PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TIRAPUXAS
Álvaro chegou a casa em grande correria. Abriu a porta de rompante e deu de caras com o pai e os irmãos já sentados à mesa.
Foi a Amélia que, em tom ríspido, o interrogou em primeiro lugar. Como ele não respondesse, levantou-se da mesa e apertando-lhe um dos braços, indagou com vigor:
– Só agora!? Este tempo todo para ir ao Outeiro Grande? Só agora? Só? – e, pegando num garrancho de incenso, retirado do monte de lenha guardada debaixo do lar, começou a bater-lhe nas pernas. Dos bolsos das calças curtas caiam maçãs em catadupa. – Toma, toma para andares mais depressa. E ainda por cima com as algibeiras cheias de maçãs. Está vendo pai? Eu não lhe disse? Está aqui a prova. Onde as foste roubar?
Álvaro, voltando-se para o pai, choramingando começou a gritar:
– Ai! Ai! Ó pai, não vê? Ela está-me batendo! Ai! Ai! Eu não as roubei. Foram do Delgado d’avó. Tia Juliana já me disse que quando passar por lá posso apanhar a fruta que quiser.
Logo o Alípio interveio em favor do vergastado, solicitando:
– Amélia, para! – Depois, voltando-se para o irmão - Se vieste pelo Delgado podias ter ido ter connosco à Cabaceira e ajudar a ceifar os feitos e a cana roca.
Álvaro retorquiu:
- Eu não sabia que vocês estavam lá!... Nem tinha foice…
- Ai! Que espertinho! Não tinhas foice… Mas podias a ir atrás fazendo as mancheias.- Retorquiu o Justino.
Passados alguns momentos, o pai, quebrando o silêncio, indagou:
- Álvaro diz a verdade. Onde apanhaste as maçãs?
- Pai, já disse. Foi no Delgado d’avó.
E porque é que vieste pelo Delgado? É muito mais longe …
Álvaro calou-se, Passados alguns momentos, embora de forma hesitante e comprometedora:
– É que…eu…
O pai insistiu, num misto de carinho e autoridade:
- Diz lá porque é que muitas vezes, quando vais levar as vacas ao Outeiro Grande, no regresso, vens pelo Delgado? Pelo Covão é muito mais depressa. Pelo Delgado demoras muito mais… E sabes que fazes falta em casa, para ajudar a tua irmã. Diz lá porque é que vieste pelo Delgado?
- Eu venho pelo Delgado porque tenho medo de passar junto ao Calhau das Feiticeiras. Dizem que elas aparecem lá todos os dias e tem as marcas dos pés bem marcadas pelo calhau acima.
Os outros riam às gargalhadas, recusando acreditar em tal patranha.
- Olha o medroso! – Disse o Alípio em ar de gozo. - Haviam era comer-te. Ó pai ele com as vacas passa e não tem medo. Sem as vacas é que tem medo…
- Eu com as vacas não tenho medo por causa das campainhas. As feiticeiras ouvindo as campainhas das vacas fogem logo. Quando não ouvem barulho é que aparecem…
Todos voltam a rir, mas cada vez mais indignados.
– E pai acredita nisso?
- Olha que já me vieram dizer que deitas paredes abaixo, que abres portais e não os tapas e que atiras pedras às ovelhas do Delfim. Isso não pode continuar assim…
- Ó pai, não atirei pedras às ovelhas do Delfim, foi só ao carneiro. Ele assim que me vê vem pendurar-se ao portal do curral e começa a dar marradas nas vacas.
Álvaro, apesar de revoltado com as culpas que lhe eram imputadas e de que a muito custo conseguia defender-se, sentou-se à mesa e pegando numa fatia de pão, queixou-se:
– Não deixaram queijo nenhum para mim. – Depois voltando-se para o Justino – Foste tu que o comeste todo. És um grande lambão!
Mas o Justino não se conteve e ameaçou-o com veemência:
- Olha que levas… Só comi o meu bocado. E era bem pequeno…
- Come pão sem nada e é se queres. Vou já arrumar a mesa. – Dizia a Amélia, preparando-se para levantar a mesa.
- Para quem não trabalha, pão sem nada já é bem bom.
- É, mas se eu não fosse levar as vacas do primo Luís ele não vos cortava o cabelo de graça…
Foi o pai que, com algum vigor, pôs termo à discussão:
- Basta! Calem-se e deixem-no comer. Ele bem precisa… Eu vou agora a Ponta Delgada e ele vai comigo.
