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A PERFUMARIA

Sexta-feira, 11.09.15

Ele passava todos os dias em frente à perfumaria onde ela trabalhava, simplesmente para a ver, observar e mirar. Mesmo contemplada de fora das vidraças, ela parecia bela, sublime, divinal. Tudo menos uma mulher simples e vulgar. Uma deusa. Se uma nesga que fosse da porta permanecesse aberta, observa-a, pormenorizadamente, na sua excelsa beleza, na sua singularidade invulgar, na sua imperial sublimidade. Um rosto branco de neve, cabelos loiros e soltos, um corpo elegante e desenvolto.

Um dia em que a porta estava totalmente escancarada e não havia nenhum outro cliente no estabelecimento, decidiu entrar. Mesmo que não comprasse o que quer que fosse havia de indagar o preço dum qualquer perfume com a denodada intenção de, simplesmente, meter conversa. E foi nesse momento, em que ela muito simpática e sorridente lhe perguntou se podia ajudá-lo, que tudo começou. Ela não era, afinal, aquela estátua fria, indiferente que até parecia desviar o olhar quando ele passava e aborrecer-se quando percebia que ele a espreitava cá de fora. Parecia-lhe ser senhora dum coração feito de confiança, cheio de ternura. Se pudesse ficaria ali, a tarde inteira a simular ver perfumes, ganancioso de respirar o ar que ela respirava, de a ver, de senti-la a seu lado, como se fosse sua. Ela também parecia simular, ficando a imiscuir-se na complexidade de descortinar os preços de caixas e frascos, a inteirar-se do que ele simulava pretender comprar e que, afinal, nada mais era do que ela própria. Ela percebia-o a dissertar sem nexo, adivinhava-lhe o pensar, descobria-lhe os desejos. E como era animosa, e a solidão em que o marido a deixara, há mais de um ano, lhe pedia convívio, partilha, entrega e doação, aceitou-o com gosto e enlevo. Por momentos, até sonhou que ele podia de ser seu.

De pouco lhes valeram os fracos murmúrios daquele simples e instantâneo enlevo. As palavras perderam-se e o seu eco dissipou-se, deixando apenas memórias e sonhos. Dias depois, um traste qualquer, gordo, pançudo, aproveitador e oportunista usufruiu da fraqueza emocional em que jazia e galgou-a. Ela tola, inocente, cega foi-lhe na conversa. Durou pouco tempo o apócrifo enlevo. E ele regressou à perfumaria a tentar aconselhar, orientar, impedir nova investida, sem o conseguir. Ela, todos os dias, umas vezes de manhã, outras à tarde, depois de fechar a perfumaria, ia até ao parque e corria, descarregando desgostos e frustrações. Ele descobriu-lhe o horário e passou a ir à mesma hora. Bem desejava saltar as lombas, atravessar a ponte e percorrer os trilhos a seu lado mas não conseguia. Ela veloz como uma gazela, parecia que de propósito circulava sempre ao contrário. Apesar de tudo, só por a ver, o parque tornava-se num éden, num paraíso, num recanto emocional mas contraditório, de encontro e de separação.

Mas verdade é que a partir de então se tornaram bons amigos. Ele a perder-se em devaneios quando a via, ela a desfazer-se em simpatias quando o encontrava. Por vezes até era ela que o descobria primeiro. Chamava, parava, conversava, estagnava. Por vezes até lhe falava do filho! E enchia o peito de ar, tanto que se orgulhava dele. Um rapagão!

Mas os tempos eram de crise e os negócios entraram em turbulência. A perfumaria não fugiu à regra. Fechou e, inexplicavelmente, ela desapareceu. Foram os correios que a trouxeram, uma vez, uma só vez… E ele, por displicência, quase passava ao lado.

A perfumaria esfumou-se, transformou-se num hediondo e mísero barranco de sonhos!

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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