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OS MURMÚRIOS DOS BÚZIOS

Segunda-feira, 13.07.15

Viver junto ao mar, numa casa simples, pequenina, ou numa adega transformada em moradia mas ornada com flores de algas e perfumada com os afagos oscilantes das marés, senão deslumbrante é encantador Mas se quisermos ser mais precisos, afinal, numa ilha, por mais alta e maior que ela seja, nunca se mora junto do mar. Na verdade, numa ilha é sempre o mar que mora junto de nós. É o mar que impera no nosso quotidiano, que o cerceia com um marulhar contínuo sobre as rochas, com uma maresia persistente, decalcada em ondas baloiçantes, a perderem-se num vaivém irrequieto, umas vezes embravecido outras ternurento, mas sempre a trazer uma salubridade adocicada, uma brisa inebriante, um resfolgo de liberdade.

Desde criança que que ma habituei a viver junto do mar, embora noutra ilha, mais pequenina e sem montanha. Vezes sem conta ouvia a minha avó, de olhar fixo no horizonte, contar: quando Deus o criou, o mar pediu-Lhe que o deixasse crescer um cabelo em cada ia. Deus não autorizou. Então o mar pediu-lhe que o deixasse comer uma pessoa por dia. Ou então explicava: o mar, para além de maior e de mais inquietante, também é mais rico do que a terra. Mas não eram as histórias, os tesouros dos navios encalhados, nem o ouro das caravelas perdidas, nem os cofres dos piratas naufragados, nem sequer o pescado fluente, quotidiano, despejado sobre o cais, a ressuscitar o reboliço da lota que me cativava. Por nada disso ansiava. Do mar, eu queria apenas os búzios.

Nesses tempos de criança, lembrava-me frequentemente de ter lido no livro da quarta classe um poema que dizia: Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. É este mar salgado, recheado de história e de saudade, paternal e amigo, que me atirava respingos de salmoura, que, por vezes, até me cobria de espuma e que me transformava numa espécie de escudo translúcido que me protegia de nevoeiros e caligens. Belo poema aquele, uma espécie de cântico dos cânticos, um elogia da maresia, talvez o hino daquele torrão azulado, enorme, que, por vezes e em sonhos, me parecia tornar o nundo infinito. Mas do mar não queria nem o infinito, nem o azul, nem sequer as lágrimas dos seus heróis, transformadas em cristais de sal. Do mar, eu queria apenas os búzios.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Terminava assim aquele belo e sublime poema de Fernando Pessoa. E um poeta nunca se engana a versejar sobre o mar. E sobre o mar não faz versos apenas um poeta. Talvez até muitos outros poetas tivessem trovado sobre o mar. Quando morrer quero levar comigo um pedacinho do mar, para recuperar o tempo que vivi sem ele. Escreveu Sofia noutro belo poema. Mas também do mar não queria outrora, nem quero hoje, os poemas, embora me deleite a apreciar alguns deles. Do mar, eu queria e quero apenas os búzios.

Nestas tardes solarengas dou comigo a caminho do mar. Por vezes, até nas madrugadas sombrias, nas tardes enevoadas e nas noites de Lua Cheia escapulo para junto do mar. É uma mágoa, um tormento, uma angústia, uma consumição, ver este enorme lençol de água, sem Sol, sem uma réstia de luminosidade que, ao menos, tivesse ficado esquecida do dia anterior. Mas dura pouco esse cenário. A aureolar-se aos poucos, depressa se vai transformando num clarão que clarifica e enternece as rochas, os baixios, os escolhos e até o sargaço que, arrancado das profundezas pela força das correntes, flutua suavemente sobre as águas. Mas do mar não quero nem as rocha nem os baixios, nem escolhos, nem sequer o sargaço, mesmo já postado em terra e a secar, no estio. Do mar, quero apenas os búzios.

Depois são as ondas, umas vezes pequeninas, lisas, sonolentas, outras enormes, gigantescas, altivas, bravias, mas sempre a irem e a virem, num vaivém ritmado, umas vezes mais suave e embelecido outras, agreste, toldado e raivoso, a saltarem por entre os esconderijos das enseadas, repletos de sombras e de mistérios ou a enrolarem-se nos pedestais das baixas e dos ilhéus, cravejados de lapas e assolados por caranguejos. Mas do mar também não quero nem as ondas, por mais mansas e quietas que estejam, nem os ilhéus, nem o negrume basáltico dos baixios. Do mar quero, apenas, os búzios.

Estranha obsessão esta, a de nada mais querer do mar, para além dos búzios. E sabem porque do mar quero apenas e somente os búzios? Simplesmente para os colocar junto ao ouvido e ali ficar, um minuto que seja, a ouvir o suave murmurar do oceano. É que dentro dos meandros cavernosos e enroscados das suas conchas, o mar nunca é revolto, não há tempestades nem bravezas e as ondas, ali, ouvem-se sempre, suaves e doces, os seus murmúrios, como se fosse em eco, a baloiçarem sempre, num vaivém ternurento e meigo, semelhante, talvez mesmo igual, àquele com que as mães embalam os seus filhos.

Quão deslumbrantes são os murmúrios dos búzios.pico

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