Álvaro, deu um pulo e, saltando da mesa muito contente, exclamou, cantarolando:
– Ui! Já não tenho fome! Já não quero comer! – Vou com pai a Pon-ta Del-ga-da.! Zica-zica… Vou com pai para Ponta Delgada e vocês não vão-ão-ão…
O Alípio e o Justino juntaram-se em contestação. Que o pai nunca se importava com eles. Que nunca os levava a lado nenhum… Que só os mandava trabalhar… Que tinham que fazer tudo… E ele só a passear e sem fazer nada…
- Quando pai foi comprar o bácoro ao Lajedo, foi ele que foi consigo. – Lembrava o Justino.
- Quando foi levar o Boi Lavrado aos Terreiros para o embarcar no Carvalho, também foi ele que foi. – Acrescentou o Alípio.
E a Amélia ainda a lançar mais lenha na fogueira;
- A cunhada de tio Onofre pediu a pai para um de nós ir com ela às Lajes e foi ele que pai deixou ir.
O pai muito a custo lá tentou esclarecer:
- Então vocês não entendem que ele é o mais novo e se fica em casa não faz nada e eu não quero atravessar os matos da ilha de noite, sozinho.
- Pai, mas já é tão tarde! Como é que as estas horas pode ir e vir ainda hoje, a Ponta Delgada? Não é possível! Vá antes amanhã… - Interrogou a Amélia num misto de preocupação e desânimo:
- Está aí um barco de Ponta Delgada, o S. Pedro, de Mestre Gregório. Ele leva-nos para lá. Para cá vimos a pé.
- E o que é que pai vai fazer a Ponta Delgada, com este badameco? – Interrogou o Alípio.
O pai, então, esclareceu:
– Vocês não se lembram porque eram muito pequenos e os mais pequenos ainda nem tinham nascido, mas quando, há anos, eu vim da Terceira de me operar ao estômago, o nosso conhecido de Ponta Delgada, o mestre António Algarvio, veio de propósito aqui à Fajã para me ver. Por mais que eu viva nunca me vou esquecer. E, além disso, devo-lhe muitos favores. Agora, infelizmente, aconteceu-lhe o mesmo. Ele chegou da Terceira, de se operar, no último Carvalho, por isso tenho que lhe ir fazer uma visita e ver como ele está.
- Mas mãe morreu e ele nunca veio ver pai. E os nossos conhecidos de outras freguesias vieram quase todos, até os das Lajes. – Interpelou o Justino.
- Ele não veio porque não podia. Nessa altura já estava muito doente.- Esclareceu o pai.
Enquanto levantava a mesa, a Amélia ia murmurando:
- Favor que lhe façam, pai nunca se esquece de pagar. – Depois implorando - Mas já é tão tarde, mesmo de barco, vão chegar a casa muito tarde e o Álvaro não aguenta a viagem de noite.
- Olha! Fala por ti! Aguento, aguento. Vou levar os sapatos da missa. Nem os estrago, vamos de barco… - Afirmava Álvaro.
- Era o que faltava levares os sapatos bons. Leva os outros, os de pele-de-cabra, que te comprei na loja da senhora Glória, que ainda estão bem bons e estão quase a deixar de te servir. – Ordenava Amélia, enquanto Álvaro protestava;
- Não levo, não senhor. Eles já estão todos rotos e estragados e os monços vendo-me com eles começam a chamar-me “chinelinha”. Levo é os do domingo e pronto. E levo a roupa da missa: as calças castanhas e a camisa cor-de-rosa que o luto por mãe já acabou.
- Vais passear e ainda queres ir de roupa boa. Olha p’ra ele.
- Levas a roupa da escola e os sapatos de pele de cabra ou então vais com essa e descalço. E acabou-se.
– Não! E não e não!
- Álvaro! Faz o que tua irmã manda. Vai vestir-te que o barco deve estar quase a partir.
Álvaro saiu a correr. Depois, voltando, perguntou ao pai:
– O S. Pedro está no Porto Velho ou no Cais?
- No Cais. – E voltando-se para os outros filhos – Ainda é cedo. Vocês os dois vão ao Pocestinho. As últimas belgas têm muita lenha e já há pouca em casa. Tragam cada um o seu molho. Quando chegarem tirem o leite às vacas. E tu, Alípio vais levá-las. Elas hoje vão para a relva da Pedra d’Água. Vem pela Bandeja e traz um molho de incensos, para o gueixo que está à engorda, comer de noite. E tu Justino tiras o esterco do palheiro das vacas e despejas a poça que já está muito cheia. Deita-a no canteiro da batata-doce. E tu Amélia vais à Máquina levar o leite. Mas tira dois ou três litros para fazeres o queijo e como vai sobrar pouco, deita o desnatado ao porco. E não te preocupes se demorarmos. Eu com o pequeno não posso andar muito.