PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O FILHO DO SAMACAIO
O filho, o filho do Samacaio
Quando soube que no naufrágio da Urzelina,
O seu pai estava salvo,
Ai fretou logo, fretou logo um gasolina.
O filho, o filho do Samacaio
Partiu muito preocupado.
Mas pouco andava, pouco andava o gasolina
Melhor fora ter ido a nado.
O filho, o filho do Samacaio,
Quando chegou à Urzelina
O Samacaio, o Samacaio já partira
Só ficara, só ficara uma menina.
O filho, o filho do Samacaio,
Esperou anos, esperou anos em vão
Soube que o pai tinha morrido
Ai tinha morrido nos baixos do Maranhão.
O filho, o filho do Samacaio,
Ai chorou tanto, chorou tanto, tanto, tanto.
Nem a mulher e nem os filhos
Ai fizeram cessar o seu pranto.
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A AGRICULTURA (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Isto é que é uma preguiceira hoje em dia! No meu tempo não era nada disto! Não havia pedaço de terra que não fosse aproveitado. Cultivava-se de tudo um pouco. Os campos enchiam-se com culturas diversas embora, como hoje, o milho fosse o produto mais cultivado, uma vez que era a base da alimentação da gente desta freguesia, sendo ainda muito utilizado na alimentação dos animais, nomeadamente de galinhas e porcos. Era bonito ver por toda a freguesia cheia de estaleiros e mais estaleiros a abarrotar de milho. Algumas famílias, em anos de melhor e maior colheita tinham que construir um estaleiro suplente. Recorriam ao chamado estaleiro de pé de cabra. A sua construção era simples e fácil e poderia ser feito num canto qualquer da courela, junto de casa. Para a sua construção eram precisos três ou quatro paus do mesmo tamanho e algumas taliscas de madeira ou, em sua substituição canas. Os paus eram amarrados conjuntamente na extremidade mais delgada, sendo depois abertos de forma a afastar as extremidades opostas, simulando uma espécie de pirâmide, de três ou quatro faces, com os pés enterrados profundamente na terra, de forma ao estaleiro resistir a ventos e temporais. Depois eram pregadas as taliscas de madeira nas diversas faces da pirâmide, a fim de nelas se pendurarem os cambulhões. Mas a maioria das vezes recorria-se a uma construção mais simples e fácil que consistia numa espécie de grade, feita com dois, três ou quatro paus de lenha com várias tiras de madeira pregadas. Os paus eram colocados paralelos uns aos outros e equidistantes e de seguida neles se pregavam as ripas de madeira ou se amarravam as canas, com fio de espadana, formando uma espécie de grade, deixando, no entanto, numa das extremidades um espaço de cerca de um metro livre de tiras, sendo esta a parte que assentava no chão e servia de pés. Estes estaleiros eram encostados às empenas das casas e neles se iam pendurando os cambulhões. Para que os ratos não subissem pelos paus até às maçarocas, em cada um deles, logo abaixo das tiras, era enfiada um pedaço de lata velha, devidamente furada e presa de modo a não cair. Quem tinha um estaleiro cheio de milho tinha garantido o sustento no ano da própria família. E então se tivesse um suplente… Era uma riqueza!
Nas Furnas, no Areal, no Porto, no Estaleiro, no Mimóio, no Vale da Vaca, na Bandeja e em muitos outros lugares era bonito ver as pequenas belgas e os serrados muito bem trabalhados, sem mondas e verdejantes porque eram muito bem sachados, mondados e adubados e trabalhados. As terras, naquele tempo, produziam muito e de tudo. Os serrados e os currais próximos do mar eram destinados ao milho, mas neles também se cultivava, couves, feijão, batata-doce e, nos cantos milho de vassoura. Nas terras mais abrigadas e protegidas da salmoura, plantava-se alhos, cebolas e ainda se semeava a batata branca, As belgas e os serrados mais do interior, da Fontinha, Bandeja, Ribeira, Queimadas, Fonte Cima e Vale da Vaca eram quase sempre destinados ao milho e batatas, doces e brancas. Havia belgas onde se plantava batata-doce de latada, isto é, a batata-doce sem nenhuma outra cultura, nomeadamente a do milho. Eram as melhores! A sementeira do trigo já era mais rara, fora substituída pela do milho e verificava-se sobretudo no Areal, onde os terrenos eram mais pobres. Nestas terras, no meio do milho semeava-se o trevo, a erva da casta e outras forrageiras para, depois da apanha do milho, amarrar ali o gado à estaca.
Nos cimos das ladeiras, nas encostas dos montes, a separar as pastagens dos terrenos agrícolas existiram pequenas matas de faias e incensos que forneciam a lenha para a cozinha dos próprios proprietários. Muitas destas terras tinham belgas onde se cultivavam inhames e, nas mais próximas das casas batata-doce. Em muitas delas, sobretudo no Delgado, Cabaceira e Caminho da Cuada, cultivavam-se árvores de fruto. Videiras e figueiras proliferavam sobre os maroiços, nem necessitavam de ser trabalhadas, apenas deviam ser limpas de fetos e cana roca. A Rocha também era aproveitada para dela se retirar lenha, incensos para o gado e fetos e cana roca, os primeiros para cobrir o chão dos palheiros e cana roca para a cerca do porco. Até as terras do mato eram trabalhadas, ceifadas e limpas e, naqueles tempos ainda nem existiam os fios de verga, que ligam o cimo da Rocha até cá abaixo, para neles rolarem os molhos de fetos, de lenha, de queirós e de bracéu. Era tudo acarretado às costas pela Rocha. Trabalhava-se muito mas em compensação havia muito pão, leite e conduto de porco. Hoje, com esta moda do sargaço, muito deixaram de trabalhar as suas terras e muitas dos que foram para a América não têm quem as trabalhe.
É triste olhar para essas terras e vê-las abandonadas e cheias de matas. Mas se isto continua assim, daqui uns anos será muito pior. Oxalá esteja enganado.
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VISITAR O PICO
O Pico abarrota de lava e evapora enxofre. Muito interessante é o facto da maioria das paredes que dividem as propriedades agrícolas serem autênticos pedaços de lava, algumas até com formas e feitios muito curiosas. Esta lava solta e muita outra fixa aqui e além, sobretudo à beira-mar permite poder-se afirmar que o Pico é a ilha benjamim, isto é, a mais nova das ilhas açorianas, enquanto Santa Maria tem o estatuto de a mais velha, com mais 10 milhões de anos do que o Pico. Quanto ao seu descobrimento e o das restantes ilhas do Arquipélago é ainda pouco claro, existindo correntes históricas que afirmam que as ilhas, embora com nomes muito diferentes dos atuais, já virem designados e referenciadas em mapas e portulanos genoveses, desde 1351, embora as Flores e o Corvo, provavelmente, tenham sido encontradas mais tarde. Quanto ao povoamento, sabe-se que a partir de 1431, começaram a chegar os primeiros colonos, às ilhas mais orientais, incluindo as do grupo central e, consequentemente, o Pico.
De facto, segundo alguns historiadores mais rigorosos não se tem um conhecimento exato sobre a data da descoberta da ilha do Pico. Cuida-se, no entanto, que o seu povoamento, terá começado na zona das onde hoje se situa a vila das Lajes, por volta de 1480. É nas Lajes que existe a mais antiga ermida da ilha, dedicada a São Pedro. Sabe-se também que, desde os primeiros tempos, o Pico se tornou num importante empólio comercial, dada a facilidade de comunicação portuária com a Ilha do Faial, e com a crescente importância agrícola, nomeadamente no cultivo de trigo, criação de pomares e na importante vinha, que alterou a paisagem e a cultura ocidental da Ilha, classificada desde 2004 Património da Humanidade pela UNESCO.
Esta semana, a última de agosto, como é tradição, a vila das Lajes celebra a festa da Senhora de Lurdes, padroeira dos baleeiros. Na verdade, durante muitos anos, a baleação foi uma das maiores e mais importantes atividades económicas da vila e da ilha. Além disso os homens do Pico notabilizaram-se como baleiros, espalhando a sua arte e sabedoria pelas restantes ilhas. Hoje esta atividade está estampada e patente no Museu dos Baleeiros, também situado nas Lajes, sendo exatamente a caça da Baleia, muito desenvolvida e influenciada pela presença Norte Americana na Ilha, desde finais do século XVIII, e hoje em dia transformada em aprazíveis viagens de observação destes e outros cetáceos, em momentos inesquecíveis.
A Ilha do Pico apresenta diversos pontos de interesse, começando pela própria arquitetura típica de casario simples branco e blocos de lava preta das adegas, que tão bem espelham a origem vulcânica da Ilha, mas também lugares como as principais localidades: Lajes, São Roque e Madalena, plenas de história e património, ou outros locais de encanto natural como a famosa Gruta das Torres, as Furnas de Frei Matias ou a formação rochosa do Arco do Cachorro, ou a Prainha do Galeão.
Um paraíso para todos os amantes da natureza, a Ilha do Pico, plena de tradição, oferece também um bom património gastronómico, muito baseado em pratos de peixe e marisco, de onde sobressaem as famosas caldeiradas, o caldo de peixe ou o peixe grelhado e a albacora assada no forno, mas também na mais saborosa carne provinda dos muitos pastos que por aqui se encontram, as tradicionais sopas de Espírito Santo, a molha de carne, não faltando a massa sovada, o arroz doce e o afamado queijo, o de São João, do Arrife, da Prainha e outros. Tudo regado, claro está, pelo Vinho Verdelho, ou pelos muito apreciados vinhos tintos e brancos da Ilha, cuja história também está patente no Museu do Vinho, localizado na Vila da Madalena.
Por todas estas razões e por muitas outras vala a pena Visitar o Pico.
