PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NO MOINHO DE TIO MANUEL LUÍS
A Maria e o José foram incumbidos de ir levar a moenda ao moinho de Tio Manuel Luís enquanto os pais iam, como de costume, trabalhar os campos. Como a moenda fosse grande e pesada os pais dividiram-na por dois sacos mais pequenos, colocando um às costas do José e o outro à cabeça da Maria. De seguida avisaram-nos. Que tivessem muito cuidado, sobretudo ao subir a canada da Ribeira das Casas e ao atravessar a ponte e que esperassem que o Tio Manuel Luís lhes moesse o milho para trazerem os sacos de volta, cheios de farinha. É que a mãe precisava da farinha para a fornada da tarde. Ao chegar a casa haviam de ir buscar o António e o Carlos, à Fontinha, a casa da avó. Viriam com eles para casa e haviam de esperar que o pai e a mãe, regressassem da Cabaceira onde iam sachar e mondar duas belgas de inhames. Trariam dois cestos deles.
A distância entre a sua casa, na Assomada, e os moinhos, para lá da Ribeira das Casas era bastante longa e era preciso ir com cuidado, sobretudo para o José não tropeçar nalguma pedra e fazer mais uma tupada num dedo ou até cair. Além disso deviam ir bem agasalhados, pois era inverno e fazia muito frio. Além disso, junto à ribeira era sempre mais fresco.
Orgulhosos, pezinhos descalços, as duas crianças, o José de nove e a maria de oito, partiram. Para encurtar caminho, decidiram subir a Fontinha, até ao palheiro de Tio José Teodósio. Aí, entraram na canada que dava para o Mimoio, onde os pais tinham um cerrado de milho. Depois seguiram até à Ribeira das Casas. Era só atravessar a ponte e subir a canada paralela à ribeira, até ao Moinho de Baixo, como a mãe havia sugerido.
O Mimoio era um lugar muito bonito e da canada via-se muito bem a torre da igreja e as casas da Rua Direita, da Via d’Água e, sobretudo as da Tronqueira que ficavam bem mais perto. Uma bela vista que se estendia pelo rolo, até ao Ilhéu do Cão e à Ponta. Lá longe a Baixa Rasa, o Monchique e um outro navio, a atravessar o Atlântico, talvez vindo da América e que ia não se sabia para onde.
As duas crianças iam muito contentes, embora tremessem de frio. As moendas eram pesadas mas a Maria bem chamava o José, sempre muito lento e desejoso de olhar para todos os lados, para que se apressasse, a fim de que fossem dos primeiros a chegar ao moinho e tio Manuel Luís os despachasse bem cedo. Alem disso, andar de pressa era uma boa maneira de aquecer o corpo e sentir menos frio.
Depois de algum tempo de caminhada, muito cansaditos, chegaram ao moinho. A canada que lhe dava acesso também era muito bonita e a Maria adorava ouvir o correr da água por entre as pedras, ver os passarinhos a saltitar do ribeira para as relvas, a depenicar aqui e acolá cantarolando, e, sobretudo, apreciar o cair da água pela rocha abaixo até encher o Poço do Bacalhau. Mas deste tinha medo. Nunca se havia de aproximar dele. Diziam que, de noite, se ouviam gritos, de um homem mau que, antigamente, tinha sido atirado lá para dentro, precisamente por ter sido muito mau em vida.
Quando chegaram ao moinho, apareceu-lhes o tio Manuel Luiz. Parecia que tinha sido pintado de branco do cocuruto aos pés, pois estava com a cabeça, a cara, as mãos e a roupa toda salpicada de farinha. Mas era muito bondoso. E, ao vê-los, veio, de imediato, tirar-lhes os sacos de milho.
- Então meninos! Foram vocês que vieram hoje trazer a moenda? Podem ir embora e vir amanhã buscar as sacas. Logo de manhã estarão prontas.
- Mas a minha mãe precisava da farinha para cozer o pão hoje. – Disse a Maria um pouco tímida. - Já não temos nem pão nem bolo para a ceia.
- Nem farinha para fazer papas. – Acrescentou o José que se pelava por papas com leite.
- Bom, - disse tio Manuel Luís, limpando a farinha da face com as costas da mão. – Sendo assim, há aqui uma moenda que pode esperar para a manhã. Vou moer a vossa na vez dela. Enquanto a moer vocês podem aproveitar para ver o moinho e dar um passeio pelos campos. Mas se preferirem podem ficar aqui sentadinhos.
Sentaram-se os dois num banquinho que existia ao lado da porta, observando toda aquela geringonça e o barulho que fazia. Um barulho infernal. Tio Manuel Luís pegou nas duas moendas, cortou-lhes os cordões e despejou todo o milho numa enorme caixa, em forma de pirâmide invertida e que estava presa aos tirantes do moinho, descaída sobre uma grande mó que rodava sobre uma pedra redonda com bordos ao redor. Os grãos de milho, através dum leve movimento, saíam da caixa por uma calha que, estremecendo, os ia deixando cair, lentamente, num buraco redondo que existia no meio da grande mó. A farinha, branquinha como a neve, ia saindo debaixo da mó e era apanhada numa caixa, colocada no chão. De vez em quando tio Manuel Luís pegava num punhado de farinha, passava pelas mãos, a fim de saber se estava grossa. Neste caso, subia uns degraus ao lado da mó. Ia afiná-la, a fim de que a farinha saísse mais fina.
O moinho era um interessante mecanismo que aproveitava a força da água para se mover, permitindo moer grãos de milho. A água que caía da rocha e deslizava pela ribeira era desviada por uma levada, uma espécie de rego que havia sido construído e onde a água se projetava sobre uma enorme roda com rodízios e que a movimentava. Era o movimento desta roda que punha em ação toda a engrenagem do moinho. O José e a Maria observavam tudo isto, muito admirados. Tio Manuel Luís ainda os levou ao inferno do moinho, ou seja a uma loja que existia por baixo, a que se tinha acesso por uma porta exterior, e onde existiam uma série de rodas dentadas que com o impulso da roda exterior se iam movimentando umas às outras, fazendo um barulho infernal. Eram estas rodas que faziam mover a mó. No andar de cima existia uma velha cama onde tio Manuel Luís dormia. Tinha que ficar ali de noite e lá dormir porque quando acabava uma moenda eles tinha que encher a caixa com o milho d’outra.
Por fim tio Manuel Luís pegou-lhes nos sacos e encheu-os de farinha, depois de retirar a sua maquia, seja, meia quarta de farinha que tirava sempre de cada moenda para o pagamento de a moer. De seguida e sempre muito paciente amarrou-lhes os sacos colocando um às costas do José e outro à cabeça da Maria, dizendo-lhes:
- Estou a ficar velho, já quase não posso pegar numa moenda. Qualquer dia vou entregar o moinho ao meu filho Tobias. Ele é que vai ficar aqui no meu lugar. Ele inventou e está a construir uma engenhoca com a qual não é preciso dormir aqui, porque quando acabar uma moenda ele amarra uma corda à mó que está presa a uma prancha de madeira, la fora. A corda deita a prancha abaixo e a água é desviada e deixa de ir para cima da roda e o moinho para por si. Assim já podemos dormir em casa. Modernices! – Concluiu o tio Manuel Luís, limpando a farinha da cara e despedindo-se das duas crianças. – Vão com cuidado! Ouviram?