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CALIFÓRNIAS DE ABUNDÂNCIA

Sábado, 31.10.15

Durante a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX, a América era encarada pelos habitantes da Fajã Grande, encurralados entre o mar e a rocha, com limitadíssimas condições de vida, como uma terra mítica onde todos, mesmo os mais tansos, singravam com sucesso e enriqueciam abruptamente. Alguns dos emigrados, na Fajã Grande, antes de partirem, mal sabiam conduzir um carro de bois e um ano depois de chegar à América já possuíam e guiavam um automóvel. Mais tarde, a este mundo de sonhos, juntou-se o Canadá. Ambos a darem uma machadada tremenda no desbaste da população da mais ocidental freguesia portuguesa, como aliás em quase todas as outras freguesias dos Açores.

Mas desde há muito que esse fluxo migrante como que estacou e hoje, quer a demanda da América quer a do Canadá já não exercem tão grande fascínio na população, tendo, inclusivamente e por óbvias razões, perdido o seu carácter utópico de únicos exemplares de terras promissoras, das quais dependia em parte a sobrevivência dos que haviam ficado atrás. Mas na verdade, nem a América nem o Canadá eram benéficos apenas para os que os haviam demandado, muitos clandestinamente outos através dos célebres papeles ou por carta chamada. Muitos dos que ficavam, familiares, parentes e amigos dos que haviam partido beneficiavam da riqueza exagerada, muito especialmente da proveniente da terra do Tio Sam e, mais concretamente, da Califórnia. À Fajã Grande chegavam, semanalmente resmas e resmas de sacas de roupa, de cartas recheadas com cheques e dólares que trocadas a vinte e oito escudos cada uma redundavam em sustento de muitas famílias. Além disso a maioria dos que vinham de visita traziam baús carregados de tudo um pouco e que iam enriquecendo o pecúlio dos que haviam ficado. A América e mais concretamente a Califórnia transformou-se, assim, numa espécie de mina. Com razão Pedro da Silveira a apelidou de Califórnia de Abundância. Na verdade aquele ilustre e conceituado escritor e poeta fajãgrandense, ao longo da sua obra, revela essa América de abundância e riqueza, referindo esse país com contornos concretos, metamorfoseado em sonho do povo, para quem o desejo de algo mais, se projeta nas «Califórnias perdidas de abundância» expressão que sintetiza, de forma magistral, a duplicidade inerente a América de contrastes, uma terra onde se pode experienciar tanto triunfos como derrotas e também a América dos que ficam apenas a imaginá-la para lá do horizonte e que a ela só acedem pelas encomendas e pelas dolas dos outros. Esta dupla faceta de contrastes também se manifesta nalguns contos de outros autores açorianos, nomeadamente Nunes da Rosa, em Pastoraes do Mosteiro, até porque a maior parte da ficção açoriana elege a América como um dos seus temas recorrentes e como que transforma a emigração na grande narrativa insular, ou seja, num processo em que a caminhada para Oeste, com as suas vicissitudes, dramas, derrotas e triunfos, é ao mesmo tempo procura e descoberta de um universo diferente, aprendizagem da vida, abertura ao novo mundo. Em muitas destas obras a América é-nos apresentada, na verdade, como a terra da abundância, onde há muito dinheiro, muitas estradas, muitos mechins, onde as casas são bonitas e limpas, com talavejas e frizas cheias de alimentos, enfim um mundo de sonho, opulento e farto, onde até o cheiro é muito bom. Um mundo com a qual apenas se pode sonhar, onde as pessoas vestem roupas vistosas e perfumadas e vivem no conforto e na riqueza, uma terra onde o progresso dita um ritmo de vida muito mais acelerado. Uma terra onde não existe pobreza, onde a fome e a dificuldade de sustentar os filhos foram banidas, uma terra que oferece um futuro radioso a todos os açorianos que decidiram para lá partir. A América é Califórnias de abundância.

Mas o que mais tornou apelativa esta terra deslumbrante, esse mundo de sonhos e de magia foi a descoberta de ouro na Califórnia, na segunda metade do século XIX, e que originou uma corrida desenfreada de pessoas vindas não só dos Açores mas de muitas outras partes do mundo, levadas pela intensa avidez de obter lucros fáceis. Nessa altura era sobretudo os homens que partiam, geralmente fugindo nas baleeiras, muitas vezes correndo grandes riscos mas regressando alguns anos de pois com umas águias de ouro nos baús, casando, construindo uma casa e comprando algumas terras. Infelizmente muitos deles, porém, regressavam tristes, depois de andarem nos montes a pastorear mal ganhando para o seu sustento e para a viagem de regresso. Califórnias perdidas de abundância!

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publicado por picodavigia2 às 00:05

PREGAR PARTIDAS

Sexta-feira, 30.10.15

O José de Lima era exímio no pregar de partidas. Calmo, bonançoso, bom conservador e amigo do seu amigo não se furtava, no entanto, de se divertir um pouco, sobretudo com aqueles com quem tinha maior amizade e mais confiança. Fazia-o, no entanto, sem magoar ou ofender. Apenas pelo prazer de se divertir. Eu, apesar de mais novo, era um dos seus maiores amigos e mantínhamos, durante os meses de verão, uma cumplicidade recíproca. Convivíamos, conversávamos, sobretudo à noite, uma vez que andando ele a caiar e a retelhar casas durante o dia e ainda por que o pai tinha terras para trabalhar e gado para criar, ele, na verdade e como era costume na Fajã Grande noutros tempos, trabalhava de sol a sol e, por vezes, pela noite dentro. Incontestavelmente eu era uma das maiores vítimas das suas partidas, geralmente inofensivas e por vezes até jocosas.

Certo dia decidi que me havia de vingar.

À tardinha o Lima, como era seu hábito, subia a Fontinha com duas ou três rezes levando-as a uma relva que o pai possuía para os lados da Escada-Mar. Passou à porta da casa da minha avó, onde eu morava e parou um pouco de maneira a que o gado não se distanciasse nem se confrontasse com outro que descesse a rua. Conversámos vagamente e seguiu o seu caminho. Decidi, então, que aquele seria o dia da vingança.

Chamei um miúdo meu vizinho e perguntei-lhe se queria ganhar um escudo. Que sim. A tarefa era simples: fazer-me o favor de ir à Via d´Água, a casa do Senhor José de Lima, avisar a esposa dele, a minha prima Minerva, de que o enteado hoje não ceava com eles. Não esperassem por ele para a ceia, pois ele ia cear em minha casa. Eu sabia que a prima Minerva, sabendo da nossa amizade, havia de acreditar. Além disso, enviar um miúdo a avisá-la era coisa de respeito e nunca uma brincadeira.

O Lima regressou já quase noite, pois nunca se apressava nas suas tarefas. Vi-o passar por entre os cortinados da sala, descer o Caminho de Baixo, a Rua Direita e Via de Água. Quando calculei que estivesse prestes a chegar a casa, segui-lhe as pisadas e, em breve, estava a bater-lhe à porta da sala.

Entrei e começámos a conversar. Na cozinha o pai e a madrasta ceavam tranquilamente. De vez em quando ouviam rumores da azáfama de preparação da ceia. Mas chamar o Lima para o bródio é que nada. Nem o pai, nem a madrasta. E eu a tentar prolongar a conversa de maneira que não desse a entender o que quer que fosse e que a ceia que se desenrolava na cozinha terminasse. Às tantas o Lima começa a olhar para o relógio. Primeiro espaçadamente, depois com frequência, até que muito admirado se levanta, de rompante e, dirigindo-se para a cozinha, reclama em voz alta:

- Ómessa!  Hoje não se janta nesta casa!?

A Minerva ouviu a reclamação e, assomando à porta, de avental ao peito, tenta explicar muito aflita e confusa:

- A gente já ciou. Cuidava que não vinhas cear…

- Não vinha cear… Então porquê?! – Interrogou o Lima muito indignado.

- Por que veio aqui o piqueno do Ângelo do Tisoireire dezê que tu hoje nam vinhas ciá a casa. Que ciavas em casa do….

Nessa altura já não contive a risada e o Lima nem precisou de mais explicações. Apenas, virando-se para mim avisou:

- Vais pagá-las bem pagas… Vais… Óh, se vais!

 

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publicado por picodavigia2 às 00:04

A LENDA DE SÃO MIGUEL ARCANJO

Quinta-feira, 29.10.15

Na igreja da Fajã Grande, na década de cinquenta, ainda existia uma imagem de São Miguel-o-Anjo. Tratava-se de uma pequena escultura em talha dourada que se dizia ser muito antiga, tendo, provavelmente, pertencido à primitiva ermida, construída em 1755 e que antecedeu a atual igreja. A imagem representava o São Miguel Arcanjo, empunhando numa das mãos uma espada e na outra uma balança. Estranhamente esta imagem não estava exposta à veneração dos fiéis, encontrando-se guardada numas arrecadações que existiam por detrás do altar-mor, junto às escadas do camarim.

Era sobre São Miguel Arcanjo que, naquela altura, se contava a seguinte lenda a qual, provavelmente, teria algum fundamento religioso e cristão, dadas as semelhanças entre o seu conteúdo e a representação que havia sido feita da velha e pequenina imagem. Contava-se que houve, certa vez, no Céu um grupo de anjos comandados por Lucifer que se revoltou contra Deus, numa espécie de golpe de estado exigindo que lhe fossem dados poderes e privilégios semelhantes ais divinos. Como Deus não aceitasse tão inoportuna e exasperada rebeldia, travou-se uma batalha no céu, envolvendo os anjos fiéis a Deus contra os anjos revoltosos. Estes eram comandados por Lucifer e os fiéis a Deus tinham como chefe São Miguel Arcanjo. Nessa batalha, destacou-se, na verdade, São Miguel Arcanjo. Segundo a lenda, São Miguel enfrentou diretamente Lucifer, derrotando-o definitivamente e atirando-o para o inferno juntamente com todos os anjos revoltosos. Essa a razão por que São Miguel Arcanjo, geralmente, é representado quer em imagens sacras quer em pinturas religiosas sob a forma de guerreiro vitorioso, empunhando uma espada contra Satanás, como acontecia na velhinha imagem da Fajã Grande. É também por isso que é invocado como patrono dos guerreiros e se lhe pede auxílio nas lutas e combates da vida.

São Miguel Arcanjo também é invocado como o anjo da morte, pois acredita-se que é ele que assiste cada alma na sua jornada final, logo após a morte, até o céu para julgamento. Essa a razão por que para além da espada, se apresenta também com a balança para pesar os pecados dos humanos e julgar os bons e os maus. A tradição diz que Miguel dá uma última chance a todas as pessoas, a fim de se redimirem antes da morte e assim, desta forma, provoca consternação ao demónio e seus seguidores, obtendo mais e mais vitórias sobre Lúcifer.

Inspirado na velhinha imagem da igreja da Fajã Grande, Pedro da Silveira nascido naquela localidade escreveu o seguinte poema

 

“Lembrei-me agora de ti,

San Miguel-o-Anjo de espada ferrugenta e capacete emplumado

De quando eu ia com meu pai à missa de domingo.

 

Tu não falavas nunca com os meninos da tua idade,

Nem rias quando olhávamos para ti;

Os teus beiços ficaram sempre mudos

Ao meu apelo insistente de criança.

Abismados em não sei eu que pensamentos de nuvens,

Teus olhos nunca se abriram para a vida

Que a minha ingenuidade de seis anos te quis dar.

 

                        Todos os dias a pesar pecados

                        Na balança velha do céu…

 

San Miguel-o-Anjo da minha infância,

Esquecido da vida num canto escuro da igreja,

Nem tu talvez existes já…

 

Outras vozes acordaram nos meus dias

E chamaram a outros caminhos

O menino que eu era contigo.

 

Hoje, San Miguel-o-Anjo da minha infância,

Menino santo de pau insensível à vida,

De ti em mim persiste só

A vontade que eu tinha de gritar à tua indiferença

Que deixasses de ser santo

E viesses cá para fora brincar comigo

Nas poças da beira-mar.”