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ANOITECER DE BRUMA
A noite tenta cair,
Cobrindo a baía deserta,
Os currais das vinhas abandonados,
O casario entontecido.
Mas este amordaçado nevoeiro,
Impede-a.
Transforma-a num enorme montão de bruma,
Num rio de indiferença.
Não há barcos no mar
E aniquilaram-se estrelas e faróis.
Até a Lua se escondeu…
E todas as luzes aguardam
O restauro do lusco-fusco.
Amanhã será outro dia de bruma!
São Caetano, 27 de Agosto de 2015
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A FORÇA DO VENTO
A noite passada, apesar de estarmos ainda em pleno verão, o vento soprou forte, na ilha do Pico. Choveu torrencialmente e o mar, muito tranquilo nos dias anteriores, enfureceu-se e embraveceu, de forma enigmática. Esta inesperada alteração atmosférica, que em termos de chuva foi muito benéfica para os campos, trouxe-me à memória uma estória que se contava antigamente. Contava o povo na sua pura, genuína e inefável sabedoria, tentando explicar com lendas e mitos o que a ciência não lhe permitia entender que, quando Deus criou o mundo, o mar consciente de que era o maior, o mais forte, o mais poderoso e com anseios de tudo querer domar, pretendia que fosse ele a governar não apenas a terra mas também o universo, incluindo o Sol, a Lua, as estrelas, a chuva e até o vento. Todos aceitaram e se submeteram à força e grandeza do oceano. Todos, exceto um, o vento. Este na verdade, ao aperceber-se de tão estranhos e presumidos anseios, opôs-se, servindo-se para tal da enorme força com que Deus o dotara. Assim para contrariar a estúpida vontade do mar ou soprava com tanta violência que destruía tudo e transformava o mar num temível gigante de terror que devastava tudo o que nele navegava ou então parava-o de todo, retirando-lhe a força e a vontade de fazer o que quer que fosse. O mar, sentindo uma enorme aflição, por quanto de mal o vento lhe fazia, foi pedir à Lua que impedisse de ter que se sujeitar aos caprichos do vento e de ser governado por ele. A Lua respondeu que nada poderia fazer, porque o vento, na verdade, era muito forte, colérico e intratável, mas que iria pedir ao Sol que atendesse aos seus lamentos e pedidos. Assim o fez. Mas o Sol também se escusou, reconhecendo que nada poderia fazer contra tamanha força como era a do vento. E assim ficou tudo como Deus criara no início. Por isso o vento manteve o seu estatuto de ser mais forte e mais violento da criação, que sopra quando quer e com a força que quer, assustando não apenas a terra mas também o próprio mar e tudo quanto numa e noutro existe.
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HONRADEZ
"Quanto mais honrado um homem é, mais lhe custa suspeitar de que os outros não o sejam."
(Cícero)
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AZAR DOS AZARES
A garagem do meu prédio, onde todos os dias religiosamente guardo o meu carro, é enorme! Tem vários espaços, devidamente delineados e definidos, onde cada condómino ou inquilino pode guardar os seus automóveis. Durante a noite, claro. Porque mal amanhece, uma após outra, todas as viaturas vão escapulindo porta fora. Às oito, a garagem está menos de meia e às nove encontram-se ali apenas um ou dois carros. Um deles é o meu. Nem todos os dias, dado que, uma ou outra vez, apesar do meu estatuto de reformado, também saio, porta fora, quase sempre para uma viagem curta e pouco demorada. Regresso e arrumo o automóvel no espaço que é meu e que me foi destinado quando adquiri o apartamento.
Num destes dias saí, por volta das nove saí. Regressei uma meia hora depois e entrei com o denodo de arrumar o carro no meu espaço. Nesse dia não se encontrava na garagem nenhuma outra viatura pertencente a qualquer morador. Mas encontrava-se estacionada uma carrinha. Pela publicidade escrita nas portas percebi que era duma empresa de manutenção e reparação de extintores. Na verdade, um funcionário da empresa estava ali, a proceder à manutenção dos vários extintores existentes no prédio.
Mas azar dos azares. O homem, com uma pontaria desmedida, cuidando que os proprietários dos automóveis estariam ausentes todo o dia, estacionou a carrinha num dos espaços destinados a um morador. Mais precisamente, estacionou no meu espaço!
Apitei, indicando-lhe que aquele era o meu lugar e que pretendia arrumar ali o meu automóvel. O homem ficou desolado. Pediu desculpa, retirou a carrinha e estacionou-a noutro espaço,
Mas não se coibiu de explicar:
- Ó senhor, eu tenho tanto azar! Sempre que vou a um prédio verificar os extintores estaciono no lugar em que o dono regressa logo!
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TARDE DE AGOSTO EM SÃO CAETANO
Há um muro de tranquilidade
A envolver a ilha,
Transformando-a num gigantesco curral
Onde germina e floresce
Um enorme montão de silêncio.
O Sol cai a pino,
Em bátegas douradas e maviosas.
O céu vestiu-se de um azul puro e cristalino
Deixando vislumbrar
As rilheiras dos aviões.
O mar é um rio de sossego
Zonzo e colaço.
A montanha, adormecida,
Debruça-se sobre os casebres
A protege-los deste calor tórrido.
Tudo é quietude.
Apenas, por entre o remanso das adegas,
Corre uma aragem leve e adocicada
E nas vinhas,
Os bagos suculentos,
Anafam, à espera da safra.
(São Caetano do Pico, tarde de domingo, 23 de Agosto de 2015)
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CHUVA EM AGOSTO
“Chuva em agosto até dá gosto.”
Mais um interessante adágio muito utilizado na Fajã Grande, na década de cinquenta. Para uma população cuja economia e subsistência dependiam da agricultura a chuva era fundamental e, consequentemente, muito desejada, sobretudo nos meses de verão, nomeadamente em agosto. Meses de seca significavam o atrofiamento dos produtos agrícolas. Tão desejada era a chuva nessas situações e nesses meses que, quando a seca era muita até se organizavam as Rogações. As Rogações eram procissões de penitência e oração, sem santos e sem andores, realizadas de manhazinha, onde apenas seguia a cruz paroquial, revestida de manga roxa. Nela se incorporavam os homens, a maior parte de opas vermelhas, as mulheres de cabeça coberta e no fim o pároco, revestido de pluvial roxo e de hissope em riste, que ia, sucessivamente, molhando na caldeirinha que o sacristão segurava e com o qual aspergia e benzia os campos por onde a procissão passava, ao mesmo tempo que entoava, em latim e enquanto os sinos dobravam, a ladainha de todos os santos. Entre muitas outras invocações o pároco cantava:
- “Ut fructus terrae dare et conservare digneris.”. (Que Vos digneis dar-nos e conservar os frutos da terra).
- “Te rogamus audi nós.” (Nós Vos rogamos, ouvi-nos) – implorava o povo.
Estas procissões eram realizadas sempre que faltava chuva, originando períodos de seca prolongada que prejudicavam seriamente a produção agrícola e, indiretamente, a pecuária. Normalmente eram pedidas pelo povo, ao pároco que, durante o cortejo, levava uma pequenina e velha imagem de Sant’Ana, à qual se dirigiam vários cânticos e preces, seguidas das ladainhas.
As procissões das Rogações normalmente percorriam as Courelas, Rua Nova, a Via d´Agua e a Tronqueira, ou seja as zonas onde as terras eram mais próximas do mar, atingidas pela salmoira, mais secas e onde a recolha dos produtos agrícolas se verificava mais cedo.
Para gáudio de todos e para fortalecimento e solidificação da fé, geralmente chovia, alguns dias após as Rogações. Por isso a razão de ser deste adágio – Chuva em agosto até dá gosto.
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OUTRA VEZ O PICO
Outra vez o Pico! Outra vez a segunda maior ilha do arquipélago açoriano, maior em tamanho, diga-se em abono de verdade, porquanto em termos de população a sua grandeza deixa muito a desejar. Serão pouco mais de 14.000 os nela residentes. Mas em outros parâmetros o Pico não desarma nem nos ilude. Sobretudo em beleza e sublimidade, o Pico é grande, uma espécie de joia natural, como alguém o apelidou, epíteto que lhe assenta como uma luva. A coroar toda a beleza e grandiosidade, altivez e deslumbramento, a sua majestosa e imponente montanha também ela muito grande e sobretudo muito alta, o ponto mais alto do território Português, com o pico do Pico, bem lá no alto, situado a 2351 metros de altitude, conhecido pelo Piquinho do Pico.
Mas chegar ao Pico, partindo da cidade do Porto, nem sempre ou quase nunca é fácil e rápido. Ou se esquarteja o espaço que separa a urbe tripeira da ilha de lava e se salta de ilha para ilha, esbanjando tempo, demorando uma eternidade, ou se partilha o mesmo espaço, obrigando a pernoitar na ilha do Arcanjo, essa sim a maior parcela açoriana, não apenas em superfície mas também em população. Há outras hipóteses, mas também elas morosas e desgastantes. Viajar até à capital de autocarro, em quatro longas horas de caminhada noturna, com horários desencontrados com os aviões ou então seguir rumo ao Faial, para onde há melhores e mais frequentes voos e depois tomar a lancha para o Pico, com horários também desencontrados. Enfim, de uma forma ou de outra, com mais ou menos demora, com saltos ou sem eles, chega-se ao Pico. Mas na vrdadem vale a pena, para saborear este adocicado torrão de lava negra, de cerca de 450 km2 de superfície, 42 km de comprimento e 15 de largura máxima, inserido no grupo central de lhas da Região Autónoma dos Açores. Além disso o Pico também é uma das designadas ilhas do triângulo, estando os outros vértices, um no Faial e outro em São Jorge. Recorde-se, para os menos circulantes destas paragens que o arquipélago dos Açores ao Pico se divide em três grupos: o Grupo Oriental constituído por São Miguel, Santa Maria e os ilhéus das Formigas; o Grupo Central com Faial, Pico, São Jorge, Terceira e Graciosa e o Grupo Ocidental, formado pelas ilhas Flores e Corvo.
