PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TRELA COM TRELA
Passeava com um cão, preso por uma trela, pelas ruas desertas. Ninguém imaginava o bem que lhe sabia aquela brisa entontecida, vinda do mar, com um sussurrar meigo, apesar de distante. Já não conseguia ver a montanha cravejada de um negrume cinzento e espesso que aguentara todo o dia e jurava persistir durante a noite. Talvez a madrugada seguinte fosse um sorriso de ternura alvo. Às oito e vinte e cinco em ponto havia de passar em frente ao hall de entrada do grande hotel. Eram infindáveis os sorrisos flavescentes, o olhar trémulo, a decisão de continuar a prender o cão pela trela. Um encontro inesperado, de segundos que nada decidiria mas que os deixaria enlevados, embevecidos. E o cão a vociferar num inequívoco tormento de estar preso. Recusava postar-se ali, a dar trela, preso à trela, a negociar um milímetro que fosse de intimidade, de entrega, de respeito e de consideração. Se a trela lhe exigisse mais um esmerado sorriso, oferecê-lo-ia, de bom grado, mesmo que tivesse que se atrelar à trela. Ficaria ali a tarde toda, as tardes todas mesmo que a montanha nunca se descobrisse e o mar não cessasse o seu sussurrar roufenho. Tinha a certeza que se esvairia num entrega íntima e infinita. E foi o som surdo de um navio naufragado há séculos que o acordou. Era como se o infinito dedilhasse um piano e das teclas desafinadas saísse uma melodia seráfica, virginal. Voltou-se e, por momentos, desejou ser ele a estar preso à trela, a fim de prolongar indefinidamente a aquele encontro e a conversa que o envolveu. Desejava simplesmente uma trela com trela.
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OS ORATÓRIOS
Na Fajã Grande, na década de cinquenta, em quase todas as casas havia um oratório, geralmente, colocado em lugar de destaque sobre a mesa da sala e ao redor do qual, se colocavam fotografias de familiares, muitos deles ausentes para a América e um ou ojutro já falecido. Os oratórios eram pequenas caixas de madeira, com o lado da frente substituído por um vidro, uma espécie de nichos. Uns tinham o vidro encastoado em portas, mas na maioria o vidro era pregado na própria madeira do oratório. Estes raramente se abriam. Alguns destes oratórios eram mais trabalhados e eram encimados por uma pequena cruz, tendo na parte inferior ou na base uma espécie de peanha. Dentro eram colocadas imagens de Jesus, de Nossa Senhora ou de santos, destinados à devoção particular. As pequenas coroas do Espírito Santo que também existiam nalgumas casas eram colocadas no lado de fora, junto a algumas estampas de santos. O costume de ter oratórios em casa parece ter-se originado na Idade Média e manteve-se até ao século XX, sendo, muito provavelmente, trazido para as Flores e, mais concretamente, para a Fajã Grande, pelos primeiros povoadores. Nos primórdios do seu aparecimento, os oratórios seriam monopólio de reis, de príncipes, de nobres e das famílias mais abastadas. Nesses tempos eram muito ricos e artisticamente trabalhados, imitando pequenas capelas pintadas a ouro. Mais tarde generalizaram-se e as famílias mais pobres passaram a ter os seus altares particulares e à medida que o culto aos santos se propagava, estes altares ou capelas aumentavam. Este hábito popularizou-se e chegou às colônias portuguesas através dos colonizadores. O costume floresceu nos Açores, onde os frequentes perigos a que a população estava sujeita, não apenas pelas catástrofes naturais como também pelos ataques da pirataria obrigavam a população indefesa, a pedir a proteção de Deus, da Virgem e dos Santos. As igrejas umas vezes não existiam, outras ficavam longe das moradias e, além disso, de noite estavam fechadas. Os oratórios eram a solução que permitia ter sempre "à mão o santo da nossa devoção”, cuja proteção se implorava a cada hora do dia ou da noite.
Para além de um cruxifixo presente em todos os oratórios e que era colocado nas mãos dos moribundos quando se pressentia que a morte se aproximava, os oratórios na Fajã Grande, tinham geralmente imagens de Sagrado Coração de Jesus, de Nossa Senhora do Carmo, de São José, de Santa Teresinha e de Santa Rita. Junto deles existia uma pequena lamparina, com o vidro fosco e com chama de pouca intensidade que se acendia durante o dia e a noite sempre que alguns dos santos concediam o dom pedido ou impediam que uma desgraça acontecesse. E era muito o que se pedia aos santos aprisionados dia e noite nos oratórios.