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publicado por picodavigia2 às 00:05

CLARA DE JESUS

Quarta-feira, 28.10.15

Clara de Jesus nasceu na freguesia de Ponta Delgada, ilha das Fores, na última década do século XVIII e faleceu na Fajã Grande, a 2 de Dezembro de 1864, com setenta e três anos. Foram seus pais Francisco António Rodrigues e Francisca Valadão. Era oriunda de uma família abastada a que pertenciam alguns dos militares que, na altura, comandavam as guarnições e fortes da orla costeira, noroeste, norte e nordeste da ilha das Flores. Estes fortes abundavam, sobretudo, no norte da ilha, mais precisamente na zona da freguesia de Ponta Delgada onde a defesa da baía e dos portos estava cometida aos fortes do Porto, Portinho, Ponta do Ilhéu, Pau Pique, Fragona, Ribeira do Moinho e Carregadouro das Barrosas. Muito provavelmente foi esta ligação familiar a tios militares, que acabou por ligar a família da jovem Clara de Jesus à do tenente Bartolomeu Lourenço Fagundes, na altura a comandar o forte do Estaleiro da Fajã Grande, onde residia. Este relacionamento, muito provavelmente, originou que Clara casasse com um filho do tenente Bartolomeu Fagundes, de nome Manuel Joaquim Fagundes, sendo o casamento realizado na igreja de São Pedro de Ponta Delgada, em 8 de Janeiro de 1809, tendo ela cumprido, anteriormente a desobriga na quaresma. Um dos padrinhos ou testemunha do ato matrimonial foi o Tenente Manuel Valadão, a comandar um dos fortes de Poma Delgada, tendo o casamento sido oficiado pelo ilustre escritor florense, o padre José António Camões, na altura pároco da freguesia de Ponta Delgada. Foram os seus sogros Ana de Freitas e Bartolomeu Lourenço Fagundes, filho de António Silveira Azevedo, natural de Santa Luzia do Pico, casado com Catarina de Freitas, migrado para a Fajã Grande juntamente com os pais José Pereira Azevedo e Maria de São João.

Em 1816 Clara sofre o primeiro grande desgosto, com a morte do sogro, com pouco mais de sessenta anos. Mas um ano antes, em1815, assistiu à missa nova do seu cunhado, irmão do marido, o padre José Narciso da Silveira que durante alguns anos viveu na Fajã Grande sendo o capelão da ermida de São José e que foi pároco do Lajedo, entre 1921 e 1953.

Um dos factos mais interessantes da sua via foi, na verdade, o de ter presidido ao seu casamento o padre José António Camões uma das mais insignes figuras da cultura florense, autor de vários livros, entre os quais o polémico Testamento do D. Burro. Na altura pároco em Ponta Delgada, tendo sido também ouvidor de Santa Cruz.

Após o casamento juntamento com o marido, Clara decidiu fixar residência na Fajã Grande, na rua Assomado onde viveu até ao ano do seu falecimento, a 2 de Dezembro de 1864.

Teve vários filhos, alguns dos quais ainda estavam vivos a quando da sua morte. Um deles foi António Joaquim Fagundes, casado com Policena de Jesus, na igreja da Fajãzinha em 8 de Novembro de 1855 e que foram os pais da minha avó paterna, Maria de Jesus Fagundes. Portanto Clara de Jesus foi minha trisavó pelo lado de meu pai. Outro filho foi José Lourenço Fagundes casado com Mariana Joaquina e que também casaram na Fajãzinha, em 5 de outubro de 1838. Ele faleceu em 4 de Abril de 1883, deixando sete filhos. Um terceiro filho teve o mesmo nome do avô, Bartolomeu Lourenço Fagundes, tendo casado por duas vezes. A primeira com Maria Laureana da Silveira, em 7 de dezembro de 1854, sendo que deste casamento faleceu uma filha de 23 anos com o mesmo nome da mãe e a segunda vez com Policena Margarida do Coração de Jesus, em 31 de outubro de 1878. Do primeiro casamento nasceram três filhos, o último dos quais foi meu bisavô materno José Fagundes da Silveira, pelo que Clara de Jesus foi minha tetra avó materna, pelo lado da minha mãe. Do segundo casamento nasceram mais filhos, um dos quais também casou duas vezes. Das primeiras núpcias foi pai do Alfredo Batelameiro e do Lourenço, ainda residentes na Fajã nos anos cinquenta e das segundas teve como filhos a Deolinda e da Maria do Céu, as primas Fragueiras que portanto, eram bisnetas da Clara de Jesus. Este terceiro filho de Clara de Jesus faleceu em 3 de Dezembro de 1902 com 70 anos. O quarto filho de Clara de Jesus foi Manuel Joaquim Fagundes que casou em Ponta Delgada com Maria Laureana do Coração de Jesus, natural desta freguesia, em setembro de 1845 e enterrou um filho de um mês de vida em 26 de agosto de 1865. Maria Laureana faleceu em 19 de Julho de 1888, Deixou 4 filhos e ele casou segunda vez com Ana Laureana de Freitas, filha de Laureano José de Freitas Henriques e Ana Emília de Freitas. O último filho de clara de Freitas de que há registo foi Francisco Lourenço Fagundes que casou com Maria dos Santos em de Julho de 1863. Ela faleceu alguns anos mais tarde, com 60 anos e sem filhos. Ele passou a viver maritalmente com uma senhora que morava na Via d’Água, de nome Ana Clara da Silveira, falecendo em 15 de Agosto de 1889.

O que de mais interessante se me depara na vida desta grande mulher, Clara de Jesus, é o facto de ela ter sido, simultaneamente, minha trisavó pelo lado do meu pai e minha tetra avó, pelo lado da minha mãe, o que significa que os meus progenitores ainda eram primos.

 

NB – dados retirados dos livros de registo de batizados, casamentos e óbitos da paróquia de S. José da Fajã Grande.

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publicado por picodavigia2 às 00:21

O DESCANSADOURO DA VOLTA DO DELGADO

Terça-feira, 27.10.15

Até à década de cinquenta e antes da abertura do troço de estrada que liga o Porto da Fajã Grande à ladeira do Biscoito, junto à Ribeira Grande, existia um emblemático e muito concorrido descandouro no lugar conhecido como a Volta do Delgado. Este descansadouro situava-se no antigo caminho que ligava a Fajã à Cuada, um pouco acima de um outro enorme e frequentadíssimo, o do Vale da Vaca, que devido à sua importância e grandiosidade era simplesmente designado pelo Descansadouro, dando inclusivamente nome ao lugar em que situava. Uma espécie de pai de todos os descansadouros existentes nos vários sinuosos caminhos da freguesia.

O descansadouro da Volta do Delgado situava-se precisamente numa enorme curva do caminho, um pouco antes de Santo António, paredes meias com o enormíssimo cerrado do Lucindo Cardoso. A curva que fazia jus ao nome de volta era bastante acentuada e ladeada, a oeste pelos contrafortes do Outeiro e tinha a sudoeste algumas paredes que serviam para colocar os molhos, cestos, sacos e outros carregamentos. A bancada ficava encastoada nas paredes de um pequeno largo formado pelo cruzamento de uma canada que dava acesso a algumas terras do lado da Cuada e servia de descanso aos homens que vinham ou iam para essas terras assim como os que partiam ou regressavam a casa quando se deslocavam para os campos do Delgado, Cabaceira, Cuada, Espigão Lavadouros e muitos outros situados na parte sul da freguesia. Assim paravam ali, diariamente, dezenas e dezenas de homens que, exaustos e cansados, no regresso destas paragens, interrompiam a sua caminhada, fazendo uma pausa. Fumavam, trocavam lume e cigarros, conversava, por vezes faziam contractos e acordos e, sobretudo, descansavam porque as distâncias eram longas, o piso dos caminhos e, sobretudo, o das canadas contíguas era muito íngreme e sinuoso, e as cargas eram pesadíssimas.

Com a abertura da estrada, esta zona do antigo caminho foi desfeita e destruída por completo, assim como o descansadouro que ali se situava, nada dele ficando a não ser a memória. Acresce dizer-se que, pouco depois, o antigo descansadouro da Volta do Delgado foi substituído por um outro, muito perto situado um pouco mais acima, na nova estra que dividira o cerrado do Lucindo Cardoso em dois. O descansadouro deslocou-se para o meio do cerrado, junto a uma casa velha ou palheiro que ali existia. Como este era de dois pisos e o primeiro ou loja estava sempre aberto, este novo descansadouro que tinha a vantagem de possuir um abrigo da chuva, privilégio nunca concedido a nenhum outro, passou a designar-se por descansadouro do Palheiro do Lucindo Cardoso.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

AS GALOCHAS DAS VACAS

Segunda-feira, 26.10.15

Um dos mais estranhos vícios que alguns dos muitos bovinos existentes antigamente na Fajã Grande, quando soltos nas pastagens, vulgarmente designadas por relvas, era o de galgarem as paredes circundantes da propriedade em que se encontravam e saltarem para os campos alheios, muitas vezes causando grandes prejuízos. Era sobretudo as vacas dando e o gado alfeiro que se davam a estes luxos. Os seus donos lá iam levantando uma outra parede mais baixa, mas as malditas, viciadas no salto, arranjavam sempre maneira de concretizar os seus malévolos instintos. Depois eram os donos dos terrenos com culturas destruídas a queixar-se, com razão, junto dos donos das malfadadas rezes

Para evitar estes males e impedir os animais de se meterem em ceara alheia, os seus donos possuíam dois meios. Um era acabramá-las, isto é, amaravam-lhe uma corda potente à cabeça e prendiam-na a uma das mãos, impedindo assim a famigerada de saltar. O animal assim aprisionado, tinha que andar com o pescoço torcido, com a cabeça de lado, deslocando-se muito lentamente e ao viés e, consequentemente, incapaz de correr ou de saltar. Mas um outro meio existia de impedir as vacas de galgarem as paredes. Era menos doloso para o animal e, sobretudo, mais eficiente, até porque a corda, muitas vezes rebentava e o acesso à propriedade vizinha estava garantido às malditas, que por vezes pareciam loucas e verdade. Eram as galochas.

Cada galocha era constituída por duas enormes tiras de madeira que, quando juntas, formavam uma espécie de bote de baleia, com duas proas, com um furo redondo a meio. Cada semicírculo deste furo era feito em ambas as tiras de madeira, precisamente no sítio em que elas se ligavam uma à outra. Estas partes, num dos lados, eram presas por uma dobradiça e fechavam no lado oposto, com uma pequena cavilha, devidamente presa à madeira com uma pequena corrente. Retirando a cavilha, a galocha, graças à dobradiça do lado oposto abria, permitindo colocar este artificioso engenho na mão do animal. Uma vez colocada a galocha, a mesma era fechada com a cavilha. Uma vez colocada na mão do animal, a galocha causava-lhe grande embaraço e transtorno no andar, impedindo-o, consequentemente, de saltar.

A razão pela qual este interessante artefacto se chamava galocha poderá ter a ver com o facto de ser uma espécie de calçado feito de madeira, uma vez que na Fajã Grande se chamavam galochas a um tipo de calçado feminino, fabricado, geralmente, pelos carpinteiros da freguesia, cuja parte inferior ou da sola era feito com um pedaço de madeira geralmente de cedro. Na parte superior, mas apenas a cobrir os dedos e o peito de pé, era pregado com tachas, um pedaço de pele, de couro ou de tecido rijo, formando uma espécie de chinelos, mas com a queda um pouco alta. Este calçado era utilizado pelas mulheres sobretudo quando iam lavar roupa à ribeira. Para os homens, em alternativa, existiam os tamancos, muito utilizados nos trabalhos agrícolas mais rijos, até porque para um homem, usar galochas, era uma afronta, pois seria, de imediato, alcunhado de maricas. As vacas é que se estavam marimbando para isto. Bem queriam elas era fugir às galochas. Que tivessem juízo!

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

DECISÃO

Domingo, 25.10.15

(POEMA DE ARTUR GOULART)

Aproveitemos as palavras

e o silêncio.

Sigamos este rasto

Marcado na esperança do caminho.

Ponhamos os pés

à frente da alegria

juntemos as mãos

na construção do dia.