Mas na verdade, cada vez que se regressa ao Pico saboreia-se um oásis de serenidade, comunga-se um paraíso de bem-estar, envolvemo-nos uma espécie de reserva de sossego ou mergulhamos num seleiro de tranquilidade. Voltar ao Pico é embebedar-se com o silêncio estonteante das brisas matinais, entrelaçado com o chilrear irreverente e estouvado da passarada e com os murmúrios maviosos das marés, é purificar-se com os salpicos adocicados duma maresia adormecida, ondulada, apenas, com o sulcar dolente das quilhas das embarcações, a rilharem em redopio, na demanda de chicharros e bonitos ou então de outras mais sofisticadas e modernas na observação de baleias e golfinhos. E como se isso não bastasse, o Pico, quando a ele se regressa, enleva-nos no aroma vertiginoso dos cachos de uva a amadurecerem nos currais de lava, encharca-nos num perfume de maresia e embala-nos no escurecer zonzo e colaço das noites claras, luminosas, embebidas de luar e de sublimidade e a abarrotar de cânticos e danças das cagarras. No Pico, muitas vezes contrariamente ao que se anuncia em jornais, rádios e televisões continentais, há sol, muito sol, destemido e florescente a desfazer madrugadas, já sonsas e sombrias e a aniquilar, por completo, as tardes escurecidas e enevoadas. Por vezes, demasiado, excessivo destruidor de collheitas. No Pico há mar doce, envolvente, de águas puras, cristalinas, purificadoras, mesmo milagrosas. Regressar ao Pico é mergulhar neste mar, encharcar-se neste chão, comungar uma estranha força telúrica que nos atrai, prende e enleva. A Ilha Montanha, qual gigante adormecido no meio do atlântico, cobre-se com mantos de tonalidades variadas onde predomina o verde pardacento das encostas, o azul dourado do oceano, o amarelo suculento da cana roca e dos pêssegos, o vermelho da uvas e das amoras e o negro enigmático das paredes das adegas, dos currais, dos maroiços e de uma ou outra casa. Regressar a Pico é encafuar-se num paraíso, num sonho de paz e silêncio, deixar-se envolver num rendilhado negro e rude, aqui e além galvanizado de verde luxuriante e desenvoltos, penetrar nos campos calafetados de lava ou até subir a imponente Montanha, conquistando uma enigmática e inesquecível sobrenaturalidade. Regressar ao Pico, apesar dos estrepitantes solavancos duma viagem longa e cansativa é deixar-se imergir num sonho bordado a púrpura, ungido com encanto das paisagens, pincelado com silêncio das madrugadas. Na verdade o Pico apresenta-se como um éden, puro e original, para todos os amantes da natureza, disponibilizando-lhes também um excelente património gastronómico.
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A PRINCESA E A ERVILHA
(UM CONTO DE H. C, ANDERSON)
Havia uma vez um príncipe que queria se casar com uma princesa, mas não se contentava com uma princesa que não fosse de verdade. De modo que se dedicou a procurá-la no mundo inteiro, ainda que inutilmente, pois todas que via apresentavam algum defeito. Princesas havia muitas, porém não podia ter certeza, já que sempre havia nelas algo que não estava bem. Assim, regressou ao seu reino cheio de sentimento, pois desejava muito uma princesa verdadeira!
Certa noite, caiu uma tempestade horrível. Trovejava e chovia a cântaros. De repente, bateram à porta do castelo, e o rei foi pessoalmente abrir.
No umbral havia uma princesa. Mas, Santo Céu, como havia ficado com o tempo e a chuva! A água escorria por seu cabelo e roupas, seu sapato estava desmanchando.
Apesar disso, ela insistia que era uma princesa real e verdadeira.
"Bom, isso vamos saber logo", pensou a rainha velha.
E, sem dizer uma palavra, foi ao quarto, tirou toda a roupa de cama e colocou uma ervilha no estrado, em seguida colocou vinte colchões sobre a ervilha, e sobre eles vinte almofadas feitas com as plumas mais suaves que se pode imaginar.
Ali teria que dormir toda a noite a princesa.
Na manhã seguinte, perguntaram-lhe como tinha dormido.
- Oh, terrivelmente mal! - Disse a princesa. - Não consegui fechar os olhos toda a noite. Vá se saber o que havia nessa cama! Encostei-me em algo tão duro que amanheci cheia de dores. Foi horrível!
Ouvindo isso, todos compreenderam que se tratava de uma verdadeira princesa, já que havia sentido a ervilha através dos vinte colchões e vinte almofadões. Só uma princesa podia ter uma pele tão delicada.
E assim o príncipe casou com ela, seguro que sua era uma princesa completa. A ervilha foi enviada a um museu onde pode ser vista, a não ser que alguém a tenha roubado.
Hans Christian Andersen
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PROVA DE AMOR
Conta-se que há muito, muito tempo, numa determinada terra vivia um rapaz belo e jovem que se apaixonou por uma rapariga, também ela muito jovem e de grande beleza. Sentindo que estavam apaixonados um pelo outro, o rapaz decidiu ir pedir a menina, ao pai, em casamento.
O pai cuidando que ainda eram muito jovens, de que ele não teria meios para a sustentar a mulher e aos filhos que viessem a ter e que tudo entre eles poderia ser uma ilusão, perguntou ao moço:
- Que provas podes dar para te poderes casar com a minha filha?
- A única prova é a do nosso amor um pelo outro! - Respondeu o jovem.
O pai da menina apesar de gostar da resposta, cuidou que não chegava. O amor é efémero. Hoje podiam amar-se e amanhã odiarem-se. O amor implica sacrifícios, limitações, por vezes até desavenças e conflitos. Por isso perguntou-lhe:
- Quantos dias serás capaz de ficar em jejum para conseguires que te autorize a casar com a minha filha.
- Sete, - respondeu o jovem sem pensar. – Ficarei sete dias sem comer nem beber, a não ser água, se essa for a sua vontade e se isso for o que exige de mim.
Quando a notícia se espalhou toda a gente ficou admirada e louvou a coragem do jovem e o enorme sacrifício de que ele seria capaz de fazer para casar com a jovem. Já mais se vira tão grande paixão.
O pai da rapariga ordenou, então, que se desse início à prova. Colocaram o rapaz num velho casebre e alguns homens ficaram dia e noite vigiando para que ele não saísse nem fosse alimentado por quem quer que fosse Apenas água lhe era servida.
A rapariga, também apaixonada de verdade, temendo que o rapaz poderia morrer, chorava e implorava ao pai que terminasse aquela loucura, aquela prova terrível e desumana. Mas o pai não lhe dava ouvidos. O tempo foi passando e certa manhã, a filha pediu ao pai:
- Já se passaram quatro dias, meu pai. Não o deixe morrer.
O pai não aceitou os seus rogos e pedidos e esperaram até ao último dia. Todos ficaram tolhidos de espanto, porque quando abriram a porta do velho casebre o rapaz estava são e saudável como se tivesse sido muito bem alimentado durante todos aqueles dias. Todos ficaram muito contentes, mas quem mais se alegrou foi a jovem por quem o rapaz estava apaixonado e por quem fizera tão grande sacrifício.
Passado algum tempo casaram e consta que viveram muito felizes. Mas apenas e só os dois souberam quem era a velhinha que todas as noites, ludibriando os homens que estavam de vigia ao casebre levava uma bela cestinha cheia de víveres para alimentar o rapaz.
Em todas as histórias em que há jovens apaixonados deveria haver sempre uma velhinha misteriosa.
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JOÃO CABRAL DE MELO
O poeta João Manuel de Melo nasceu na freguesia dos Biscoitos, ilha Terceira, em 1740 e faleceu em Angra, em1824. Bacharel em Leis, formado pela Universidade de Coimbra, em 1771, dominava várias línguas. Foi escrivão da Junta Real da Fazenda, trabalhando com o capitão-general Dinis Gregório de Melo Castro e Mendonça. Depois de aposentado exerceu a advocacia. Muita da sua poesia extraviou-se, mas ainda se coligiram várias em português, latim e francês. Algumas produções originais foram transcritas nos Anais da ilha Terceira e no semanário O Anunciador da Terceira, por iniciativa de António Moniz Barreto Corte Real. A écloga pastoril, denominada Belisa, foi incluída na obra de Pedro da Silveira. Tendo em conta a obra conhecida, Pedro Silveira considera que «a maior glória poética de Cabral de Melo estará, não tanto no que escreveu, mas em ser antepassado de um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa: João Cabral de Melo Neto». Os seus estudos genealógicos sobre algumas das famílias principais da Ilha Terceira, cujo manuscrito desapareceu, foram consultados por Drummond. Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A PANELA DO DINHEIRO
Antigamente, na Fajã Grande, entre muitas outras, contava-se a seguinte estória. Há muitos, muitos anos, numa determinada freguesia havia um padre muito rico mas muito avarento. Tinha muito dinheiro, não dava um centavo a ninguém e tinha muito medo que o roubassem. Na verdade não era fácil manter o dinheirinho seguro naqueles tempos, numa casa sem nenhuma segurança. A qualquer momento do dia poderia chegar um bando de ladrões ou até um barco carregado de piratas, arruaceiros e salteadores, roubando, assaltando e matando. Assim cuidava o prebendado que de nada adiantava guardar o seu rico dinheirinho em nenhum lugar de sua casa, nem sequer de baixo do colchão, pois era o primeiro lugar onde os ladrões iriam procurar.
