PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
RELIGIOSIDADE
A principal e mais importante manifestação religiosa do povo da Fajã Grande, como aliás de quase toda a população dos Açores, centrava-se na devoção ao Espírito Santo e nos festejos que a mesma protagonizava. Na verdade o sentimento religioso do povo da Fajã Grande, na década de cinquenta e nas anteriores, tinha uma expressão muito ampla, peculiar e emotiva nas festas do Espírito Santo, realizadas nos seis impérios existentes na freguesia: Casa de Cima, Casa de Baixo, Ponta, Cuada, São Pedro da Casa de Cima e São Pedro da Ponta. Embora grande parte das atividades celebradas em honra do Paráclito se realizassem nas casas que cada império possuía, uma boa parte das mesmas centravam-se na igreja paroquial e tinham o seu epicentro na celebração da missa, geralmente festiva e cantada. Sabe-se que esta devoção, no caso das Flores e do Corvo, onde não há memória de abalos sísmicos como nas restantes ilhas açorianas, se deveu à luta que o povo tinha que travar para fugir às frequentes investidas e ataques dos piratas que, frequentemente, demandavam as costas da ilha para atacar, incendiar, roubar e destruir. Além disso, tal como nas outras ilhas as epidemias e as pestes grassavam em abundância. Também elas, inesperadas e destruidoras, terão feito avivar, em muito a devoção com o Espírito Santo.
A segunda mais clara manifestação da religiosidade do povo fajãgrandense na segunda metade do século XX, parece estrar ligada à devoção das almas, ou seja, ao culto dos mortos. Na verdade, a devoção e o culto das almas ocupavam, literalmente, um lugar de relevo no top da religiosidade e das celebrações litúrgicas, na Fajã Grande. Havia entre toda a população uma muito acentuada espécie de “cultura do além”, repleta, por um lado, de mitos, lendas, tradições, extravagâncias, ingenuidades e medos, mas, por outro, eivada de convicções embora limitadas, certezas geralmente inconsequentes, esperanças inexplicavelmente obscuras e de quotidianas e convictas realizações. Era sobretudo no mês de Novembro, cognominado de mês das almas que esta religiosidade se tornava mais patente. Neste mês, todos os dias, com exceção dos dias um e dois e dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a novena das almas. Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa finda a qual era rezados responsos por alma dos familiares de todas as famílias da freguesia, incluindo a Cuada e a Ponta. O pároco, devidamente paramentado, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da Fajã, agrupados ao longo dos vários dias, desde o cimo da Assomada e até ao fim Via d’Água. Como as famílias obviamente eram muitas mais do que os dias do mês, o pároco agrupava em cada dia o número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados. No dia dois fazia-se romagem ao cemitério, enquanto os sinos dobravam a finados. Era o chamado enterro do Velho Laranjinho. No dia um do mesmo mês, de tarde, tirava-se uma derrama para as almas. Homens percorriam todas as ruas da freguesia juntando o milho que cada família oferecia e que ia sendo armazenado em casa do mordomo. Este era vendido e o dinheiro da venda, assim como o das línguas dos porcos, arrematadas por altura das matanças, era destinado a celebrar missas pelas almas. Além disso cada família, consoante as suas posses mandava celebrar, frequentemente, missas, por alma dos seus familiares falecidos. Muitas pessoas, em momentos de aflição ou ao serem fustigados por alguma desgraça, recorriam às Benditas Almas, prometendo fazer uma derrama pela freguesia.
Outra estranha forma de religiosidade verificava-se durante a Quaresma. Era o Cantar no Outeiro. Sobranceiro à Fajã Grande, quase paralelo ao Pico da Vigia, fica o Outeiro, em cuja parte mais alta, no meio de imensa e diversa vegetação, está colocada uma enorme cruz, branca, ingente, altiva e teúrgica, como que a abençoar a freguesia. Antigamente era junto a esta cruz que, nas noites das terças e sextas-feiras da Quaresma, um grupo de homens, quer chovesse, quer ventasse, depois de subir por um trilho estreito e íngreme, ajoelhava e entoava cânticos religiosos e impropérios diversos e prolongados. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os telhados das casas da freguesia. Então todos os lares as pessoas paravam o trabalho ou suspendiam a ceia e ajoelhavam e rezavam Padres-Nossos e Ave Marias, de acordo com a orientação dos cantores e, unindo-se às preces deles, suplicavam auxílio para os necessitados, prosperidade para os pobres, perdão para os delituosos e beneficência para os infelizes e sofredores.
Outra interessante forma de religiosidade fajãgrandense eram as Procissões das Rogações, realizadas nas Têmporas de Setembro ou quando havia secas prolongadas. Eram procissões de penitência e oração, sem Santos e sem andores, onde apenas seguia a cruz paroquial, revestida de manga roxa. Depois os homens, a maior parte de opas, as mulheres de cabeça coberta e no fim o pároco que aspergia e benzia os campos por onde a procissão passava, ao mesmo tempo que entoava, em latim e enquanto os sinos dobravam, a ladainha de todos os santos. Nos períodos de seca era, geralmente, o povo que as pedia e o pároco levava uma pequenina e velha imagem de Sant’Ana, a quem se dirigiam vários cânticos e preces, seguidas das ladainhas. As procissões das Rogações normalmente percorriam as Courelas, Rua Nova, a Via d´Agua e a Tronqueira, ou seja as zonas onde as terras eram mais próximas do mar, atingidas pela salmoira, mais secas e onde a recolha dos produtos agrícolas se verificava mais cedo.
Outras manifestações interessantes eram as festas religiosas, da Senhora da Saúde, São José, Senhora do Rosário, Santo Amaro, Senhor dos Passos, Páscoa e Natal e ainda as da Comunhão Solene e primeira Comunhão. Na igreja também se realizava a Via Sacra, na Quaresma e as devoções à Senhora de Fátima e ao Coração de Jesus, nos meses de Maio e Junho e as novenas do Natal, estas realizadas de madrugada.
Em quase todas as casas rezava-se o terço à noite e as pessoas saudavam-se com expressões religiosas: “Fique com Deus”, “Deus te ajude”, “Deus vos nos dê muita saúde”, “Vamos passando melhor do que merecemos a Deus”, etc., etc. Ao passarem por uma cruz ou pela igreja e ao ouvirem as Trindades, todos os homens tiravam os bonés ou chapéus. No caso das Trindades as mulheres rezavam o “Anjo do Senhor, anunciou a Maria”. Á noite rezava-se ao “Anjo da Guarda” a seguinte oração: “Anjo do Senhor/Meu zeloso guardador/A ti me confiou a piedade divina. Hoje e sempre me rejas, guardes e ilumines. Amen.” Em qualquer lugar onde morria, repentinamente, uma pessoa colocava-se um nicho com uma cruz, assim como nos cruzamentos de três caminhos. Muitas crianças andavam com o escapulário da Senhora do Carmo e havia algumas mulheres, sobretudo na Ponta, que vestia permanentemente o hábito da Senhora do Carmo. Muitas mulheres e crianças usavam uma cruz ou uma medalha ao pescoço.