 

Artur Goulart No Fio das Palavras

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publicado por picodavigia2 às 08:39

OS VAGÕES

Sábado, 24.10.15

Quando, em plena década de cinquenta, chegaram à Fajã Grande os empreiteiros que iriam construir o troço de estrada entre o Porto da Fajã Grande e a ladeira do Pessegueiro, junto à Ribeira Grande, trouxeram um acervo de material e maquinaria de que não havia memória. Entre esta panóplia de carros, carrinhas, pás, enxadas, picaretas, maças, e muitos outros apetrechos, vieram três ou quatro interessantíssimos e enormes vagões.

Os vagões eram uma espécie de carrinhos de mão, gigantes, que se apoiavam sobre quatro ou seis rodas, do tipo de rodas de comboio, pelo que só podiam deslocar-se sobre carris ou linhas férreas. Depois de desenhado o trajeto, era necessário desfazer os montes e, com o entulho retirado destes, encher os vales, operação que a ser efetuada nos simples carrinhos de mão, novidade também trazida pelos empreiteiros para a Fajã, nunca mais teria fim. O entulho era muito e, grande parte dele era constituída por enormes pedregulhos, incompatíveis com a reduzida capacidade dos carrinhos de mão, que tinham apenas uma roda na extremidade oposta à dos dois cabos que eram transportados apenas por um homem. Os empreiteiros sabiam-no e, por isso, se muniram dos potentes vagões e das respetivas linhas férreas. Um transporte difícil e dispendioso mas compensador. As linhas foram montadas no trajeto ainda virgem da nova estrada e os vagões não paravam, toca para baixo, toca para cima, a carregar o entulho da rocha da Volta do Delgado e a despeja-lo nas terras baixas do Vale da Vaca e do Descansadouro, o de Santo António a ser baldeado nos cerrados do Delgado, o da Volta do Pinheiro a encher os desníveis da Cabaceira e o da Ribeira do Ferreiro e do Pessegueiro a encher e a atulhar o Vale Fundo.

Mas os vagões que circulavam sobre os carris não tinham nenhuma locomotiva ou sequer motor que os locomovesse. Apenas rolavam sobre as linhas, tendo numa das extremidades uma pequena plataforma onde um ou dois homens se podiam dependurar. Quando carregados desciam na direção do povoado e, sobretudo porque carregados, deslocavam-se impelidos pela força da gravidade. Não necessitavam de condução, dispondo apenas de um potente travão, ativado por um dos homens que se pendurava nas traseiras do mesmo e que assim não só lhe controlava a velocidade nos locais mais inclinados como os imobilizava por completo, nos locais indicados para o descarregamento. Para cima é que era o diabo. Eram necessários dois homens parra empurrar cada vagão até ao local onde havia de ser novamente carregado de entulho. Felizmente na subida os vagões iam vazios.

Ora como havia muitas terras de mato e de inhames para aqueles lados, os vagões mesmo cheios com o entulho, lá iam carregando, de vez em quando, um saco de inhames, um molho de lenha ou de incensos, pertença de um familiar ou de um amigo dos que trabalhavam nos vagões. A moda pegou, foi alastrando e os vagões, durante o seu curto reinado, passaram a ser um dos principais meios de transporte dos produtos agrícolas das terras do Vale Fundo, Cabaceira, Cancelinha, Delgado e Santo António. Mas não se ficaram por aqui os interessantes vagões. Sobretudo aos domingos passaram a ser os responsáveis por interessantíssimos passeios que por vezes atingiam velocidades estonteantes. Não faltava quem os empurrasse na subida e muitos eram os que os enchiam na descida, substituindo o entulho. Tornou-se uma moda passear, aos domingos nos vagões. Não gastavam combustível, não se deperdiam e eram bastante seguros.

O entusiasmo foi tanto que até o Eleutério, um pobretanas inocente e meio atoleimado, se decidiu por um passeio de vagão. Entontecido pela rapidez do veículo, não se fartava de rir, atirando ao ar, a determinada altura:

- Neste andar, qualquer dia chegamos à Amerca. 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O CANTO DO AREAL

Sexta-feira, 23.10.15

O lugar do Canto Areal, na Fajã Grande, era uma extensa faixa de terreno situada à beira mar, quase todo ela baixio e rolo, que se prolongava desde as Furnas e Redondo até aos contrafortes do Pico, confrontando a leste com as Furnas e o Areal. Assim os seus limites geográficos eram, a norte, as Furnas e o Redondo, a este o Areal e as Furnas, a sul o Pico e a Rocha da Eira da Cuada e a oeste o mar.

Contrariamente ao seu vizinho Areal, uma espécie de pai ou matriz do Canto do Areal, este era um lugar exclusivamente de pequenos terrenos agrícolas, designados por currais, com terreno muito arenoso e consequentemente pouco produtivos. Alem disso, embora os currais do Canto do Areal fossem separados uns dos outros e protegidos por altas paredes, eram frequentemente fustigado por ventos e salmouras que lhes caíam em catadupa e que prejudicavam fortemente os vários produtos agrícolas ali cultivados. Essa a razão pela qual nestes minúsculos terrenos, geralmente, se cultivasse apenas couves, abóboras, bogangos, batatas-doces de latada e pouco mais.

Mas era nestes currais assim como nos terrenos do Areal, das Furna e do Porto que, devido à sua proximidade do mar, se faziam as primeiras sementeiras e as plantações do cedo. Durante o Inverno, porém, todos estes terrenos permaneciam quase incultos, pelo que em janeiro se assemelhavam a um deserto árido e inóspito. Era em fevereiro que se começavam a trabalhar estes currais que, no entanto, não mereciam um tratamento tão esmerado como os seus vizinhos cerrados do Areal. Estes, antes de semear o milho, os feijões e outros produtos agrícolas eram muito bem estrumados com carros e carros de bois, com as sebes cheias de esterco ou de sargaço, a percorrerem as Courelas, guinchar, carregadíssimos. Entravam nos campos que ficavam junto do caminho ou abriam-se portais numas e noutras terras que deviam caminho para que os carros chegassem aos campos mais distantes. Quer o estrume, quer o sargaço eram despejados em pequenos montes ao longo de todo o terreno. Depois com garfos de tirar esterco, os montes iam-se desfazendo à medida que o estrume ia sendo espalhado sobre o terreno de modo a cobri-lo por completo, Dias depois os campos eram abertos, isto é lavrados com arado de ferro e de seguida gradeados e tornados a lavrar com o arado de pau, de forma a estarem aptos para as sementeiras. Era o abrir da terra. Só depois eram lavrados, novamente com arado de pau, a fim de nos regos se lançarem as sementes, geralmente de milho. Passado algum tempo a enorme planície enchia-se de um verde esperançoso e prometedor de colheitas de excelente qualidade. Mas logo vinham os malditos ventos a desfazerem, a partirem e a devastarem tudo o que ali se produzia e, se algo ficasse em pé, lá vinha do mar a famigerada salmoura a destruir e a aniquilar o pouco que havia resistido aos invernosos vendavais. Tão grande preocupação, no entanto, não se tinha com os currais do Canto do Areal. A exiguidade do espaço e a fraqueza do terreno não justificavam grandes cuidados. Eram como que cultivados, como se costumava dizer, ao deus dará. Além disso, a maior parte do espaço do mais ocidental dos lugares fajãgransdenses, que era atravessado por uma extensa vereda litoral, que se iniciava no Porto, junto ao Matadouro, era ocupado por uma zona inculta e de ninguém. A norte, do lado do Pico, uma enorme rolo de pedras soltas que de nada servia a não ser para apanhar moiras para ir pescar às vejas. Depois uma enorme mancha negra de baixio, junto ao mar, recortada com pequenas enseadas e poças, com destaque para as duas maiores: a Poça das Salemas de fora e a de dentro, local que ficou célebre por ali ter naufragado, no início do século XX, a barca francesa Bidart, pelo que aquele lugar também se chamava o lugar da Bidarta. A zona do baixio era muito rica em lapas, peixe e achados, pelo que muitos homens e mulheres para ali se dirigiam, os primeiros para se atirarem ao mar na procura de uma boia, duma garrafa, duma bola de vidro ou de um fardo de borracha ou para pescar, as mulheres para a apanha de lapas, conduto indispensável, sob a forma de tortas ou de Molho Afonso, em muitas casas fajãgrandenses na década de cinquenta.

A origem deste topónimo é de fácil identificação. Este lugar tinha a sudoeste, na sua fronteira com o mar, uma espécie de rolo, onde era fácil verificar ainda alguns vestígios de um enorme areal, possivelmente ali existente. em tempos idos. Além disso os próprios currais de todo este lugar eram, na verdade, muito arenosos, talvez constituídos por areias transportadas pelo vento. Daí que toda esta zona, até às primeiras casas das Courelas fosse de verdade e com razão alcunhado de o Areal, o qual, apesar das vicissitudes climáticas, tinha um papel de relevo e de grande importância na produção agrícola e na economia da freguesia. A designação de Canto advém do facto de, sendo o vizinho Areal um lugar quase quadrado, este pequeno, pobre e marítimo lugar se situar no canto sudoeste desse lugar, ou seja daquele que justamente recebera o nome de Areal.

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A FAJÃ GRANDE HOJE

Quinta-feira, 22.10.15

Visitar a ilha das Flores, hoje, é entrar num paraíso de encanto, num remanso de sonho, num recanto de serenidade, num enigma de silêncio, um éden de tranquilidade. O lugar ideal para centro da estadia e de assentar arraiais é o lugar da Cuada, outrora um pequeno povoamento pertencente à Fajã Grande, hoje recuperado e transformado num aldeamento turístico. As cerca de trinta pessoas que que viviam na Cuada, na década de cinquenta, abandonaram-na por completo na década seguinte. Alguns dos seus habitantes, sobretudo os mais idosos, deslocaram-se para a Fajã, onde passaram a residir, enquanto a maioria emigrou para a América à procura de uma vida melhor. Totalmente abandonada, os campos encheram-se de fetos e cana roca, as paredes caíram, as casas arruinaram-se, os caminhos encheram-se de ervaçais e silvadas. As madeiras das portas e das janelas apodreceram. As telhas começaram a cair e os telhados a ruir. A Cuada transformou-se numa espécie de local fantasma, deserto e sem vida.

Com a efetivação de um projeto de aldeamento turístico, tudo mudou. E a Cuada hoje, totalmente recuperada, é procurada por quantos pretendem gozar uns dias de repouso e de contacto com a natureza pura, na luta por uma qualidade de vida. Ali se alojam à procura do que os seus habitantes abandonaram, isto é, de isolamento, tranquilidade, simplicidade e das raízes que nos ligam a todos à terra e à natureza. A Cuada, na verdade transformou-se num idílico lugar de descanso e repouso, onde não circula qualquer veículo motorizado, onde se caminha por passeios de calhaus irregulares, onde as paredes das casas mantêm-se de pedra, fieis ao traço da arquitetura rural da ilha, onde há vacas nos campos, coelhos nos pátios, onde se acorda como suave canto dos pássaros e se adormece ao som mavioso do canto das cagarras e do sibilar do vento e murmurar do oceano.

As casas de acolhimento, eximiamente decoradas no seu interior, estão dispersas pelas ruelas, separadas por prados e muros de pedra, tendo quase todas jardins próprios, povoados por coelhos bravios e pássaros.