Depois de muito matutar, a solução encontrada para guardar o dinheiro e que cuidou muito segura foi simples: depositar as economias numa panela de barro e, de noite, sem que ninguém o visse, ir enterrá-la no quintal da sua casa, próximo de algum ponto de referência, mas que só ele fosse capaz de identificar e reconhecer. Assim todas as noites podia ir lá, cavar no local certo, abrir a panela e colocar-lhe dentro o dinheiro que ia ganhando, em missas, sermões, batizados, casamentos e côngruas. Se bem o pensou, melhor o fez e, todas as noites, ia ao quintal, cavava, tirava a tampa da panela com muito cuidado para que se não partisse e atirava as notas e as moedas lá para dentro, cuidando que ali estavam bem seguras.
Ora por ali perto morava um vizinho do reverendo muito esperto e atinado e que estranhou as idas e vindas do padre ao quintal, todas as noites. Pôs-se de vigia e assim identificou o lugar onde o reverendo cavava, sem perceber o que depositava lá dentro. Movido pela curiosidade e também desconfiado, pois sabia da fortuna e da avareza do clérigo, decidiu numa noite, esperar que o pároco se retirasse, regressasse a casa e adormecesse, para ir cavar no mesmo local, a fim de confirmar a sua desconfiança. Não foi pois com admiração que ao encontrar a panela e, ao abri-la, verificou que estava quase cheia de dinheiro. Com muito cuidado retirou-o, foi à sua retrete, trouxe a caneca da merda e despejou-a dentro da panela, colocando, por cima algumas moedas, a fim de que o reverendo, quando lá voltasse, na noite seguinte, ouvisse o tilintar das moedas que ali colocava de novo. Assim procedeu nas noites seguintes. O reverendo a colocar o dinheiro na panela e ele a trocá-lo pelos seus dejetos.
Passado algum tempo o padre sentiu que a panela já estava cheia e decidiu celebrar o evento. Avisou o presidente da junta, o regedor, os seus compadres e amigos mais ricos de que encontrara uma panela cheia de dinheiro no seu quintal. Gostava de dividir o tesouro com eles, mas de uma forma que fosse mais interessante e apelativa. Havia de colocar a panela no alto, presa a um pau, havia de lhe mandar dar uma paulada. Ele, as suas irmãs e os seus amigos juntamente com as suas esposas haviam de colocar-se por baixo da panela e todo o dinheiro que cada um apanhasse seria seu. O senhor padre muniu-se da sua batina com uma aba muito grande e larga, as suas irmãs e as outras mulheres de grandes e floridos aventais a fim de que conseguissem apanhar a maior quantidade de dinheiro possível.
Veio o homem do pau e zás. Manda forte paulada na panela que esta se partiu em mil pedaços, caindo a merda ali armazenada por cima de quantos se encontravam à espera de apanhar as notas e as moedas, enquanto o vizinho à sua janela ria a bom rir. O padre vendo-o, adivinhou a marosca e ameaçando matá-lo, começou a correr atrás dele com quantas forças tinha.
Ao passar à Praça, viu uns homens ali sentados a descansar e perguntou-lhes se não tinham visto passar o seu vizinho. Todos se calaram, admirados do estado lastimoso em que o padre se encontrava, Um deles, mais corajoso e afoito, respondeu:
- Não, não vi passar o seu vizinho, mas também nunca vi o senhor padre tão cagado.
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AS HORTAS DO DELGADO
Das zonas de terras de mato da Fajã Grande, quer da orla leste que ladeava a Rocha desde o Pocestinho à Fonte Simão, quer a das que situavam em toda a zona costeira, desde Santo Antóno até ao Vale Fundo, a zona do Delgado era indiscutivelmente a que possuía melhores hortas. Também povoadas de hortas muitos férteis as suas vinzinhas da Cabaceira e Caminho da Cuada, assim como a de Santo António, esta muito pequena e, na prática, integrada no território do lugar do Delgado. Havia também algumas hortas na Cancelimha, na Lombega, na Silveirinha e até no Pocestinho mas não se aproximavam, em termos de qualidade, das do Delgado e arredores.
A palavra horta no léxico fajãgrandense significava quinta ou pomar, sendo a designaão de horta, no sentido de terreno onde se cultivam legumes e cereais, substituída por courela ou terra da porta. Assim as hortas, quintas ou pomares da Fajã Grande eram terrenos limitados por altas paredes e por renques de árvores, constituídos, geralmente, por várias belgas e currais, destinados à cultura de árvores de fruto e, nalguns casos, inhames. As hortas do Delgado eram, de facto, verdadeiros pomares, ou seja terrenos onde se cultivavam sobretudo plantas frutíferas, cuja produção, no entanto se destinava, exclusivamente, para o consumo da família a que pertenciam. Quando o excesso de frutas ultrapassava o consumo familiar, ofereciam-se aos parentes, aos amigos ou a quem se devia favores ou era destinado à alimentação dos suinos, sobretudo no caso das maçãs. Raramente a fruta era vendida. Diga.se, de passagem, que esta fruta era muito saudável pois para além de ser de muito boa qualidade não era tratada com nenhuns produtos químicos. Era indispensável na saúde e crescimento das crianças. Muitas vezes também era utilizada para fazer doce que devidamente guardado em frascos durava para todo o ano, E que saborosos que eram estes dices de frasco!
O que caracterizava estas propriedades era o facto delas também terem zonas de cultivo de batata doce, legumes, inhames e milho. Daí, provavelmente, a razão de também se chamarem hortas. Estas hortas do Delgado eram excelentes terrenos, muiito produtivos e muito bem trabalhados, onde floresciamom belas arvores de fruta, assim como incensos, faias, loureiros, sanguinhos e muitas outras árvores. Os fetos, a cana roca e outras mondas eram ceifadas e retirados e, por vezes, nos currais mais fundos e mais tapados por paredes ou bardos colocavam-se as galinhas. Para alem de adubarem o terreno com o extrume retiravam-lhes as ervas daninhas. Nestas hortas cultivam-se diversas árvores de fruto, entre as quais bananeiras, pereiras, macieiras, amexieiras. araçaleiros, damasqueiros, pessegueiros, castanheiros, toas elas também se cultivavam bons e saborosos inhames, geralmente entre as árvores de fruta. laranjeiras, tangerineiras e outras. Nalgumas existiam também videiras e figueiras de figos branos, pingo de mel e pretos. Estas hortas ou pomares também permitiam que os que as demandavam puessem gozar de momentos de sombra e tranquilidade enquanto saboreavam as deliciosas frutas. No entanto isto raramente acontecia, porquanto o tempo era todo pouco para o trabalho.
Na década de cinquenta, uma das maiores e melhores hortas do Delgado pertencia ao meu avô materno José Batelameiro. O acesso à mesma fazia-se pelo caminho que ligava o cimo da Assomada ao cruzamento de Santo António com o caminho da Cuada. Nesse cruzamento voltando à esquerda, ou seja a leste, seguia-se para a Cabaceira, Espigão e Lavadouros. No cruzamento da ladeira que dava para o Outeiro Grande havia um enorme portão, guarnecido com duas grossas ombreiras e uma verga de pedra única, como se de uma porta de edifício se tratasse. Era por aí que se entrava. Subindo alguns degraus entrava-se na primeira belga, transformada em terreno agrícola onde se cultivava batata doce, feijão e milho. A horta de forma retangular, prolongava-se na direcão da Cuada e era protegida do caminho e dos terrenos circundantes por altas e grossas paredes. Nas belgas e currais seguintes, situados numa zona mais funda existiam belas macieiras, excelentes amexeieiras, pereiras, damasqueiros e bananeiras. Todas árvores bem extrumadas e trabalhadas e, consequentemente, muito produtivas. Eram sobretudo as ameixas que ali se produziam que faziam crescer àgua na boca. Ameixas grandes, vermelhas e carnudas. Mas as peras e as maçãs não hes ficavam atrás, assim como as laranjas, os damascos e até os figos. No final da década de cinquenta a horta foi cortada a meio, pela nova estrada que ligava o Porto da Fajã à ladeira do Pessegueiro, junto à Ribeira Grande. Além disso todos os meus tios abalaram para a América e meu avô faleceu. Por tudo isso, a horta do Delgado do meu avô, uma das melhores da Fajã. aos poucos, foi fenecendo a olhos vistos. Finalmente foi vendida. Dissolveu-se.
No início do século XX estas hortas do Delgado, assim como a fruta que nelas se produzia parece terem tido fama em toda a ilha das Flores. A elas e às suas saborosíssimas maçãs se refere o contista açoriano Nunes da Rosa, na altura a paroquiar na freguesia do Mosteiro e que no seu livro Pastoraes do Mosteiro, quando num dos contos se refere às célebres romarias que nesses tempos eram realizadas à Fajã Grande, por altura da festa da Senhora da Saúde.
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UNANIMIDADE
"Na unanimidade, há uma parcela de entusiasmo, outra de conveniência e uma de desinformação"
Carlos Drummond de Andrade
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GRANDE TRAGÉDIA
Na década de cinquenta ainda se ouviam os ecos da enorme e terrível tragédia que se abateu sobre a freguesia no dia 14 de Agosto de 1942. Um acontecimento que perdura na memória de várias gerações e que, sem sombra de dúvida, se tornou para sempre no dia mais terrível para a população da mais ocidental freguesia açoriana. Um marco terrível na vida de muitas famílias.
