PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A SAFRA DO SARGAÇO
Meu pai levantava-se, todos os dias, muito cedo. Alta madrugada! No Inverno, ainda noite escura. Calçava umas botas de borracha, pegava num bordão, numa corda e numa foice e ia à lagoa das Covas, para os lados da Ponta, ceifar um molho de erva que trazia às costas, a pingar e a verter-lhe água pelo corpo. Era o alimento do gado leiteiro, que o alfeiro não merecia tão grandes sacrifícios. A maioria das vezes quando eu e meus irmãos nos levantávamos, ele já tinha ido e voltado, com a tarefa eximiamente cumprida, pese embora chegasse a casa todo molhado.
Esta rotina diária era quebrada quatro, cinco ou seis vezes por ano. No Inverno. Era nos dias em que, após o arrancar das profundezas do oceano, a maré da madrugada, acossada pelo marulhar das ondas, enchia o Rolo de sargaço. Nesses dias, meu pai, ao chegar à Ribeira das Casas, mudava o seu rumo. Alterava o seu destino. Dirigia-se para o Rolo. Como era dos primeiros a chegar, fixava-se logo ali, a seguir ao ilhéu do Constantino, local onde a safra era mais proveitosa. Depois de chegar delimitava o seu terreno, demarcando-o com uns pedaços de cana, de paus ou até com uma ou outra peça de roupa. Muitos outros homens seguiam-lhe o exemplo. Alguns, até, antes dele. De seguida, pedia a alguém que nos avisasse da sua inexorável mudança de planos. Que lhe levássemos os garfos de tirar esterco, cestos e café com pão. Então começava a trânsfuga do sargaço que as ondas traziam, atirando-o mais para cima, para sítio em que a maré, quando voltasse a subir, com as suas altivas e bravias ondas não lhe chegasse e, assim como o tinham trazido, o levasse. Nós acordávamos sobressaltados e corríamos ansiosos, à frente, com os cestos e os garfos. Minha irmã, atrás, com o bule do café, um pedaço de pão e queijo ou doce de laranja. A manhã era toda para a trânsfuga. A maré, ao subir, mesmo que as ondas acalmassem, levava todo o sargaço que não tivesse sido acautelado. Às vezes, com um pouco de sorte, caldeado com o sargaço, vinha um polvo, ainda vivo. Meu pai, com agilidade, virava-lhe o capucho e havíamos de o comer à ceia, guisado com batata branca.
Minha irmã voltava a casa e, antes das badaladas do meio-dia, na torre da igreja, já lá estava, com um cesto carregado de pão, torresmos, toros de linguiça ou tortas de ovos e inhames, pão e um bule de café.
Nós, famintos, recebíamo-la em festa. Ao redor já muitas famílias se sentavam para o bródio. Era sobre o sargaço, castanho e perfumado a maresia que nos sentávamos, ao redor da toalha. Era como se fosse dia de festa.
De tarde o trabalho era bem mais árduo. Todo aquele sargaço tinha que ser transportado em cestos, acarretados às costas, a pingarem água, para o lago. Cada família tinha o seu lago. Os lagos eram pequenos cubículos de terreno, entre o Rolo e o caminho da Ponta, divididos com pedras do rolo, ordenados e organizados, ladeando pequenos corredores, formando autênticas ruas. Uma central e mais larga, outras transversais, mais estreitas. À medida que os montes subiam, formando altos paralelepípedos, transformavam-se em espécies de casas ou edifícios, que ainda mais caracterizavam aquele local, assemelhando-o a um pequeno povoado. Cada qual pretendia ter um monte mais alto do que o do vizinho mas todos acalcavam muito bem o seu sargaço para que este aquecesse bem, fermentasse e apodrecesse transformando-se em excelente estrume para os campos.
De tarde o calor era muito. A sede grassava. Meu pai mandava-me buscar água. Ali bem perto, mesmo ao lado da Ribeira das Casas havia uma lagoa que pertencia ao Fernando de Ti Manuel Rosa. Era meu vizinho e isso facilitava-me a entrada numa propriedade privada. La num canto, protegido por uma enorme parede voltada a nordeste havia uma nascente que abastecia a lagoa. A água era fresquíssima e muito saborosa. Pegava na maior folha de inhame que ali havia e transformava-a num recipiente que enchia e trazia a meu pai. Ele fazia um furo na folha. A água esguichava e ele bebia como se fosse duma torneira. Bebia e voltava a beber. Depois passava a meus irmãos que também se deliciavam com a água. A noite chegava. Minha irmã regressava com a ceia e com duas lanternas. Bolo frito, queijo e café. Depois, meu pai acendia as lanternas. Uma ficava no rolo, onde se continuavam a encher os cestos. Outra no lago cada vez mais alto. Alguns só com escada. O Rolo era agora um mar de luzes a petróleo e petromax. Um espetáculo verdadeiramente deslumbrante.
Terminada a safra do sargaço, já noite adiantada, cansados mas felizes e contentes, voltávamos a casa.