Mas ao visitar as Flores, hoje, não se pode nem se deve apenas ficar na Cuada. Há muito mais a ver, a apreciar e a saborear. Por todo o lado se encontra tranquilidade, silêncio, contacto com a natureza pura e original, paisagens deslumbrantes, vistas maravilhosas e percursos bem marcados para caminhar. Há várias cascatas e lagoas para descobrir, uma grande abundância de floresta Laurissilva, arbustos retorcidos e zonas de musgo espesso, as célebres burrecas. Ali perto, por uma estreita vereda um passeio a pé até à Eira da Cuada, debruçada sobre o mar, lugar mítico onde outrora os habitantes da Fajã Grande permaneciam durante a missa celebrada na igreja da Fajãzinha, nos dias em que o forte caudal da Ribeira Grande os impedia de atravessá-la. Era aí também que se esperavam os romeiros em dia de vapor. Caminhando-se em sentido oposto, na direção da Rocha facilmente se demanda Poço da Alagoinha, caminhando por um trilho de pedras irregulares, entre árvores altas, ao som dos passarinhos e do murmúrio de água a correr. Na Rocha dezenas de pequenas cascatas, pequenos afluentes e subafluentes da Ribeira o Ferreiro e, mais além, da Ribeira Grande que desabam em catadupa pela Rocha vindo desaguar e encher o maravilhoso e enigmático lago que espelha toda a beleza envolvente e todo o verde que a rodeia. Se se caminhar na direção da Fajã Grande, pelo antigo caminho por onde outrora transitavam os habitantes da Cuada quando vinham à missa, à escola, às festas, às compras, poderão contemplar-se as belezas da mais ocidental freguesia açoriana. Percorrer o litoral, visitar as baías e enseadas, refrescar-se nas águas do Cais, do Porto Velho ou na piscina natural em que se transformou o antigo caneiro das Furnas, saborear os manjares dos seus restaurantes, visitar a Ponta e ermida da Senhora do Carmo, aproximar-se do Poço do Bacalhau observando os antigos moinhos plantados nas margens da Ribeira das Casas, subir o Outeiro, o Pico da Vigia da Baleia ou até a Rocha e saborear e a fresca e doce água da Fonte Vermelha, uma das melhores e mais fresca da ilha. Para quem dispuser de automóvel poderá apreciar as localidades e belezas da ilha, com destaque para a Rocha dos Bordões e as lagoas. Na ilha das Flores existem sete crateras vulcânicas que se transformaram em lagoas, todas bem sinalizadas ao longo da estrada: a Funda, a Comprida, a Seca, a da Água Branca, a Funda das Lajes, a Rasa e a da Lomba. Também merecem uma visita o Farol da Ponta do Albernaz com o Ilhéu de Maria Vaz e a magnífica baía dos Fanais a sul e o Corvo a norte, assim como a Gruta dos Enxaréis: uma grande cavidade à beira-mar, outrora esconderijo de piratas, mas cuja visita só poderá ser feita de barco ou numa escapadela ao Corvo.

Existem também excelentes trilhos devidamente assinalados e de onde se disfrutam belíssimas paisagens, com destaque para dois. O trilho da Fajã de Lopo Vaz. Trata-se de um interessante percurso sempre a descer até à fajã, situada bem no fundo de uma vertente verde escarpada bela envolventes e o trilho que parte da Ponta da Fajã em direção a Ponta Delgada, ao longo de uma falésia junto ao mar, com vistas soberbas sobre a Fajã Grande e o Ilhéu de Monchique, o último pontinho de terra da Europa.

Acrescente-se que a própria Fajã Grande e a ilha das Flores dispõem hoje de excelentes restaurantes, com destaque para o Pôr do Sol, o Pescador em Ponta Delgada, onde a especialidade é peixe fresco, pescado no próprio dia e na Fajã Grande o Maresia e o Zona Balnear. No Maresia, que tem uma esplanada rente ao mar e uma decoração alternativa com sofás usados, dizem que se come muito bem.

Por tudo isto e pelo que têm hoje muito diferente de outrora, vale a pena visitar a ilha das Flores e sediar-se na Fajã Grande, nomeadamente no aldeamento turístico da Cuada.

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MORTES EM CATADUPA

Quarta-feira, 21.10.15

A segunda metade do século XIX, na Fajã Grande, foi desastrosa para a sua população, no que a falecimentos diz respeito. Verificaram-se dezenas e dezenas de mortes, não apenas de pessoas de meia-idade mas também de jovens e, sobretudo, de crianças. Estas foram tremendamente penalizadas, sendo que a mortalidade infantil, nalguns anos se cifrava em quase cinquenta por cento. Citam-se, a seguir, dois exemplos retirados dos livros de registo de óbitos da mais ocidental paróquia açoriana – São José da Fajã Grande.

O primeiro diz respeito à família de António Rodrigues Coelho e Ana Isabel do Coraição de Jesus, moradores na rua da Fontinha, naturais da Fajã Grande, onde casaram, em 5 de junho de 1862. No ano seguinte, a 17 de abril faleceu o primeiro rebento deste casal, uma menina de nome Maria, com apenas um mês de idade. Seguiram-se outras mortes, referentes a duas meninas, ambas com o nome da primeira irmã: uma em 3 de fevereiro de 1865 com apenas 5 dias de vida e outra em 24 de setembro de 1868. Como se isto não bastasse, em 27 de setembro de 1875 faleceu o filho José de 4 meses. Por sua vez o pai destas crianças, António Rodrigues Coelho faleceu em 18 de março de 1891 com 56 anos. Era filho de José Rodrigues Coelho e Maria de Freitas. A esposa, filha de Manuel Coelho Ramos e Rita de Jesus, faleceu três anos depois com 59 anos de idade. Uma filha deste casal que passou a habitar a mesma casa e que se chamava Maria Rodrigues Vieira casou, em 22 de Setembro de 1895, com um grumete da armada, chamado Eduardo Vieira, viúvo, natural do Funchal, ilha da Madeira. Num curto espaço de tempo faleceram-lhe nove filhos. Em 6 de setembro de 1895 faleceu o filho José com 68 dias. Em 10 de outubro de 1898, faleceu o filho Eduardo de 58 dias. Em 15 de outubro de 1899 faleceu o filho João com um mês. Em 4 de Julho de 1906 faleceu o filho António com 11 meses. Em 9 de julho de 1907 faleceu o filho António de 9 meses e em 10 de setembro de 1908 faleceu o filho Eduardo de 6 meses. Finalmente, em 1 de Fevereiro de 1909 o casal teve dois gémeos nados mortos. Maria Rodrigues Vieira, naturalmente muito amargurada da vida, faleceu no ano seguinte, em 9 de Agosto de 1910 com apenas 42 anos. Quinze dias antes falecera-lhe o filho Leopoldo de 11 dias.

Outro exemplo entre dezenas e dezenas e dezenas de famílias que em tempos recuados viveram na Fajã Grande foi a de José Inácio de Freitas, lavrador e Maria Florinda da Glória que casaram na igreja paroquial da Fajãzinha, em 16 de dezembro de 1841. Um filho, ainda criança, de nome Constantino faleceu em 22 de agosto de 1868. Em 4 de setembro de 1880 faleceu a filha Mara Florinda de 26 anos, solteira e algum tempo depois faleceu a filha Maria Constantina de 29 anos, também solteira. Maria Florinda faleceu em 20 de janeiro de 1889 com, 62 anos sendo mãe de seis filhos, um dos quais, solteiro, faleceu pouco tempo depois. O marido faleceu em 21 de abril de 1891. Em 1 de janeiro 1898 ainda faleceu uma familiar desta família, de nome Maria de Jesus, de 80 anos, solteira. Mas a um filho deste casal, de nome Carlos Inácio de Freitas que casou em 7 de Novembro 1888 com Maria Fagundes da Silveira, filha de Francisco Lourenço da Silveira e de Maria Luísa da Silveira e que moravam na mesma casa nas Courelas também faleceram vários filhos: em 1893 a filha Maria de 2 meses, em 1896-um recém-nascido, sem nome e em 1900 o filho José de 2 meses. O pai destas crianças Carlos Inácio de Freitas faleceu em 3 de Abril de 1902 com 49 anos.

No que aos meus avós paternos diz respeito, até porque ouvia referir que haviam falecido em criança vários irmãos de meu pai, não foram tantos os rebentos falecidos. Eles eram António Lourenço Fagundes e Maria de Jesus Fagundes e casaram em novembro de 1882. Em 27 de março de 1883 faleceu primeiro filho dos meus avós paternos, com quatro minutos de vida e que nem teve nome. Em 23 de abril do ano seguinte faleceu, recém-nascida, uma menina também sem nome. O terceiro filho, também sem nome e com apenas um minuto de vida faleceu em março de 1886. Em 1 de junho de 1891 faleceu a filha Maria de nove meses e em 5 de maio do ano seguinte outra Maria. Finalmente em 1904 faleceu outra menina com o mesmo nome e com apenas dez dias de vida.

Mortes em catadupa! Tragédias e tragédias hoje impensáveis e para as quais contribuíam, decerto, entre outras causas, uma alimentação muito pobre e deficiente, más condições higiénicas, não assistência médica nos partos e durante a gravidez, assistência médica às famílias inexistente e uma consanguinidade muito próxima e frequente.

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O CÚMULO DO ISOLAMENTO

Terça-feira, 20.10.15

Ao segundo dia na ilha das Flores, abrimos as cortinas, espreitámos para cima e vimos a caminhada pelo maciço rochoso da Sé por um canudo.

Não somos malta de desistir facilmente e lá entrámos no jipe da West Canyon à espera de um milagre. Raul Brandão, mais uma vez: "Esta paisagem molhada e verde é como um sonho: entreabre-se, fecha-se, sorri e adormece..." Não tivemos sorte, porém: pelo menos a esta altitude, as Flores não se abriram para nós, mantiveram-se naquele estado em que "água, ar e bruma intimamente se casam". Ao volante, Marco Melo explica--nos que o trilho que estava previsto para esta manhã (convém que seja guiado, uma vez que não está marcado na sua totalidade) começaria na Fazenda de Santa Cruz e terminaria no Pico da Sé. "As vistas lá de cima são de cortar a respiração", afiança. Não duvidamos, mas praticamente não vemos um palmo à frente do nariz. Chegamos de jipe à zona dos Piquinhos e, além dos musgos na beira da estrada de terra batida, dos coelhos (tantos!) que saltam à nossa frente e das omnipresentes hortênsias, só esta bruma que nos dá cabo dos planos.

Parece-nos que nas Flores todos os caminhos vão dar ao nevoeiro - e dizemos isto em voz alta. Inconformado, Marco dispõe-se a provar-nos o contrário. Quem não tem cão, caça com gato: em poucos minutos entramos na Estrada Municipal do Galo, que dá acesso à Fajã de Lopo Vaz, perto das Lajes. Voltámos para a costa e o sol brilha agora com alguma intensidade. Olhamos para baixo e percebemos onde vamos ter de chegar, a pé. Às 11h15 começamos a cumprir o trilho da fajã.

Vamos descendo, com o vento a assobiar na vegetação (canas, conteiras) e o mar a rugir lá em baixo. É bonita, a paisagem, mas há-de melhorar não tarda. Vamos escutando os melros pretos e os tentilhões, observando as faias da terra (espécie endémica) empoleiradas na encosta rochosa e sentindo o cheiro a urze, que aqui se chama queiró. Em 15 minutos chegamos a uns degraus de pedra e deste ponto a vista para o mar pode ser vertiginosa para olhos mais sensíveis. E é daqui que vemos, lá em baixo, duas casas brancas - não, três, não, quatro, são quatro pontinhos brancos que sobressaem do negro basáltico das pedras que são o chão da fajã.

Continuamos a andar, ainda não passou meia hora, mas assusta olhar para cima e perceber que há este caminho pela rocha para subir de volta. Marco sossega-nos, habituado que está a palmilhar todos os caminhos das Flores, e diz que "é muito pior descer". A ver vamos. Por enquanto vemos a árvore da groselha e o araçazeiro - dá umas bagas muito utilizadas na ilha para fazer doce de araçá, que haveremos de provar e aprovar um destes dias. O vento amainou e o sol está agora muito mais aberto.

Passaram 45 minutos desde que começámos a descer e já temos a fajã debaixo dos pés. A primeira casa, que lá de cima era um pontinho minúsculo, ergue-se, branca, à nossa frente. Deixa ver alguns sinais de degradação, mas ainda assim percebe-se que cá esteve gente há pouco tempo, pelos vestígios de uma fogueira recente. A propósito, Marco explica que o acesso às casinhas plantadas na Fajã de Lopo Vaz é mesmo o que acabámos de cumprir, não há outro caminho - a não ser para quem chega pelo mar.

É para o mar, precisamente, que vamos agora. As ondas rebentam junto à areia e pedras negras, mas o azul, iluminado por um sol agora forte, enfeitiça. Não temos roupa para o mergulho, afundamos apenas as mãos na água para lhe confirmar a temperatura amigável. Olhamos em redor e vemos apenas dois turistas que também aqui chegaram a pé. De resto, somos nós, o céu e o mar azul, a areia negra e grossa e uma ou outra gaivota para garantir banda sonora. Rede de telemóvel não há e damos connosco a pensar, mais uma vez em voz alta, que isto deve ser o cúmulo do isolamento. Marco corrige-nos e garante que não.