Na verdade corria o ano de 1942. Muitos peregrinos da Fajã decidiram ir ao Corvo, à Festa da Senhora dos Milagres, uma tradição que se mantinha desde há muitos anos. Organizou-se a excursão, fretou-se o gasolina e, na tarde do dia treze de Agosto, partiu, do cais, com quarenta e cinco passageiros, quase todos da Fajã e da Ponta, com destino ao Corvo, o gasolina “Senhora das Vitórias” também conhecido pela “Francesa”. A partida atrasou-se e a embarcação chegou ao Corvo, já noite escura. Ao aproximar-se da ilha, o mestre viu uma luz em terra e, cuidando que era o pequeno farol que indicava o porto, rumou a terra. Infelizmente a luz não era a do farol, nem o porto era ali e “A Senhora das Vitórias” enfiou-se, precipitadamente e de rompante, sobre as baixas dos Laredos, abrindo um enorme rombo a meio, enchendo-se de água e provocando grande pânico entre os passageiros. A confusão foi geral, a precipitação tremenda e o terror gigantesco. Não havia luz alguma, por ali perto, cada qual procurava salvar-se e salvar os seus familiares que a muito custo encontravam ou nem chegavam a encontrar, acabando por perder a vida neste acidente dezasseis passageiros e ainda um dos proprietários da embarcação de nome António Jorge de André Freias, residente nas Lajes. Da Fajã Grande morreram: António Cardoso de Freitas, Maria Garcia Ramos, Elvira Vitória Ramos, Maria dos Anjos Freitas Henriques, Ercília Garcia Ramos, José Inácio Luís, Glória Barbeiro, João Furtado Sousa, Ana Fagundes e Violante Cândida. Da Ponta faleceram Lídia Freitas Dias, Aurora Inês Freitas, José António Filipe, Manuel Furtado Silveira e Teresa Serpa. Também perdeu a vida neste acidente José Caetano Gangão, natural e residente da Fajazinha.
Diziam as pessoas mais antigas que quando a notícia, no dia seguinte, chegou à Fajã, “parecia um dia de juízo”, pois todos os que tinham familiares embarcados na véspera, para o Corvo, cuidavam que eram eles os falecidos. A freguesia encheu-se de gritos e de prantos, de confusão, de terror, de angústia e desespero, à medida que os nomes dos mortos iam sendo conhecidos.
No entanto, no Corvo, as autoridades e os responsáveis pelos destinos da ilha, com os limitadíssimos recursos e meios de salvamento que dispunham, tentavam recolher os náufragos e prestar auxílio às vítimas. O local, porém, era longe do povoado e de difícil acesso. Os meios de transportes nulos e os náufragos, quer os mortos quer os vivos, foram transportados a ombros. Havia apenas um médico na ilha. Após muito esforço conseguiram levar os mortos para a Casa de Espírito Santo do Outeiro, onde foram estendidos no chão, sem lhe serem prestados os primeiros socorros, não sendo, provavelmente, assistidos da melhor forma.
O desastre do Corvo que assinala o dia mais trágico da história fajagrandense perdurou anos e anos na memória de todos e muito especialmente na dos familiares daqueles e daquelas que tão tragicamente perderam a vida, naquela fatídica noite de 13 para 14 de Agosto de 1942.
Contava-se que a única criança que viajava se salvou. Um dos passageiros, instintivamente, ter-lhe-á pegado, trazendo-a para terra sã e salva. Só que esse salvador terá voltado atrás na tentativa de salvar algum familiar, tendo, infelizmente, perdido a própria vida. A criança salvou-se, mas nunca soube quem foi o seu salvador. Tratava-se de pequeno francisco Pureza, filho do Senhor José Pureza, morador na Assomada,
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A CAIXINHA MÁGICA DA SENHORA MADALENA
A Senhora Madalena vivia na Ponta e era filha do Senhor Afonso, o mais abastado comerciante daquela pequena localidade pertencente à freguesia da Fajã Grande. Depois da morte do pai, o negócio na Ponta como que entrou em decadência e a Senhora Madalena, algum tempo depois de casar decidiu mudar a sua residência para a Fajã, embora ela e o marido continuassem a trabalhar as propriedades que tinham na Ponta, para onde se deslocavam quase todos os dias. Mas a dona Madalena tinha o gene do negócio que lhe havia sido transmitido pelo pai e, ao fixar residência na Rua Nova, alugando uma casa apalaçada que existia naquela artéria, mais pequena rua da Fajã Grande, decidiu montar negócio ali por perto, fazendo frente aos quatro comerciantes existentes na freguesia: a Senhora Dias, Martins & Rebelo sob a orientação do Senhor Roberto, a Firma sob a orientação do Senhor António Augusto e a Senhora Bernadete. Para tal adquiriu um terreno nas traseiras da Casa do Espírito Santo de Baixo no qual construiu, junto à empena sul e atrás do fontanário ali existente, um pequeno edifício exclusivamente dedicado ao comércio. O negócio da Dona Madalena floresceu, fazendo frente aos dois gigantes, a Senhora Dias e Martins & Rebelo, enquanto a Senhora Bernadete e a Firma enfraqueciam a olhos vistos.
Na sua loja a Senhora Madalena vendia de tudo e até da Ponta vinha gente ali fazer as suas compras. Aliás, a dona Madalena não se poupava em simpatia, disponibilizando a todos muita atenção e muito carinho, transformando tudo isso numa profícua bandeira publicitária, condição inequívoca para o notório crescimento do seu negócio.
Mas o que de mais interessante e apelativo, para a ganapada e não só, a Dona Madalena tinha no seu, na altura, moderno estabelecimento comercial era uma curiosa e quase mágica maquineta, sempre disponível a todos os clientes e visitantes. Quem pagasse meio escudo tinha direito a dar um furo com um pauzinho numa espécie de ecrã de uma caixa cheio de números. Ao escolher um número, o interessado que pudesse esbanjar cinquenta centavos, dava um furo e saía, por baixo, uma bolinha de uma determinada cor. Era esta cor que decidia o chocolate a que o cliente tinha direito. Uns chocolates eram muito pequeninos, mas iam crescendo, crescendo até um único, muito grande, embrulhado em papel dourado e que toda a gente almejava que lhe saísse. Não se sabia como, mas ou a dona Madalena ou a própria caixa possuía um truque que retardava a saída do chocolate grande, pois só assim se mantinha o interesse em ir dando os furos sucessivos, na mira do saboroso chocolate gigante. Como a escola primária ficava ali ao lado, na Casa do Espírito Santo, nos recreios a dona Madalena bem incentivava a ganapada:
- “Meninos, venham dar um furinho.”.
O problema, no entanto, é que a maioria da criançada nunca tinha os cinquenta centavos para dar o furinho na caixinha mágica da Dona Madalena.
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O GATO VAIDOSO
(UM CONTO DE MONTEIRO LOBATO)
Moravam na mesma casa dois gatos iguaizinhos no pelo, mas desiguais na sorte. Um, amimado pela dona, dormia em almofadões. Outro, no borralho. Um passava a leite e comia em colo. O outro, por feliz, se dava com as espinhas de peixe do lixo.
Certa vez, cruzaram-se no telhado e o bichano de luxo arrepiou-se todo, dizendo:
– Passa ao largo, vagabundo! Não vês que és pobre e eu sou rico? Que és gato de cozinha e eu sou gato de salão? Respeita-me, pois, e passa ao largo…
– Alto lá, senhor orgulhoso! Lembra-te de que somos irmãos, criados no mesmo ninho.
– Sou nobre. Sou mais que tu!
– Em quê? Não mias como eu?
– Mio.
– Não tens rabo como eu?
– Tenho.
– Não caças ratos como eu?
– Caço.
– Não comes rato como eu?
– Como.
– Logo, não passas dum simples gato igual a mim. Abaixa, pois a crista desse orgulho e lembra-te que mais nobreza do que eu não tens – o que tens é apenas um bocado mais de sorte…
Monteiro Lobato
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A PIA DA ÁGUA BENTA
A Pia de Água Benta era uma espécie de pequena bacia semi circular, feita de mármore ou material similar, encastoada na parde, existente logo após a entrada da igreja, a seguir ao amplo guarda vento. Na igreja da Fajã existiam duas, uma de cada lado do guarda vento que era servido por duas portas. No entanto, como a porta de uso corrente e habitual era a da direita de quem entrava, ou seja do lado da epístola, era praticamente e apenas esta que era usada por quem entrava no templo e pretendia purificar-se com um pouco de água lustral. Para tal metia a ponta dos dedos na pia, molhava-as na água e a seguir benzia-se. Essa a razão pela qual o sacristão ou as mulheres que aos sábados cuidadavam da limpeza e ornamentação do templo deviam manter a pia sempre com água benta, abastecendo-a com a regularidade necessária. Além disso, por vezes a água esgotava-se rapidamente, dado que algumas pessoas gostavam de lá encher um frasquinho a fim de levá-a para casa, por vezes, com fins pouco católicos e ortodoxos. Mas a Pia da Água Benta tinha uma outra função importante. Na parte superior e do lado da parede em que se encastoava, a pia tinha um pequeno tampão de madeira onde se colocavam, geralmente muito bem arrumadinhos, uma série de pequenos objectos: pentes, ganchos de cabelo, terços, medalhinhas, canivete com o ferro enferrujado, aneis, pulseiras, etc. Eram objectos perdidos por alguém e que as pessoas ao encontrá-los, ali os colocavam para que o verdadeiro dono, ao entrar na igreja e ao meter a mão na pia, visse o objecto que perdera e assim o recuperasse, o que diga-se em abono de verdade, nem sempre acontecia. Foi o que aconteceu com mestre Eduardo, um tio da Marquinhas de São João que, depois de muitos anos emigrado na Califórnia regressou à Fajã. Saíra das Flores ainda criança e nunca mais voltara à sua terra natal, desconhecendo por completo pessoas, usos e costumes. Alguns dias após a sua chegada, ao passar em frente à igreja paroquial, decidiu entrar, com a denodada e exclusiva intenção de ver e conhecer o templo. Ao transpor a porta do guarda-vento, reparou, para espanto seu, que por cima da pia da água benta havia uma minúscula prateleira onde estavam colocado os tais objetos. Admirado com aquela panóplia e na tentativa de descortinar a razão por que estavam ali, dirigiu-se à Tia Cristóvão, que, como habitualmente, permanecia horas a fio no templo, em oração, no intuito de descortinar o que aquilo significava. Ela, pacientemente, explicou-lhe tudo bem direitinho e Eduardo achou aquilo muito interessante. Era na realidade uma magnífica estratégia, nunca imaginada pelos americanos, para, com a colaboração de Deus, “devolver a César o que é de César”. Nem na Califórnia e possivelmente em nenhum outro estado americano se havia algum dia projetado ou posto em prática tão simples e inovadora forma de restituir a cada um o que, por direito próprio, lhe pertencia. Encantado com aquela originalidade que engrandecia a admiração que começava a ter pela simplicidade e honestidade das gentes das ilhas, vai disto e, para testar o sistema, tira do bolso interior do seu casaco uma caneta de tinta permanente, novinha em folha, colocando-a na dita prateleira, no meio dos outros objetos. Saiu do templo e foi dar um passeio até ao Porto. Ao regressar a casa, algum tempo depois, voltou a entrar na igreja, não para meter a mão na água lustral mas para reaver a sua bela caneta. Qual não foi o seu espanto ao verificar que lá ainda estavam os outros objetos, mas a sua caneta tinham desaparecido, tinha sido dali retirada por alguém que não o legítimo dono. Admiradíssimo e furibundo foi ter com a Tia Cristóvão, recriminando-a por o ter enganado. Ela emudeceu sem saber o que lhe dizer.
