés, vais conseguir encontrar o carreiro.

- Agora percebo. Dê-me a mão, que tenho tanto medo. Mas descanse, pai, que eu vou encontrar o carreiro.

- Vamos! Vai andando devagar, arrastando os pés… Assim…

Seguiu novo e prolongado silêncio. Até o marulhar das ondes parecia ter-se perdido. O pai insistia com Álvaro, animando-o, incutindo-lhe ânimo:

- Coragem, Álvaro. Não desistas! Segue devagarinho… Procurando bem…

De repente Álvaro emite um enorme grito de alegria:

- Pai! Encontrei! É aqui! Olhe, apalpe com as suas mãos e veja. É aqui, não é?

- É! É! Bravo! Estás a ver como foi fácil. Agora vai sempre direitinho, à minha frente, pelo carreiro adiante…

- Pai, mas eu queria ir ao seu lado, queria ir de mão dada consigo. Tenho medo. Olhe ali um vulto. É uma vaca deitada? Eu tenho tanto medo.

- Só deves ter medo de nos perdermos outra vez… E eu acho que continuamos perdidos. Estamos a andar na direção de Ponta Delgada e não na direção da Fajã.

- Ó pai! Outra vez perdidos! Nunca mais chegamos a casa. E agora? O que vamos fazer?

- Agora vamos ter que resolver outra vez. Mas a noite está muito escura e não se vê nem a Ursa Maior nem a Estrela Polar… Não sabemos para onde fica o norte e por isso não sabemos se vamos na direção da Fajã. Mas vamos continuar a andar e quando encontrares uma parede, paras.

- Está bem, pai.

Novo silêncio, até que uma pequena parede, de pedras toscas, cobertas de musgo lhes obstruiu a caminhada:

 – Olhe! Estamos com sorte. Há aqui uma parede.

- Então vamos parar.

Álvaro sentou-se. Era uma criança. Tinha pouco mais do que sete anos. Para além de cansado, começava a sentir sono. O pai, aproximando-se da parede, acariciou-a com as mãos de ambos os lados. Depois, com muita determinação e certeza, disse:

 - Íamos enganados, pois íamos. Nesta direção, regressávamos a Ponta Delgada. Vamos voltar para trás, porque a Fajã é na direção contrária.

- Como é que meu pai descobriu.

O pai, pacientemente, explicou:

- Eu nunca andei na escola, mal sei ler e escrever, mas durante a minha vida, aprendi muito, com o trabalho e com meu pai, teu avô, que já morreu há muitos anos. Ele ensinou-me que quando há nevoeiro ou andamos numa noite escura no mato e não se vê nada, nos podemos orientar pelas paredes, porque as paredes e os muros voltados para o norte recebem menos sol e, por isso, têm mais humidade e têm mais musgos e mais ervas. Foi isso que eu descobri, quando estive a apalpar a parede. Fiquei a saber para que lado fica o norte. Ora nós íamos a andar para o norte e como a Fajã fica para sul, foi só voltar ao contrário. Agora tenho a certeza que vamos na direção certa.

- Boa, pai! E agora? Demoramos muito, até chegar acima da Rocha da Ponta? Já deve ser muito tarde. Deve ser quase meia-noite.

- Ainda não. Mas se fosse, qual era o problema?

- É que toda a gente diz que a meia-noite é a hora má, é a hora do demónio, em que ele aparece e aparecem muitas outras coisas. Avó até sabe uma oração que reza para o afugentar para longe, quando está acordada à meia-noite. Tenho tanto medo pai e ainda falta tanto para chegarmos a casa.

- Já te disse para não acreditares em nada disso. Tudo são coisas que as pessoas inventam:

- E, depois de passar na Ponta, a ainda temos que descer a ladeira das Covas…

- E o que tem a ladeira das Covas?

- Pai não sabe? As pessoas quando passam lá ouvem gemidos. Acredite, pai! Toda a gente que passa lá ouve. Até o Senhor Padre Silvestre quando vai dizer missa à Ponta ouve. Ele ficou cheio de medo. Agora até leva sempre dois homens com ele e dizem que os três ouviram os gemidos. A tia Juliana diz que aquela ladeira tem coisas do outro mundo porque Tia Fraga contava que antigamente um homem viu lá uma mulher com pés e mãos de cabra.

- Isso são tudo tolices! Já foi descoberto o que eram os gemidos que toda a gente ouvia. Era a Ana do José Felício que andava por lá a gemer. Ontem um grupo de homens foi-lhe fazer uma espera, na relva do João Cristóvão. Esconderam-se toda a tarde na relva e à noitinha viram-na chegar e esconder-se numa furna. Eles calaram-se bem calados. Quando ela sentia alguém passar na ladeira, punha-se logo a gemer e a gritar. Eles pensavam que era apenas para assustar o senhor padre Silvestre. Mas depois apanharam-na e deram-lhe uma sova e ela lá explicou que só queria que as pessoas da Ponta tivessem medo de passar por ali, para não irem levar a moenda ao moinho do André e as deixassem no seu, que ficava para além da ribeira do Cão. Presta atenção ao carreiro e não penses mais nas tolices que te metem na cabeça.

- Fico mais descansado… Mas já deve ser tão tarde… E ainda falta tanto para chegarmos acima da Rocha da Ponta. E aquela rocha é muito difícil de descer… e assim às escuras…

- Ou eu me engano muito ou quando chegarmos acima da rocha já vamos ter Lua. Vai é com cuidado e atenção para não caíres e não nos perdermos outra vez. Tua irmã deve estar muito preocupada. Temos que andar mais depressa.

- Vamos, pai! – Disse Álvaro cada vez mais sonolento

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publicado por picodavigia2 às 10:10





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