A subida custa mais ou menos o mesmo que a descida - com a diferença que agora praticamente não falamos. Está calor, sentimos sede a cada passo e de repente estamos a beber água que escorre da rocha através de uma folha da qual improvisamos um copo. No último lanço de escadas, já conseguimos avistar o jipe, o que dá motivação extra para os metros finais. Estamos cansados, transpirados, esfomeados - há muito que uma simples sande de fiambre não nos sabia tão bem.

Com estas e com outras, já se passou a manhã. Porque somos persistentes, ainda jogamos, mais uma vez, o jogo do gato e do rato com as lagoas. Quase já sabemos de cor os caminhos que nos conduzem a elas. "Por vezes um fio de sol doira a névoa a medo", dizia Raul Brandão, mas ainda não foi desta - as nuvens continuam a montar guarda às lagoas, como se de um tesouro valioso se tratasse. Já não temos muito tempo, mas entretanto já aprendemos que é preciso saber esperar. Esperemos, então.

Antes, porém, temos direito a passagem panorâmica pela costa nordeste das Flores: ilhéus da Alagoa, de Álvaro Rodrigues (chegou a ter plantações de milho e exibe uma nascente natural) e Furado; Fajã da Ponta Ruiva, que ontem víramos de cima; as grutas da Catedral (imensa, com um eco extraordinário, daí o nome) e do Galo - a rocha é cortada, o sol incide na água e deixa à vista um pedaço de mar turquesa forte, tão cristalino quanto difícil de definir; a réplica marítima da Rocha dos Bordões, ex-líbris das Flores que (ainda) não lográmos ver em terra - um acidente geológico que se caracteriza pela solidificação da rocha basáltica em altas colunas prismáticas verticais.

Carlos conduz o barco para os recantos que se impõem e vai dando algumas dicas para olhos menos atentos. As hortênsias na escarpa, por exemplo, o pormenor da estratificação das rochas, o garajau comum que parece posar para as fotografias. (A propósito, ontem à noite ouvimos pela primeira vez o canto perturbador dos cagarros.)

Por enquanto voltamos às Flores, onde temos a base da nossa viagem ao grupo ocidental do arquipélago. O mar está agora mais alteroso e Carlos informa que o regresso será certamente mais molhado. Vamos de cabeça baixa, para evitar os salpicos de água salgada, até que ouvimos as palavras mágicas: "Golfinhos, golfinhos!" Lá estão eles, à esquerda do barco. Primeiro ao longe, primeiro poucos - mas depois quase coladinhos a nós e muitos, elegantes nos seus saltos acrobáticos. Tinham-nos dito que havia 90 por cento de hipóteses de os vermos e cá estão eles, para gáudio de todos os passageiros. Mais difícil, como se comprovou, seria avistarmos baleias, mas de vez em quando também aparecem.

O que aparece agora, ao fundo, é mesmo a ilha das Flores - e o recorte dos seus pontos mais altos apresenta-se muito mais nítido do que nos dias anteriores. Será hoje, finalmente, que vamos pôr a vista em cima das lagoas?

Na da Lomba, pelo menos. Apesar das nuvens, está completamente visível. Tem uma forma mais ou menos circular e está enquadrada por criptomérias e, claro, por belíssimas sebes de hortênsias. De momento não está cá mais ninguém. Ouvem-se os pássaros e o vento e agora o sol espreita por momentos, bate-lhe e torna as suas águas mais claras.

Embalados pela sorte, vamos em busca das que nos faltam no currículo. Correm as nuvens e corremos nós, a cruzar os dedos. Nada na Comprida, nada na Negra. Mudamos de lugar, sempre atrás dos prejuízos desta neblina que nos troca as voltas. Estamos há minutos à espera de poder ver uma nesga da lagoa Funda. Primeiro perdemo-la, por dez segundos. Pacientes, esperamos, que aqui aprendemos a esperar. E entretanto ela surge, uns metros apenas, que se escondem logo às mãos destas nuvens com vontade própria.

 

Estamos dentro de um jogo de paciência, que agora nos oferece um centímetro da Negra e um centímetro da Comprida. Andamos para trás e para a frente, ao sabor dos blocos de nevoeiro. De vez em quando, um ameaço de sol doura os campos molhados e renasce a nossa esperança. Marco, porém, conhece melhor do que ninguém estas "terras metidas nos vulcões" e chama-nos à realidade: por mais que esperemos hoje, não as veremos na plenitude que merecem. Resignemo-nos, então, a voltar para o continente com esta lacuna por preencher.

A não ser que ainda não sejam 8h00 do último dia e que o telemóvel nos arranque do mundo dos sonhos - para nos levar para o mundo dos sonhos. "É o Marco. Está um dia magnífico. Se quiserem fazer um passeio antes voo, é pegar ou largar."

Pegámos, como é óbvio. Fomos subindo em direção às lagoas debaixo de uma luz como nunca tínhamos visto a esta altitude. Já não era toldada, como nos outros dias, mas muito mais límpida - talvez a "poeira dourada" de que fala Raul Brandão. Ignoramos a entrada para a lagoa da Lomba, que ontem já tínhamos visto, e dirigimo-nos sem outras paragens para a Comprida. Uma súbita neblina ainda nos faz temer o pior, mas de repente fechamos os olhos e quando os abrimos lá está ela, completamente despida para nós.

O silêncio é enorme, deixamo-nos ficar num exercício de contemplação. Estamos a viver um momento quase solene, que interrompemos para avançar poucos metros a fim de conhecermos a vizinha lagoa Negra. É uma circunferência quase perfeita, rodeada de espécies endémicas por todos os lados: cedro do mato, louro, queiró. Tem mais de 100 metros de profundidade que, no entanto, não assustam devido à magia do cenário. Mais mágico do que isto só mesmo o que vemos em seguida, no varandim de um segundo miradouro. As duas lagoas, a Comprida e a Negra, praticamente lado a lado - ou, se preferirmos, de costas voltadas, numa sintonia descasada quase dramática. O sol incide sobre a Negra e deixa-nos ver-lhe melhor a tonalidade das águas. O momento é solene, já tínhamos dito - este canto da ilha é belíssimo, acrescentamos agora, sem receio de exageros.

Entramos no jipe com a alma cheia. E quando, em simultâneo, alcançamos com o olhar as lagoas Funda e Rasa, damos muito mais valor ao que está a acontecer. Era justificada a angústia dos últimos dias: não podíamos deixar as Flores sem levarmos connosco estas imagens de assombro e rendição. A lagoa Funda é de uma beleza extrema, quase trágica de tão verde. Por um rasgão nas nuvens, vê-se o mar lá ao fundo. Mas o impacto é muito maior, realmente, quando estão ambas no mesmo plano de visão.

Estamos absolutamente esmagados. Isto é imenso e misterioso, pena não termos mais tempo para fruir do instante. A contragosto, voltamos as costas a este reino encantado e vamos descer. De bónus, ainda levamos a visão longínqua da lagoa Branca. E finalmente o céu abre-se para nos mostrar a imponência da Rocha dos Bordões. Talvez hoje pudéssemos subir ao Pico da Sé e fazer a caminhada até ao Poço da Alagoinha.

A ilha, percebemos agora, é uma mulher prudente: não se mostra à primeira, gosta que lhe façam a corte sem pressas. Nós tivemos alguma pressa, reconhecemos. Mas havemos de voltar, Flores.

 

Sandra Silva, Fugas Viagens, Jornal Público de 3/9/11

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FUGAS PARA AS FLORES

Segunda-feira, 19.10.15

Foi, antes de mais, um jogo do gato e do rato com as nuvens. Tínhamos muita vontade de ver as lagoas que são dos principais ex-líbris das duas ilhas do grupo ocidental mas precisámos de paciência e persistência. Pelo meio, percebemos que há mais vida para além das lagoas e encontrámos lugares belíssimos, onde a vida corre devagar - e que pedem, por isso, estadias a condizer. Sem pressas, com tempo para aprender a ver.

E mais um cliché, que o povo nunca se engana: quem espera sempre alcança. Nós esperámos, por vezes desesperámos, mas ao quarto dia as Flores colaboraram e mostraram-se aos nossos olhos de principiantes. Já tínhamos a vista cheia de pastos verdes, de hortênsias azuis e rosadas, de fajãs dramáticas a cair para o mar, de montes a recortar o céu carregado - mas faltava-nos a (quase) fantasmagoria das lagoas para compor o cenário perfeito. Como num passe de magia, a escassas horas de levantarmos voo, a névoa levantou-se também e deixou-nos entrar no reino encantado da Funda e da Rasa, da Negra e da Comprida, da Lomba e da Branca.

Agora temos todo o tempo do mundo para vos contar como foi.

Aqui acaba a Europa

Aterramos nas Flores debaixo de chuva, mas é de calor quase tropical esta manhã de Agosto em Santa Cruz. Quem se estreia num lugar tem o péssimo hábito de querer abarcar tudo ao primeiro olhar, mas percebemos logo que aqui as regras são outras. É preciso saber esperar e é isso que vamos aprender nos próximos dias.

Por enquanto vamo-nos familiarizando com Santa Cruz das Flores, a vila primeiro, o concelho depois (3789 habitantes, contaram os Censos 2011). Na Avenida dos Baleeiros, o Buena Vista Caffé, com vista de mar privilegiada, está com pouca freguesia. Contamos apenas duas mesas ocupadas - numa delas, duas mulheres francesas, mãe e filha, talvez, estão a ler e dir-se-iam indiferentes ao contexto. Daqui a nada, porém, é vê-las descer as escadinhas que levam às piscinas naturais de Santa Cruz e entrar na água tépida que se abriga entre as rochas. Devidamente equipadas com óculos de mergulho, vão passar vários minutos a nadar com os peixes - e a fazer inveja a quem as vê de cima. As piscinas, não temos dúvidas, serão um dos principais cartões- de-visita da vila onde vivem 1724 florentinos.

Que, no entanto, parecem estar todos sabe-se lá onde. Percorrendo as ruas de Santa Cruz em redor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição (fechada aquando da nossa visita, para obras de recuperação do interior), não nos cruzamos com muitos locais. Há mais turistas - ainda assim poucos e a esta hora, perto das 13h00, concentrados na esplanada da Praça Marquês de Pombal. São sobretudo espanhóis - sabemo-lo porque falam alto e riem-se com vontade, praticamente indiferentes à chuva que recomeçou a cair. Com a igreja em obras e o Convento de São Boaventura, que alberga actualmente o Museu das Flores, fechado (pelo menos a esta hora), não temos muito mais para fazer além de ver a vila acontecer. De tão pacata, Santa Cruz é um daqueles lugares onde se pode andar no meio da rua ou até deixar o carro aberto enquanto se vai ao café. Já não será tanto assim, mas de repente lembramo-nos de Raul Brandão - e mais tarde consultamos As ilhas desconhecidas, que trouxemos na bagagem: "Vejo às janelas, por dentro das vidraças, fisionomias tristes de velhos que estão desde que se conhecem à espera de quem passa - e não passa ninguém."

Uma voltinha à vila há-de ficar completa com paragem no Centro de Interpretação Ambiental do Boqueirão, construído nos tanques onde se armazenava o óleo que era derretido na Fábrica da Baleia. Foi inaugurado em Novembro de 2009 e, convidando a um mergulho pelos mares dos Açores, pode ser uma boa ideia para ocupar os miúdos em dias que desaconselhem grandes jornadas ao ar livre. O espaço não é muito grande, mas tem informação detalhada sobre a fauna e flora do arquipélago, mais concretamente da ilha das Flores.

E é a ela que nos vamos fazer agora - mesmo que as nuvens que vemos lá em cima não augurem nada de bom. Arriscamos, ainda assim, e já subimos em direcção ao Pico da Casinha. Estamos a mais ou menos 400 metros de altitude, informa Marco Melo, da empresa de turismo de aventura West Canyon, que nos acompanha nesta viagem pela ilha, e começamos a sentir na pele (literalmente) o cliché que dá conta que nos Açores é possível ter as quatro estações num dia. Saímos do Verão de Santa Cruz e agora estamos praticamente no Inverno - e isto ainda é Santa Cruz.