Consta que a Pia de Água Bemta parece ter tido a sua origem na Roma imperial onde nas entradas dos templos do paganismo e nos átrios das casas romanas, havia grandes recipientes de água, para os sacerdotes se purificarem antes dos sacrifícios ou. No caso das moradias para os hóspedes se lavarem à chegada.
Atualmente e em substituição das pias tradicionais que se consideram pouco higiénicas, uma vez que todos, indescriminadamente, metem as mãos lá dentro, um italiano inventou um Dispensador de Água Benta Personalizado, que apenas liberta uma gota de cada vez, semelhante às torneiras dos WC públicos, munidas de sensor. Assim a água benta só é libertada, quando alguém coloca a mão debaixo da respectiva saída. Desta forma, diminui-se significativamente o risco para a Higiene e Saúde em geral. Sobre estes substitutos das tradicionais pias, obviamente que não haverá lugar para colocar objetos perdidos e, assim, a Pia de Água Benta, regressa exclusivamente à sua função pura e original de purificar os que procuram a sua água.
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QUADRAS SOLTAS IV
Sou “Técnico de Lazer”!
Vou com gosto ao Livramento,
Se a SATA me oferecer
“Gratuito Encaminhamento”.
Tens ciúmes a granel
E estás roído d’inveja
Porque aí, em S. Miguel,
Não há Fajã que se veja.
Ananás é coisa bela?
Hum!,,, Parece-me que não.
Se o comes com morcela….l
É pior do que mangão.
Os póneis comem cerejas
E os cavalos beringelas.
Menina espero que vejas
Quem passa nestas vielas.
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A FERRADURA
Era uma vez um rapaz muito preguiçoso e pouco obediente aos pais.
Certo dia o pai precisou de ir à vila e decidiu levar rapaz consigo. A viagem era longa e cansativa. Não tinham dinheiro e nada levaram para comer. Ainda nem haviam chegado a meio do caminho e o rapaz começou a lamentar-se porque, para além de cansado, morria de fome. O pai que caminhava, indiferente às lamentações e queixumes do filho, a determinada altura viu uma ferradura no chão. Parou, voltou-se para o filho e pediu-lhe que a juntasse:
- Era o que faltava, - respondeu o mandrião com altivez, - baixar-me e juntar uma porcaria duma ferradura velha, cheia de ferrugem e que já não presta para nada.
O pai não respondeu. Baixando-se, juntou a ferradura e meteu-a no bolso, enquanto o rapaz continuava a lamentar a fome que sentia, arrependendo-se de acompanhar o pai em tão cansativa caminhada.
Finalmente chegaram à vila. O pai dirigiu-se a um ferreiro que na sua forja transformava o ferro velho em belas peças de metal, e vendeu-lhe a ferradura. Com o dinheiro foi a uma padaria comprar um enorme pão. De seguida, partiu-o em grossas fatias que foi deixando cair no chão, de maneira que não se sujassem. O rapaz, morto de fome, a cada fatia que o pai deitava ao chão, baixava-se logo para a apanhar, comendo-a sofregamente. Já saciado, interrogou o pai:
- Por que fez isto, meu pai? Porque não me deu as fatias para a mão em vez de as deixar cair no chão?
O pai retorquiu:
- Se me tivesses obedecido e se tivesses baixado para apanhar a ferradura não terias que te ter curvado tantas vezes para apanhar o pão de que tanto necessitavas.
O rapaz compreendeu a lição e, a parir daquele dia, tornou-se mais obediente e trabalhador.
NB - Inspirado no conto “São Pedro e a Ferradura”, in Contos Populares e Lendas, J. Leite de Vasconcelos.
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A MORTE DA VELHINHA
aConta-se que antigamente, numa casa muito isolada lá para os lados do Areal, muito próximo do mar, vivia, sozinha, uma pobre velhinha. Nunca se casara, nem tivera filhos e não se lhe conheciam parentes. Apesar de muito pobre, era muito honesta e bondosa, sempre disposta a fazer o bem e a ajudar os outros.
Certa noite um grande temporal desabou sobre todo o povoado, do Cimo da Assomada ao Outeiro da Ponta, assustando e amedrontando todos os que dormiam nos seus pobres e frágeis casebres, feitos de pedras soltas e cobertos de palha. O vento era fortíssimo, a chuva caía a cântaros, o mar rugia assustadoramente, os trovões ribombavam devastadoramente e os relâmpagos eram tão fortes que rompiam a escuridão, iluminando o pequeno povoado como se fosse dia.
Na sua casa, a mais pobre e isolada do lugarejo, a pobre velhinha, tolhida de medo, não pregara olho até altas horas da madrugada. De repente bateram à porta, três pancadas muito fortes. Muito aflita e assustada, a velhinha deu um salto na cama e levantou-se. Mas, de seguida, aquietou-se e voltou a deitar-se. Pouco depois voltaram a bater à porta. Três pancadas. A velhinha benzeu-se: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. De seguida, cuidando que fosse alguém acossado pelo temporal, a necessitar de ajuda, a pedir abrigo, levantou-se e foi abrir a porta. Daria abrigo na sua casa a quem quer que fosse e que andasse ao relento àquela hora da noite, debaixo daquele temporal. Talvez algum pescador… Talvez algum náufrago,… Alguém que se tivesse perdido.
Mas nada disso. Era um homem ainda novo, de aspeto resplandecente como um anjo, com uma saca de serapilheira a fazer de capucho, todo encharcado dos pés à cabeça. Vinha pedir-lhe para ir com ele e ajudá-lo a acudir à sua mulher que estava a parir um filho. A criança entalara e não havia maneira de nascer. A pobrezinha já estava assim há muitas horas e ele não sabia que fazer, nem tinha ninguém mais perto a quem pudesse pedir ajuda. Só ela o podia ajudar e evitar que a mulher e o filho morressem.
A velhinha ao princípio hesitou. Como poderia ir debaixo daquele temporal! O tempo estava horrível, a chuva caía a cântaros e o vento soprava tão forte que havia de a derrubar. A sua avançada idade não permitia que saísse àquela hora de casa, debaixo daquela tempestade. Decerto que morreria pelo caminho. Tinha tanto medo!
Mas como o homem insistisse e, com os olhos rasados de lágrimas, lhe pedisse que, por amor de Deus, o acompanhasse, que fosse com ele, a velhinha comoveu-se e, colocando um grosso xaile sobre os ombros e um lenço de merino na cabeça, decidiu acompanhá-lo.
Partiram. Os trovões pareciam agora mais fortes, os relâmpagos mais intensos e o vento ciclónico. A chuva caía como Deus a dava e os caminhos pareciam rios cheios de água. Mal saiu de casa a velhinha ficou toda molhada e uma rajada de vento mais forte atirou-a ao chão. Levantou-se e continuou, a muito custo, a caminhada. Pouco depois voltou a cair e desejou voltar para casa. Mas o homem suplicava, chorava e pedia-lhe que não desistisse de o ajudar a salvar a sua mulher e o seu filho. Na sua enorme agonia, prometia que ela seria a mulher mais rica do mundo se lhe salvasse a mulher e o filho.
Depois de uma longa caminhada por caminhos e veredas desconhecidos, chegaram junto da Rocha, enorme, altiva e abrupta. Mas era muito escuro e a velhinha não via nada. Apenas ouviu o homem bater como se estivesse a bater a uma porta.
De repente a velhinha viu a Rocha abrir-se e lá dentro um palácio todo iluminado como aqueles das estórias das Mil e Uma Noites que ouvira contar quando era criança. Sempre acompanhada pelo homem entrou no majestoso palácio. Parecia-lhe que estava no Céu. Um luxo como ela nunca pudera imaginar.