Queremos acreditar que deste Pico da Casinha há realmente vistas fantásticas sobre o vale da Fazenda de Santa Cruz, mas esta névoa que nos persegue à medida que subimos deixa ver pouco para além do que temos imediatamente à frente dos olhos: muros forrados a hortênsias a delimitar os terrenos verdinhos, mais vacas do que pessoas e um silêncio quase fantasmagórico. Há outro miradouro ao virar da esquina - Arcos da Ribeira da Cruz, nas proximidades da qual se terão fixado os primeiros povoadores da ilha, no século XV - mas parar aqui serviria de pouco. "As nuvens nos Açores têm uma vida extraordinária", diz Raul Brandão no livro que nos acompanhará ao longo de toda esta jornada açoriana - e não podíamos estar mais de acordo.

Já percebemos que daqui não levamos nada, nem por sombras conseguiremos avistar as sete lagoas que são uma das imagens de marca das Flores. Descemos, portanto, e vamos fixar-nos mais perto do mar, onde as nuvens não parecem ter tanta vida. Antes, porém, paragem no miradouro do Portal: a Fajãzinha é uma manta de retalhos de campos verdes molhados de orvalho e tem a Aldeia da Cuada por cima; a cascata da Alagoinha, talvez o maior spot da ilha, hoje não dá mais a ver do que uns risquinhos esbranquiçados na rocha de vegetação compacta; lá ao fundo, a Fajã Grande e o ilhéu de Monchique, perdido no Atlântico.

É para lá que vamos agora, para a Fajã Grande, já nas Lajes das Flores, que exibe com orgulho o título de concelho mais ocidental da Europa. Foram-se as nuvens e voltamos a entrar no Verão. Junto ao mar, a Fajã Grande mais não é do que uma evocação da geografia. É nas Flores que acaba a Europa e começa a América e isto, só por si, vale muito. Quem não gosta de dizer aos amigos que já esteve no ponto mais ocidental da Europa? Que tecnicamente é, no entanto, o ilhéu de Monchique, um rochedo isolado no mar.

É também na Fajã Grande que tem morada o Poço do Bacalhau, uma cascata que desagua na lagoa com o mesmo nome e que no Verão funciona como complemento ao mar. Nós, porém, não trocamos as águas azul-turquesa por nada deste mundo e deixamo-nos ficar por aqui. Mesmo que apenas deitados em cima do muro a ouvir o barulho das ondas. Não se está nada mal, neste ponto mais ocidental.

 

Sandra Silva, Fugas Viagens, Jornal Público de 3/9/1

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EXCELÊNCIA MUSICAL

Domingo, 18.10.15

Vindo das Feteiras, S. Miguel foi um dos pioneiros da criação do Seminário Menor de Santo Cristo, em Ponta Delgada, constituindo a primeira “tranche” formada, naquele antigo colégio jesuíta, nos dois primeiros anos, fora de Angra, sob a orientação do Reitor, Dr José de Oliveira Lopes. Corria o longínquo ano de 1956. Assim só o encontrei, quatro anos mais tarde, no Seminário de Angra, quando ele iniciava o seu percurso nos “Médios”. Apesar da proibição regulamentar de “comunicar” entre as prefeituras, muitas oportunidades tive de conviver com ele apreciando, de forma muito particular, a sua abrangente e comunicativa alegria de viver, espelho do seu “carácter” de bondade e dos dons musicais que lhe enchiam a alma e extravasavam a cada momento. Naturalmente foi esta “garra musical”, já no Seminário armazenada, que se fortaleceu e solidificou, graças à formação que ali obteve sob orientação do maestro Edmundo Machado de Oliveira e que explodiu mais tarde, sobretudo durante os anos em que dirigiu musicalmente, o orfeão de que também foi co-fundador e a que foi dado o nome do seu antigo mestre. Foi, durante 18 anos, regente do Orfeão Edmundo Machado de Oliveira e nessa qualidade, para além de muitos concertos em Portugal, fez digressões pelos Estados Unidos, Canadá, França e Brasil, onde participou no concerto inaugural das cerimónias dos 500 anos do descobrimento e, também, na inauguração do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Anos mais tarde fixou-se em Toronto, no Canadá, onde reside actualmente, criando, em 2005 o orfeão Stella-Maris de que é o seu actual maestro.

Trouxe para o Encontro toda essa força, essa excelência e essa competência musicais, provocando-nos, musicalmente, em cada hora e em cada momento, “forçando-nos” a recordar, repetir e executar aquilo que de mais belo e melhor fizemos durante os nossos anos no Seminário: cantar. Cantámos, por sua iniciativa e orientação, no final do jantar no refeitório, no primeiro dia, nos prolongados ensaios, no sarau, na missa de homenagem aos falecidos, enfim, por aqui e por ali. Juntamente com outro excelente maestro permitiu-nos recordar inúmeras peças musicais, de obras de música clássica, gregoriana, religiosa e profana, cantadas outrora. Em todas as execuções musicais misturava ao seu espírito, jocoso, alegre, solidário, comunicativo e amigo, a excelência da sua sabedoria, a competência da sua execução e o dinamismo da sua batuta a que se juntava uma fogosidade, um arrebatamento e uma sublimidade inexauríveis, fazendo dele mais um dos “Senhores” do nosso imemorável Encontro.

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A CRUZ DA CALDEIRA

Sábado, 17.10.15

Uma das mais emotivas, aterradoras e arrepiantes estórias que se contavam antigamente, aos serões, em muitas casas da Fajã Grande, era a da Cruz da Caldeira, a qual, para além do seu conteúdo narrativo que implicava a prevenção contra determinados comportamentos e atitudes que poderiam aproximar os humanos do Diabo, explicava a razão de ser ou a existência duma enorme cruz branca que existe no alto da Rocha dos Bredos, precisamente no antigo caminho que ligava a Fajãzinha à Caldeira e ao .

Contava a estória que certa noite um grupo de pessoas estava a fazer serão numa casa da Caldeira. Os presentes conversavam, alguns homens jogavam às cartas, outros fumavam e descansavam, as mulheres cardavam e fiavam e as crianças umas já dormiam e outras, brincavam. A conversa começou a aquecer e, de repente, transformou-se em discussão e esta em tirapuxa. Um dos homens presentes, muito forte e anamudo, perante as afirmações de alguns dos outros de que não se podia nem devia assobiar à meia-noite, porque isso era chamar o Diabo, dizia que por si assobiava, onde e quando quisesse e lhe apetecesse, a qualquer hora do dia ou da noite e que não tinha medo nenhum de o fazer. Os outros que não e ele que sim. As mulheres assustadíssimas.

Foi então que um dos presentes lhe disse que ele não era capaz de, quando fosse meia-noite, ir à Ribeira e dar três assobiadelas, chamando o Cão-Feio. Os outros homens começaram a assanhá-lo enquanto as mulheres se benziam, persignavam e rezavam pequenas jaculatórias. O homem, porém, não se continha. Parecia que já tinha o Eiramá metido no corpo. E vai disto aceita a aposta: - Se lhe dessem três canadas de vinho ele ia sozinho à Ribeira, à meia-noite, dar as três assobiadelas.

Os outros aceitaram e, um pouco antes de bater a meia-noite no relógio da sala, o homem partiu. Assim, à meia-noite em ponto, estaria lá no alto, junto à Ribeira, pronto para dar os três assobios.

A noite estava escura como breu e o mar rugia como um touro. À meia-noite todos se calaram e, logo que o relógio deu a primeira pancada, ouviu-se o primeiro assobio, muito forte e prolongado. Todos se arrepiaram, as mulheres bichanavam pequenas orações, os cães começaram a uivar e o mar a rugir cada vez com maior intensidade. Passado um pouco, ouviu-se o segundo assobio, mas mais fraco e menos vibrante do que o primeiro. Todos se arrepiaram e até o silêncio que se seguiu parecia assustador. Os cães cada vez uivavam mais e o mar rugia com mais força. Metia medo! Esperaram atónitos e estupefactos. O terceiro assobio já não se ouviu. Aguardaram, temerosos, uns a olhar para os outros, sem dizerem nada, pressentindo que algo de estranho acontecera. Esperaram mais algum tempo e nada. Os homens puseram-se alerta. As mulheres com o coração apertado e as mãos cruzadas sobre o peito, implorando clemência e perdão. Esperaram, esperaram… Nem assobio nem meio assobio! Passou-se um quarto de hora, passou meia hora… O terceiro assobio sem se ouvir e o homem sem regressar. Não se fiou nem se cardou mais… Ninguém saiu para as suas casas, nem ninguém dormiu até de madrugada. Uns bem incentivavam os outros a sair na procura do homem, mas ninguém teve coragem de o fazer. Só de manhã, quando os primeiros raios de luz começaram a raiar, tímidos, por detrás dos montes, um grupo de homens partiu na direção da Ribeira, para o local onde, supostamente, o homem havia assobiado. Assim que desembocaram à Ribeira, começaram a ver sangue misturado com cabelos. Chegaram finalmente a um algar, escavacado lá bem no fundo da Ribeira. Estava mais aberto e mais escarrachado do que nunca. Ao redor mais sangue, mais cabelos e restos de roupa. Mas o homem nunca mais o viram, nem nunca ninguém soube dele, cuidando que ele teria sido arrastado e levado lá para o fundo do algar, cujas profundezas ninguém conhecia. Essa a razão por que lá no alto, no lugar onde encontraram o sangue os cabelos, foi erguida uma enorme cruz branca que ainda hoje lá existe, denominada de A Cruz da Caldeira.

 

 

 

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CHICA LARICA

Sexta-feira, 16.10.15

Chica larica

De perna alçada

Comeu uma galinha

Na semana passada

Se mais houvesse

Mais comia

Adeus senhor padre

Até outro dia

 

Cantilena Popular

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publicado por picodavigia2 às 15:25

BENTA E JERÓNIMA

Sexta-feira, 16.10.15

Desde criança que se haviam colado numa amizade recíproca, inebriante. Nas veredas da inocência foram as mães a juntá-las. Depois elas próprias a caminharem lado a lado para a catequese, para a escola, para o moinho, para a máquina e até para a festa da Senhora dos Remédios, na Fajazinha. Sempre juntas, sempre amigas, sempre cúmplices, galhofeiras, até a Jerónima se casar. A Benta invejou-a. E tanto cismou, tanto hesitou, tanto desesperou que acabou por ficar para tia. E como que fazendo jus ao nome, decidiu dedicar-se às coisas de Deus. Muito de igreja, muito de rezas, muito de missas. Casas paredes meias, seguiam vidas paralelas. Sem se falarem. Não se podiam ver. Metera-se uma ciumeira enorme, entre elas. Domava-as uma inveja arreliadora. Fora o namorico da Jerónima com o filho do José Dias que destruíra toda amizade de outrora e construíra o terrível muro que agora as separava. Dizia-se à socapa que a Benta também gostava do Dias. Alguém os vira acaçapados, muito encostados um ao outro, a abrigarem-se da chuva, junto a uma aba das paredes da ladeira do Batel. Toda a amizade se esmoronou como um castelo de cartas. Depois a Jerónima a mexericar, a inventar, a por aleives e a Benta a dar ouvidos a umas e a outras. Não se podiam ver. Se se encontravam faiscavam lume por todos os lados. Mal se encaravam bramiam um odio recíproco e ameaçador.

Tudo se acamou no dia em que a Jerónima, já com três pimpolhos ao colo, partiu para a América. A Benta respirou de alívio. Mas ou porque a distância amainara o ódio, ou porque as sobras de uma paixão frustrada lhe ativassem os sentimentos, passado um ano estava cheia de saudades, passados dois escreveu-lhe uma carta e, ao fim de vinte anos, quando a Jerónima regressou viúva e dolente decidiu ir visitá-la afim de lhe levar uma palavra de conforto, um gesto de ternura, talvez um abraço de reconciliação.

A América porém mudara a Jerónima. Para além de lhe casar os filhos, levara-lhe o marido, deixando-a sozinha entre mágoas e álcool. Chegou à Fajã domada pela bebida e tresmalhada. Uma sem vergonha desmiolada.