No meio do seu deslumbramento viu uma linda mulher que estava a parir com grande dor e sofrimento um filhinho. A velhinha arregaçou as mangas, foi encher uma bacia com água, pegou numa toalha e foi ajudar a mulher. Pouco depois nasceu um lindo menino. Mãe e filho haviam sobrevivido e estavam de excelente saúde. Choraram todos de alegria e contentamento. Ao longe ouvia-se uma música suave e bela. Era como se fossem os anjos a cantar. O pai, agora muito feliz e agradecido, levou a velha a uma sala onde se amontoavam pedras preciosas, ouro, pratas e joias. Perante o seu pasmo, o homem disse-lhe que pegasse e levasse as moedas e as jóias que quisesse mas que nunca dissesse quem lhe dera tão grande tesouro e como arranjara tanta riqueza. A velhinha, porém, em nada pegou e, como a tempestade já amainasse e um novo dia tivesse começado com um Sol radioso, decidiu voltar para sua pobre casa. O homem opôs-se e tanto lhe pediu e tanto insistiu que a velhinha ficou a viver com eles, para sempre, naquele rico e belo palácio, a ver crescer o menino que ela salvara.
No dia seguinte, umas mulheres que iam trabalhar os campos e que passavam em frente à casa da velhinha, vendo a porta e as janelas fechadas estranharam. Ela levantava-se, todos os dias muito cedo e abria sempre as janelas ao raiar da aurora. Bateram e voltaram a bater à porta mas, de dentro, ninguém respondeu. Assustadas, abriram a porta e entraram. A velhinha estava morta na sua cama. Morta de susto com o terrível temporal daquela noite.
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FELICIDADE
“Não fales da tua felicidade a quem não for tão feliz como tu.”
Pitágoras
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JOSÉ PEIXOTO
José Peixoto nasceu nas Angústias, em 7 de Agosto de 1915, tendo falecido em Lisboa, em 1 de Maio de 2000. Foi advogado, notário e escritor. Fez o curso geral no Liceu da sua terra natal, onde foi matriculado pela primeira vez em 1927, e o curso complementar no Liceu de Ponta Delgada. Depois, entre 1934 e 1939, estudou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa de onde saiu licenciado.
Regressado à ilha do Faial, em 1939, foi delegado, interino, do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, mas, não tendo conseguido nomeação definitiva, não obstante o empenhamento pessoal das autoridades locais, concorreu ao notariado e foi colocado, sucessivamente, em Vila Franca do Campo, no Cartaxo e em Lisboa.
Fez a sua estreia literária publicando versos e contos no jornal Mocidade Académica, iniciativa dos estudantes do Liceu da Horta, dando então início a uma longa e meritória carreira ligada à cultura.
José Peixoto também se dedicou ao teatro, como autor, encenador e crítico. Além das peças que adaptou e foram representadas pelo Grupo Cénico do Angústias Atlético Club, entre 1935 e 1945, escreveu diversas comédias e operetas inspiradas em temas regionais, principalmente do Faial.
Ainda estudante em Lisboa, foi correspondente do jornal faialense Correio da Horta, onde publicou inúmeras crónicas, nomeadamente sobre o Primeiro Congresso Açoriano, realizado naquela cidade, em 1938. Cidadão responsável, tem a atestar o seu civismo a colaboração dispersa no diário faialense O Telégrafo, no Diário dos Açores, de S. Miguel, de que foi correspondente, e ainda nos semanários também micaelenses A Ilha, onde publicou a crónica semanal com o título «Jornal da Horta», e A Vila, de que foi chefe de redacção. Colaborou com o Notícias do Cartaxo, o Povo do Cartaxo e o Diário de Notícias de que foi correspondente.
Em Vila Franca do Campo foi presidente da Câmara Municipal de 25 de Janeiro de 1958 a 4 de Outubro de 1965.
Usou, pelo menos, os pseudónimos Ramiro da Silva e Maria da Soledade. Luís M. Arruda
Obras: Teatro regional: Margarida vai à fonte Romaria, Baleeiros. Casa tu próprio, Sacrifícios, Intrusos, Maior amor, Aos mártires da Pátria: comédia dramática: quatro episódios, Regresso e Mobilização geral. Teatro de revista: Cidade maravilhosa, Bom tempo no canal e Viva a folia, Loiça da vila. Poesia: Folhas da Primavera e Cartas de Amor. Contos: O ano de fome. Correio da Horta, 12 de Janeiro., Quase só mar, O sonho e a vida, Primeira Romaria e Romaria da Caldeira.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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SENHOR BOM JESUS DO PICO
Em meados do ´seculo XIX terá chegado à ilha do Pico a imagem do Senhor Bom Jesus Milagroso, sendo colocada na igreja paroquial de São Mateus do concelho da Madalena, desencadeando uma invulgar atração e uma forte piedade dos fiéis, não apenas da ilha do Pico mas de todas as outras nomeadamente das que se situam mais perto: S. Jorge e Faial.
Foi o emigrante picoense, Francisco Ferreira Goulart, que se fixara na vila costeira de Iguape, no estado de São Paulo, no Brasil que, tornando-se devoto o Bom Jesus, decidiu, no regresso à ilha, em 1862, adquirir e trazer consigo a imagem para a oferecer à igreja da freguesia onde nascera.
Depressa a devoção ao Senhor Bom Jesus se espalhou e o majestoso templo onde se conservava a imagem converteu-se num polo para onde convergia e donde irradiava uma religiosidade popular sem paralelo e que viria a determinar a sua elevação à categoria de Santuário Diocesano, em 1962, pelo então bispo de Angra Dom Manuel Afonso Carvalho.
A imagem do Bom Jesus é a figuração iconográfica do Senhor no quadro da sua paixão em que foi exposto à população na varanda de pilatos, pelo próprio procurador romano. à imagem de Cristo crucificado, representação de Cristo doloroso e sofredor. Esta imagem do Cristo sofredor provocou uma enorme devoção que se radicou na ilha do Pico, atingindo uma enorme vigor, cujo epicentro se concretiza no dia da sua festa, que tem lugar naquela freguesia, todos os anos no dia seis de Agosto.
De referir que esta devoção ao Senhor Bom Jesus, sempre com réplicas da sua imagem, se difundiu em duas outras paróquias do Pico: Calheta de Nesquim e Criação Velha e outras duas na ilha do Faial: Angústias e Cedros, três de São Jorge: Urzelina, Calheta e Santo Antão, uma na Terceiram curiosamente na freguesia com o mesmo nome São Mateus; e uma outra na Pedreira do Nordeste, na ilha de São Miguel. A devoção e o culto ao Bom Jesus está também largamente espalhada na diáspora açoriana, nomeadamente nos Estados Unidos da América, tanto na costa leste, em New Bedford e Newport, como na longínqua Califórnia, onde é mais sentida a presença de imigrantes açorianos idos dos grupos central e ocidental e também no Canadá, na zona de Ontário.
Como alguém escreveu “Por toda a ilha e ao redor da terra picoense (ou picaroto) tem o céu, a religião e a oração sintetizados na imagem, na figura soleníssima, sofredora e máscula do Senhor Bom Jesus do Pico... Todos um dia passaram por São Mateus em caminhadas de penitência e de gratidão. O Bom Jesus os levou por terra dentro e pelo mar fora e por sua vez eles O trazem para as terra de emigração e assim a sua imagem reflete (apenas por coincidência?) a estatura do homem do Pico, da sua verticalidade no gesto e na palavra, no sucesso e na adversidade, na dor, no passo, no ato de viver e na própria morte. O homem do Pico que se preza de o ser onde quer que esteja tem, na súmula de todos estes aspetos, o ar imponente e esbelto que o Rei da sua ilha – o Bom Jesus – apresenta... Assim mesmo: com espinhos e a corda e cetro e as vestes do escárnio. Mas de cara alevantada para a terra e para o mar – para a vida.”
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MAE
Mãe eras mais do que uma mulher.
Eras duas, três mulheres...
Eras todas as mulheres do mundo.
Mãe lavravas, sachavas, plantavas...
E ainda te sobrava tempo para nos amares.
Mãe, nos beliscavas, ralhavas e acariciavas.
Mas era tudo amor. Amor puro de mãe pura.
Na madrugada, acendias o lume com lenha verde,
Choravas com o azedume dos incensos mas clareavas toda a casa.
Mãe sopravas, sopravas, respiravas fumo e a água fervia.
O silêncio informava que pai há muito se levantara.
O ar puro confidenciava que o café de favas e chicória já estava pronto.
Café de mistura. Feito por mãos puras e ternas.
E exalava um perfume tão doce.
Enchia a casa e chegava às nossas camas.
Depois chamavas por nós: um para ir buscar as vacas,
Outro acarretar água da fonte. Outro tirar o esterco do palheiro…
Depois, sentávamo-nos à mesa e partilhavas pão, queijo e café.
Mãe, já não trabalhas, não plantas, não fazes café de mistura.
Faz hoje sessenta e três anos que partiste
Mas continuas amando-nos.
Os que estão e que já partiram para junto de ti
Tenho saudades de seus beliscões.
Das tuas recriminações... De suas carícias...
Daquelas manhãs de silêncio...
Onde o ar era puro e o café de mistura.
NB – Adaptação do poema “Mamãe” de Marco António do Nascimento.
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A PRINCESA E A CEGONHA
Era uma vez uma princesa muito má, Não obedecia nem respeitava os pais e batia nas aias e nos criados do palácio onde vivia. Além disso, quando saía do palácio, tratava mal os nobres do reino e desprezava o povo que a aclamava a quando da sua passagem pelas ruas da cidade, onde se situava o seu palácio. Não havia ninguém no reino que gostasse dela
O velho monarca, seu pai e a rainha sua mãe tinham um grande desgosto e viviam numa grande tristeza por causa do comportamento da filha. Bem tentavam demovê-la das suas malévolas atitudes, mas nada conseguiam.
Certo de dia, já cansados de tanto fazerem em vão, decidiram reunir as fadas e os conselheiros do reino, a fim de procurar uma solução para libertar a filha de tanta maldade Iniciada a reunião e depois do velho monarca expor a razão por que reunia aquele conselho, a Fada do Bem pediu autorização para levar a princesa para o seu Palácio Encantado. Aí havia de a manter durante algum tempo, educando-a de forma a ela perder a sua malvadez e a transformar-se numa pessoa educada e bondosa. Depois de muito se discutir, os pais anuíram e a menina, embora contra a sua vontade, foi levada pela Fada, conforme esta propusera.
Ao entrar no palácio da Fada e, ao ver tanta beleza, não fosse aquela a casa da Fada do Bem, a princesa ficou muito admirada. As paredes das salas de todos os aposentos eram revestidas de conchas de madrepérola e corais e, no interior, havia lagos onde nadavam pequeninos peixes de lindas cores, e jardins onde esvoaçam borboletas de asas de ouro e madrepérola.
Mas depressa a princesa, que ainda não se libertara da sua maldade, arquitetou um plano maquiavélico para se vingar da Fada e destruir tudo o que de bom e belo ela possuía no palácio. Bem o pensou mas não o conseguiu fazer, porque a Fada do Bem fechou-a numa sala. Ao ver-se completamente só e ao ouvir apenas o barulho das ondas do mar a desfazerem-se contra os muros do palácio, a princesa chorava de medo. Tanto chorou e tanto se assustou que, por fim começou a suplicar que a tirassem dali, pois prometia que havia de ser boa para todos. Mas a fada não lhe atendeu os pedidos, mantendo-a fechada.
Passados uns dias um grande temporal desabou sobre a cidade e o palácio. Trovões, relâmpagos, chuvas e ventos fortíssimos e o mar muito bravo. Mas algo de insólito aconteceu: a fúria das ondas arrastou um barquinho para as proximidades do palácio da fada. O pescador que nele navegava, ao ouvir o choro e os gritos da princesa julgou ser um náufrago aflito e a pedir socorro. Aproximou-se, subiu ao rochedo mas não viu ninguém, porém ouvia mais nitidamente o choro. Impressionado e impotente pôs-se também ele a chorar. Uma cegonha que sobrevoava aquela zona ao ver as lágrimas no rosto do pescador, puxou com o bico a argola que abria a porta secreta sob um tufo de algas. O pescador entrou, ficando, também ele, extasiado com tudo o que via. Mas com o que mais se admirou e com o que mais se impressionou foi com a beleza da menina. Nunca na sua vida vira uma jovem tão bela!
Ajudados pela cegonha, após a princesa jurar solenemente à Fada do Bem que jamais seria má, os jovens partiram para o castelo real. O velho monarca e a rainha consorte ficaram muito felizes com a chegada da filha e fizeram uma grande festa, a que assistiram as fadas e o povo. O pescador aproveitou o ensejo e pediu a princesa em casamento, deixando o rei muito feliz e honrado com o seu pedido pois sabia que todo esse plano fora arquitetado pela fada.
O casamento realizou-se ao fim de poucos dias. À cerimónia, para além de todo o reino e das fadas, assistiram os reis dos países vizinhos, e para surpresa de todos, vindos dum reino muito distante, vieram os pais do noivo, que ao ver o filho ficaram muito felizes pois tinham perdido as esperanças de encontra-lo. É que todos os marinheiros que o acompanhavam e que foram vítimas daquele terrível temporal haviam morrido.
Consta que os príncipes foram muito felizes e viveram muitos anos. O jovem príncipe, que outrora fora um humilde pescador, após a morte do velho monarca, assumiu o governo do reino e foi um excelente rei, sobretudo porque acompanhado por uma bondosa, prudente e sábia rainha.
Consta que a cegonha, após algum tempo, visitou o palácio real, trazendo aos reis um belo príncipe.
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O DESCANSADOURO DA CABACEIRA
Não era dos mais importantes, nem muito menos dos mais interessantes ou míticos descansadouros de quantos havia nos caminhos da Fajã Grande. Apesar de tudo era imprescindível e útil. Situava-se no antigo caminho entre St António e os Lavadouros Vale Fundo, na reta que se seguia a uma pequena ladeira com o mesmo nome e onde se situavam algumas das principais propriedades do amplo lugar da Cabaceira do Meio. Apesar de pequeno, este descansadouro proporcionava descanso a muitos homens que por ali passavam diariamente. Por um lado, destinava-se ao descanso dos que, vindo dos Lavadouros, da Alagoinha, da Lombega, do Moledo Grosso, do Lameiro, da Cancelinha e de outras paragens, carregados com molhos, cestos e sacos, que ali paravam, sentando-se nos degraus da canada da Cabaceira de Cima, fumando e conversando. Mas também muitos homens e mulheres vindos da próxima Cabaceira de Cima, ali descansavam. Através duma canada que desembocava ali, aproveitavam-no também para se refazer do cansaço dos trabalhos nas belgas de inhames que por ali proliferavam, de cortar e rachar, lenha, ceifar feitos ou cortar cana roca. Por vezes até paravam ali os animais que seguiam para as relvas dos Lavadouros, mais por conveniência do dono do que extenuados pela longa caminhada.
Mas o que mais caraterizava este descansadouro era que, contrariamente à maioria dos outros, não se situava num largo, mas sim em pleno caminho, sendo as paredes deste que serviam para colocar molhos e cestos, enquanto os assentos, para além dos degraus da Canada da Cabaceira de Cima, eram simples pedras retiradas das paredes e colocada no chão. Eram sobretudo as paredes do lado oeste, duma propriedade que pertencia a meu pai e de uma outra contígua que pertencia ao tio Francisco Inácio e que era trabalhada por um dos filhos, que serviam para colocar cestos, molhos e sacos. Outra característica importante e comum a todos os descansadouros localizados ao longo deste caminho era a de se situar num lugar muito fresco, sombrio e abrigado, pois para além das altas paredes que, regra geral, os ladeavam, neste caso a leste e a norte, perfilava-se ao seu redor um denso arvoredo. As copas das árvores como que cobriam o caminho de um lado ao outro. Este descansadouro, uma vez que não se situava num largo, estendia-se por uma grande área retangular do caminho, com o centro no cruzamento da Canada mas quase nunca se enchia de homens, por haver outros maiores ali perto. A sul e para cima o da Cancelinha, a norte e na direção do povoado o do Delgado e sobretudo o de Santo António. Para além de dar descanso aos homens que acarretavam molhos ou outras cargas trazidos dos campos que possuíam nestes lugares, este descansadouro também dava abrigo a animais sobretudo aos que puxavam corsões, pois sendo aquelas terras muito distantes das casas, regra geral recorria-se a estes meios de transporte, uma vez que assim, numa única viagem, acarretava-se o que às costas seria feito em dez, vinte ou mais vezes. Era sobretudo feitos, cana roca e lenha, incensos para o gado e inhames que se acarretava dali, em corsões ou às costas dos homens
O Descansadouro da Cabaceira tinha, geralmente, um aspeto sombrio, como que acinzentado, o que o tornava, por vezes aparentemente, deserto, misterioso e enigmático. Ali, encastoado entre o arvoredo e as altas paredes, transformava-se num espécie de auditório de silêncio e de mistério onde corriam, incessantemente, murmúrios de memórias perdidas no tempo, sonhos assustadoramente desfeitos e lamentos, inconformadamente, cerceados pelo destino.
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INOCENTE E CULPADO
Conta-se que há muitos, muitos anos, um homem bom, honesto e muito crente em Deus foi injustamente acusado de ter assassinado uma mulher. O homem foi levado à presença do juiz, a fim de ser julgado, temendo os familiares e amigos que fosse condenado à forca. O homem, no entanto, apesar de saber que tudo iria ser feito para que fosse condenado em vez do verdadeiro homicida, homem muito rico e poderoso e amigo do juiz, mantinha uma calma e uma tranquilidade muito grandes.
O juiz sabia muito bem que o homem estava inocente, mas querendo encobrir o verdadeiro culpado, preparou-se para a sentença que havia de levar o pobre homem à morte na forca, simulando um julgamento justo.
Assim e durante o julgamento, o malévolo juiz fez uma proposta ao acusado, pedindo-lhe que provasse sua inocência.
O homem tomando a palavra, com uma serenidade que impressionou todos os presentes disse:
- Meritíssimo juiz: eu sou um homem pobre e simples mas crente e temente a Deus e, por isso vou entregar a minha sorte nas mãos do meu Criador. Se o meritíssimo juiz assim me autorizar vou escrever num pedaço de papel a palavra inocente e noutro pedaço a palavra culpado. Vossa excelência sorteará um dos papéis e aquele que sair será o veredicto.
- Deus decidirá o teu destino. - Determinou o juiz. – Mas serei eu a escrever os papéis.
O juiz preparou os dois papéis, mas em ambos escreveu a mesma palavra, culpado e dobrou-os muito bem, a fim de esconder o que neles estava escrito. Assim não existia nenhuma possibilidade do acusado não ser condenado, livrando-se da forca. Estava decididamente declarado culpado e condenado.
O juiz levantou-se, aproximou-se do réu, colocou os dois papéis sobre uma mesa e ordenou-lhe que escolhesse um. O pobre homem ficou pensativo durante alguns segundos e, de seguida, aproximou-se confiante da mesa. Com grande tranquilidade pegou um dos papéis e rapidamente o colocou na boca, engolindo-o. Os presentes reagiram surpresos e indignados.
- O que fizeste?! – Exclamou o juiz - E agora? Como vamos saber qual o teu veredicto?
- É muito simples, senhor doutor juiz, - respondeu o homem. - Basta abrir o outro pedaço. Saberemos assim que eu engoli o contrário.
Consta que o juiz declarou, imediatamente o homem inocente.