Mas a Benta, que cada vez se santificara mais e que nas suas rezas e meditações percebera que Deus ensinou a perdoar, decidiu ir visitá-la, na tentativa de enterrar para sempre o machado de guerra. Apanhou-a de surpresa. A Jerónima apareceu-lhe à porta muito bêbada e tal e qual Nosso Senhor a havia posto no mundo. Nua.

A Benta nem entrou. Fugiu a sete pés, benzendo-se, persignando-se e gritando bem alto aos sete ventos:

- Aquela mulher está doida! Não tem vergonha! Aparecer assim à porta… in coire…

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O CANDEEIRO DA MINHA TIA ADELINA

Quinta-feira, 15.10.15

Havia na casa da minha tia Adelina, moradora nas Courelas, um candeeiro que me deslumbrava sempre que lá ia e me era dada oportunidade de o observar. É verdade que a minha tia nunca o acendia e eu também nunca ia a casa dela de noite, por isso eu não sabia como seria a luz que dele emanava, a claridade que produzia, o brilho que ainda mais o deveria consagrar. Ela mantinha-o sempre apagado, colocado em cima da mesa da sala como se fosse uma relíquia ou mais um objeto de adorno do que um apetrecho de grande utilidade. Mesmo assim, rodeado de sombras e de mistérios, sem irradiar sequer uma frágil e ténue luz que se pudesse ver, eu adorava aquele candeeiro e das poucas vezes que ia às Courelas a casa da minha tia, ficava perplexo perante aquela preciosidade. Não sei se o que mais me fascinava era o fogão de vidro bojudo, todo pintado com desenhos multicolores como se fosse o vitral de uma catedral gótica, se o pé esguio, estampado de um azul a fazer lembrar o mar e encimada por uma enorme bolha redonda, também ela azul mas ramificada de outras cores e que seria o depósito do petróleo. Era talvez único, talvez o mais belo candeeiro da freguesia que mesmo apagado dele parecia desprender-se e difundir-se uma luz benfazeja, serena e que, apesar de muito ténue parecia atrair e contagiar quantos dele se aproximavam.

Mas havia um enorme mistério acerca da origem deste candeeiro que, estranhamente, estava sempre apagado. De dia e de noite. Na verdade, nunca a minha tia o acendia nem ninguém sabia o motivo por que não se servia dele para iluminar a sua sala nos longos serões de inverno, sobretudo quando a casa se enchia de visitas. Mais, se alguma criança brincasse na sala, junto à cómoda sobre a qual estava o candeeiro, rodeado de fotos antigas e pagelas de santos, logo a minha tia corria a protegê-lo e a implorar à ganapada que saísse dali ou que tivesse cuidado para não lhe partirem o seu candeeiro. Minha tia, na verdade, protegia-o como se fosse um tesouro. E no dia em que eu, já mais crescidote, lhe perguntei, onde arranjara aquele candeeiro e porque não o acendia e o poupava e protegia tanto, minha tia simplesmente respondeu: - Essas perguntas não se fazem, - e mudou de conversa.

Percebi, então que ali, na verdade, havia mistério. Que a minha tia escondia alguma coisa ou não queria que se soubesse a origem daquele belo e enigmático candeeiro, daquela magnífica preciosidade. Até a minha mãe me ralhou quando lhe disse que tinha perguntado à tia Adelina onde o tinha arranjado e disse-me que nunca mais fizesse tal pergunta, pois eu nada tinha a ver com origem dos nossos candeeiros, muito menos com os da tia Adelina ou de quem quer que fosse. Não era bonito eu meter-me na vida dos outros. Mas eu não me continha. Por vezes até sonhava que a tia Adelina me havia de deixar, em testamento, aquele magnífico candeeiro e então sim, eu, para além de o acender todos os dias, havia de descortinar a sua origem e o que ele tinha de misterioso e enigmático e que permaneceu oculto em mim durante muitos anos.

Mas não foi preciso. De tanto me intrigar e de tanto indagar anos mais tarde descobri o mistério. Afinal a origem daquele candeeiro era mesmo inédita e estranha, pois tinha sido retirado do acervo deixado no mar pelo naufrágio do Slavónia, o luxuoso e gigantesco paquete inglês, popularmente designado, na ilha das Flores por "Salavónia" que no dia 10 de Junho de 1909 naufragara, junto à Costa do Lajedo. A tragédia aconteceu, segundo alguns relatos da época, por voltada das três horas da madrugada, num baixio das Flores, a cerca de 25 metros de terra e provocou um enorme alvoroço em toda ilha, muito especialmente nas povoações e freguesias da costa oeste, sobretudo, por se tratar de um navio que transportava centenas de passageiros e um precioso recheio. Segundo rezam as crónicas da altura, alguns dos passageiros ao saberem que o paquete passava perto das Flores, fizeram chegar ao comandante, um pedido escrito para que este alterasse a rota de maneira a que se aproximasse da ilha e pudessem observar, em pormenor, a sua beleza. O comandante acedeu ao pedido e planeou rodear as Flores, pelo sul para depois prosseguir no seu curso original. Mas um forte nevoeiro que se abateu sobre a ilha e uma forte corrente marítima que ali se fazia sentir, terão desviado o paquete da rota prevista, levando-o a encalhar. Consta que todos os passageiros e toda tripulação se salvaram mas apenas uma pequena parte da bagagem foi recuperada, pouca a carga se reouve e o luxuoso recheio ficou soterrado no oceano.

Nos dias seguintes, muitas pessoas, não apenas da Costa e do Lajedo mas também de outras freguesias da ilha terão demandado aquelas redondezas, apesar de a zona estar sob vigilância da Guarda Fiscal, na tentativa de procurar, recolher do mar objetos valiosos e algumas sobras da carga do navio. Além disso, era voz corrente de que, para além de parte da carga, estaria perdida, por ali, uma mala do correio com valores declarados e dinheiro. Não consta que tenha sido encontrada, mas muitos populares recolheram louças, talheres, travessas, pratas, mobílias, camas, portas e candeeiros, entre os quais o da minha tia Adelina, cujo destino, hoje, desconheço.

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O JOÃO DA CATRINA

Quarta-feira, 14.10.15

Vivia no início da Assomada, numa pequena casa muito próxima da Praça, no enfiamento da Canada que dava para o Pico. Era um homem simples, pobre, bondoso, humilde e muito comunicador. Vivia com a mulher de nome Laura e que por ser casada com ele era conhecida por Laura do João da Catrina. Tinha ainda na sua companhia uma irmã da esposa, deficiente e solteira, conhecida como a Anina da Laura e que se vestia habitualmente de preto, era quase muda e, aparentemente, comunicava com as paredes, como que falando com elas, uma vez que praticamente não falava com as pessoas. O casal tinha apenas um filho, também ele solteiro e um excelente carpinteiro.

Embora mais velho do que meu pai, para além de vizinho, era um dos maiores amigos do meu progenitor. Conversavam bastante, ajudavam-se e aconselhavam-se mutuamente, uma vez que ambos se dedicavam a uma simples agricultura de subsistência, criando apenas uma ou duas vacas, cultivando pequenas belgas, trabalhando uma ou outra terra de mato, possuindo duas ou três relvas.

O que mais caracterizava este homem simples e generoso era ser um pensador nato e um excelente comunicador. Embora não lesse, nem talvez soubesse ler, ouvia muito rádio, coisa rara nesses tempos na Fajã Grande, sendo a Emissora Nacional a estação que ele mais ouvia. Estávamos em plena década de cinquenta e, por esta altura, iniciara-se a guerra em Angola. Algum tempo depois desta estalar por vontade e casmurrice do governo de Salazar, a Emissora Nacional começou a emitir um programa intitulado A verdade é só uma. Rádio Moscovo não fala verdade. Como estávamos em tempo em que a censura era rainha, tratava-se, naturalmente, de uma tentativa simulada de contrariar as notícias e comentários que a rádio moscovita difundia em língua portuguesa acerca do que se passava em Angola e que era ouvida em Portugal, apesar dos esforços do governo em silenciá-la ou de intimidação sobre quem a procurava escutar. Essas crónicas radiofónicas da Emissora Nacional eram invariavelmente encerradas com o slogan acima enunciado e assinadas pelo autor, com a seguinte frase que se tornou célebre e que o João da Catrina repetia com insistência: Crónica de Angola. Daqui fala Ferreira da Costa!

Quando se sentava a Praça o João da Catrina, também se apresentava como defensor e propagandista, à sua maneira, das ideias de Nikita Khrushchov, na altura presidente da União Soviética e líder político do mundo comunista. Dele também falava o Catrina com grande entusiasmo e convicção, embora nem sempre com algum rigor. Mas como o que mais dominava as suas frequentes parangonas eram as crónicas de Angola, as quais terminava sempre com a frase Fala Ferreira da Costa, de imediato granjeou este epíteto.

Acresce dizer-se que o seu nome de verdade era João Rodrigues, mas talvez porque a sua mãe ou alguma ancestral sua se chamasse Catarina, o povo na sua simplicidade e original capacidade de adaptações linguísticas batizou-o simplesmente por João da Catrina e ninguém o conhecia por outro nome, transformando-o, na verdade, numa das mais emblemáticas figuras da freguesia da Fajã Grande.

 

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TRÊS ACIDENTES NO MAR NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Terça-feira, 13.10.15

De acordo com os livros de registo de óbitos da freguesia de São José da Fajã Grande, vários acidentes tiveram lugar nos mares da mais ocidental freguesia açoriana, nos finais do século XIX e início do século XX, nos quais faleceram várias pessoas.

Assim, a nove de Abril de 1900, por volta das seis horas da manhã foi encontrada no mar da Ponta, para os lados do ilhéu do Cão, Maria Rosa de Jesus, moradora na Rua da Fonte, do Lugar da Ponta, filha de José Francisco Furtado e Maria Rosa. Era solteira, doméstica e tinha cinquenta e quatro anos. Não tinha filhos. Possivelmente terá sido vítima de um ato tresloucado ou então ter-se-á deslocado para o rolo e baixio da Ponta a fim de apanhar lapas, sendo vítima de uma escorregadela fatídica. No entanto esta segunda hipótese parece ser pouco provável, uma vez que em Abril, na ilha das Flores, às seis horas da manhã ainda é noite escura e, por conseguinte, uma altura pouco apropriada para alguém ir às lapas.

Outro estranho acidente, ocorreu alguns anos depois, no lugar do Canto do Areal, próximo do local onde anos mais tarde naufragaria a barca Bidart. No dia dezanove de Dezembro, pelas três horas da tarde, foi arrebatada pelo mar, uma criança de nome Manuel, de 10 anos, filho de Manuel Rodrigues Felizardo, conhecido na década de cinquenta por Ti Mateus Felizardo, e de Maria Fagundes Felizardo. O pároco da freguesia, padre Francisco Vieira Bizarra, no registo de óbito, descreve assim o trágico acidente: “…verificando os companheiros com quem ali brincava que o seu corpo boiava ao largo já cadáver não tendo sido arrojado à costa, até hoje, dia 27 do corrente mês e ano.” Daqui se conclui que para grande mágoa dos pais e familiares o corpo da criança nunca deu à costa, sendo sepultado no mar, pelo que foi feito apenas o registo do seu óbito.

Mas o grande acidente, cujos ecos ainda se ouviam nas ruas e casas da Fajã Grande, na década de cinquenta deu-se no mar dos Fanais, lugar idílico e de rara beleza e dotado de excelentes pesqueiros. A jovem Maria Amélia Pacheco, filha de Mariano Pacheco, natural de Ponta Garça S. Miguel, na década cinquenta conhecido por de mestre Mariano e de Ermelinda Amélia Alves namorava o jovem José Joaquim Pimentel de 21 anos, morador na Tronqueira, filho de António Joaquim e de Maria Florinda. Este casal de jovens na tarde do dia 14 de Março de 1906 decidiu dar um passeio de barco para o maravilhoso lugar dos Fanais, junto ao ilhéu de Maria Vaz, levando consigo João, uma criança de dez anos, irmão da Maria Amélia. Sem que nada o fizesse prever a alegria destes jovens foi desfeita por um terrível acidente, conhecido como O acidente dos Fanais. O acidente deu-se por volta das duas horas da tarde do dia 14 de Março de 1906, tendo a embarcação sido vítima de uma “submersão marítima acidental”. O cadáver da jovem, encontrado na tarde do mesmo dia, foi transportado em maca para a Fajã Grande, sendo feito o funeral no dia seguinte. Juntamente com ela faleceu o irmão João de seis anos, cujo corpo foi encontrado alguns dias depois Residiam na Via d´Água, No mesmo acidente faleceu o namorado de Maria Amélia, José Joaquim Pimentel de 21 anos, morador na Tronqueira, filho de António Joaquim e de Maria Florinda No entanto o seu corpo apenas foi encontrado quinze dias depois já em adiantado estado de putrefação, pelo que nem foi retirado do mar, onde ficou sepultado.

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A LENDA DE SÃO CRISTÓVÃO

Segunda-feira, 12.10.15

Pouco se sabe sobre a vida de Cristóvão, morto durante no reinado de Décio, imperador romano do século III, simplesmente por ser cristão e pregar o cristianismo. A igreja canonizou-o, considerando-o mártir e hoje é um dos santos mais populares do mundo, sendo reverenciado especialmente por atletas, marinheiros, barqueiros e viajantes e foi proclamado padroeiro dos automobilistas e de quantos andam em viagem.

O facto de se saber pouco sobre a sua vida originou a que sobre ele se criassem algumas lendas, sendo uma das mais interessantes a seguinte que, como muitas outras, era contada antigamente, aos serões, na Fajã Grande.

Conta essa lenda que havia, antigamente, um rei pagão que não tinha filhos. Mas a rainha era cristã e, às escondidas do monarca, rezava e pedia a Deus que lhe desse um filho. Só assim daria uma grande alegria ao seu rei e esposo. Deus ouviu as preces da bondosa rainha e esta concebeu e deu à luz um filho, para gáudio do rei e de toda a corte. A criança, de nome Cristóvão, cresceu e tornou-se num belo jovem, muito alto e corpulento, possuindo uma força extraordinárias. Foi essa força que fez com que Cristóvão resolvesse colocar-se exclusivamente ao serviço dos ricos, poderosos e mais fortes, acabando por servir um rei poderoso e mau que se cuidava que fosse o próprio Satanás, dado que se assustava quando via uma cruz por perto. Certo dia, Cristóvão encontrou um eremita que vivia pobremente numa gruta. A bondade e simplicidade do eremita emocionou de tal modo Cristóvão que este passou a viver junto dele durante algum tempo, ajudando-o, enquanto o eremita o educava na fé cristã, ensinando-lhe a doutrina e batizando-o. A partir de então Cristóvão começou a ajudar os mais fracos, os mais pobres e os mais desafortunados, sobretudo aceitando a tarefa de os ajudar a atravessarem um rio perigoso, onde não havia ponte e no qual muitas pessoas haviam morrido ao tentar fazer a travessia.

Certo dia, Cristóvão ajudo uma criança a atravessar o rio. Como sempre, fê-lo de boa vontade, mas ao iniciar a travessia pelo meio das águas notou que estranhamente, a criança ficava cada vez mais pesada, de tal maneira carregada que lhe parecia que transportava o mundo inteiro sobre os seus ombros. Quando chegou à outra margem do rio estava tão cansado que desabafou:

- Menino, afinal eras tão pesado que tive a sensação que trazia o mundo às costas.

- Pois bom homem, - disse a criança, - foi exatamente o que trouxeste ao ombro.

Ao dizer isto o menino desapareceu. Cristóvão já estava tão admirado com aquele menino e com o seu estranho peso, mas mais espantado ficou quando viu que tinha um barco ali ao seu lado para de futuro atravessar os pobres, em vez de os carregar às costas. Mais tarde compreendeu que aquela criança era o menino Jesus, o Criador e Redentor do mundo. Daí, concluí-a a lenda, lhe advém o nome Cristóvão, que significa aquele que carrega Cristo.

Mas a lenda ainda conta que na manhã seguinte, apareceu no mesmo local uma exuberante palmeira. Estes dois estranhos milagres converteram ao cristianismo muitos pagãos o que despertou a fúria do imperador que odiava o cristianismo e que o mandou prender, sujeitando-o, algum tempo depois, a um martírio cruel, pois mandou que lhe cortassem a cabeça, estando ainda vivo.

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UM MENU SIMPLES E ORIGINAL

Domingo, 11.10.15

Ontem como hioje, a Fajã Grande era fértil em produtos agrícolas de excelente qualidade. À magnífica produtividade dos tereenos aliava-se a enorme capacidade de trabalho dos seus habitantes e o esforço gigantesco que faziam, dia a dia, a fim de que os campos que cultivavam com esmero e dedicação produzissem o melhor, em qualida e quantidade. Assim, a nível da agricultuura, muito ali se produzia: milho, batatas brancas e doces, inhames, couves, cebolas, feijão, beterraba, etc. Paralelamente à agricultura, também a pecuária era exímia, destacando-se a criação de bovinos e suínos e a consequente produção de leite, queijo e de carne de porco. Acrescente-se ainda a produção de frutos, muitos deles sem exigir grande trabalho, uma vez que se desenvolviam naturalmente, entre os matagais de incensos e faias, como os araçás e as ameixas bravas, nos matos e nas encostasos áridas como as amoras e os tomates de capucho ou sobre os maroiros e paredes que ladeavam os cerrados, como os figos, as ivas e muitos outros. Plantada à beira-mar com excelentes baías e enseadas, o pescada também ocupava um lugar de relevo na alimentação quotidiana dos fajãgrandenses.

Apesar de todos estes recursos naturais e desta excelente produtividade a Fajã Grande não possuía nem possui uma significativa gastronomia tradicional. Talvez porque o tempo fosse escasso para o trabalho agrícola, talvez porque a mulher tivesse uma actividade doméstica intensa, ajudando, ainda, o homem no cultivo dos campos e na criaçao de gado, a culinária nunca foi objecto de grandes cuidados. Pratos pobres e simples, produtos cozidos ou fritos e pouco mais.

Mas com tão grande riqueza e variedade de produtos, hoje, dentro do espírito da cozinha gourmet, com muitos daqueles produtos poder-se-iam elaborar pratos fabulosos. A seguir apresentam-se três que poderiam ter ficado no historial pantracuélico fajangrandense. Mas não ficaram. São apenas uma mera fantasia, no entanto constituiriam o menu duma interessante refeição regional: sopa de agrião, croquetes de inhame e albacora e cheesecake de araçá.

Sopa de agrião: - Ingredientes: 200 gramass de batatas, cenoura, abóbora, cebola e alho, um mão cheia de agriões incluindo as folhas e os talos mais finos, um punhado de massinhas e uma colher de azeite. Preparação: Lavar bem todos os legumes, descascá-los e cortá-los em pedaços. Escolher os agriões, separar as folhas e aproveitar os talos mais tenros. Numa panela, colocar todos os legumes, menos as folhas de agrião e cobrir com água. Depois de tudo cozido, retirar algumas rodelas de cenoura e reservar. Triturar a sopa com a varinha mágica formando uma base. Juntar as massinhas, as folhas de agrião e a cenoura reservada, cortada aos cubinhos. Deixau ferver durante alguns minutos. Por fim colocar um fio de azeite e está pronta a servir.

Croquetes de inhame e albacora: Ingredientes: Um inhame pequeno cozido, sobras de albacora assasa,  meia cebola, meio dente de alho, um raminho de salsa, pão ralado. Preparação: Escolher e retirar as espinhas das sobras de peixe, esmagando-as com um garfo. Desfazer também o inhame com um garfo e juntar ao peixe, misturando e envolvendo muito bem. Picar muito miúda a cebola, o alho e a salsa e misturar tudo muito bem. Moldar pequenos croquetes, passando-os por pão ralado. Levar ao forno a alourarem. Servir com uma boa salada.

Cheesecake de araçá: Ingredientes: duas colheres de compota de araçá; cinquenta gramas de queijo fresco, quatro colheres de açúcar mascavado, quatro bolachas Maria e um pouco de leite.

Preparação: Cozer os araçás e depois de cozidos reduzi-las a puré. Juntar duas colheres de açúcar e levar ao lume brando. Triturar, finamente, as bolachas e envolve-las no leite, juntamente com uma colher de açúcar, de modo a formar uma massa consistente. Esmagar o queijo, misturando a outra colher de açúcar. Numa forminha de fundo amovível, colocar a compota de araçá, a mistura do queijo e a bolacha amassada.

Sugestões simples e fáceis que poderiam ter enriquecido o património pantracuélico fajãgrandense…

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A LENDA DA ALMA PENADA

Sábado, 10.10.15

Na Fajã Grande, na década de cinquenta, era muito vulgar ouvir-se esta frase: Aquilo é que é uma Alma Penada. Com esta expressão queria-se significar que a pessoa a quem ela se referia era uma criatura, simples, ingénua, com pouca determinação na vida, com limitadas capacidades de uso da sua liberdade, alguém que vivia a sua vida com objetivos pouco claros. Tratava-se de alguém que andava no mundo simplesmente por ver os outros andarem, aplicando-se sobretudo aos bêbados, ingénuos e tontos.

Ora esta expressão parece ter a sua origem numa lenda conhecida pelo mesmo nome, mas nalguns sítios também denominada por Dama da Meia-Noite, ou ainda como Dama de Branco. Segundo essa lenda, muito antiga, uma mulher terá morrido ainda muito jovem, não se apercebendo de que tal lhe tinha acontecido, isto é, não se soube que tinha morrido. Assim, apesar de morta, a mulher continuou a viver, mas apenas como uma alma, andando e vagueando pelo mundo sem muito bem saber o que queria ou o que pretendia fazer. Como, na verdade, assumisse permanentemente a forma e o aspeto de uma alma, andava sempre vestida com uma túnica branca que lhe cobria todo corpo até aos pés. Tinha apenas um objetivo que era o de encantar os homens solitários, tontos e bêbados, aos quais se apresentava com um aspeto jovem e sedutor como se fosse uma verdadeira, bela e atraente donzela que aparece à meia-noite para desaparecer logo a seguir. Como era muito linda e ludibriava facilmente os homens, estes cuidavam que ela era uma jovem normal. Ao encontrar um homem, a Alma Penada primeiro atraia-o e, de seguida, pedia-lhe que a levasse de novo para casa. O homem atraído por ela ficava entontecido, como que fica enfeitiçado pela beleza da moça e aceitava prontamente ceder às suas seduções. No entanto, ao caminharem juntos surgia sempre pela frente um obstáculo que impedia que continuassem a caminhar juntos. A mulher, de repente, desaparecia e o homem enfeitiçado regressava à sua solidão.

Dizia-se que muitas vezes até era para o cemitério que ela conduzia os homens, uma vez que era aí que ela tinha a sua moradia. Quando o homem percebia que fora conduzido e que estava num cemitério, a rapariga desaparecia. Também se dizia que era à meia-noite que tudo isto acontecia.

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A TARTARUGA

Sexta-feira, 09.10.15

Conta-se que há muitos, muitos anos, numa determinada terra vivia um pescador pobre e humilde. Certo dia, como sempre, partiu para o mar no seu pequeno barco e lançou a rede. Algum tempo depois, sentindo-a muito pesada, cuidou que já a teria cheia de peixe. Decidiu então recolheu-a e, qual não foi o seu espanto ao ver que não trazia peixe, mas embrulhada nela vinha uma enorme tartaruga. Vendo-a muito aflita o pescador teve pena dela, até porque de pouco lhe serviria e salvou-a, desembrulhando-a da rede e deitando-a, de novo, para o mar. A tartaruga ficou muito comovida com a atitude e quis recompensa-lo. Para isso virou-lhe o barco fazendo com que o pescador caísse ao mar. O pescador, não conseguindo regressar para dentro do barco, encavalitou-se sobre o casco da tartaruga e esta levou-o consigo para um reino maravilhoso, existente no fundo do mar. O pescador ficou ali durante algum tempo.

Embora vivesse muito feliz naquele reino, o pescador começou a sentir saudades de sua terra natal e, sobretudo, da sua família e dos seus parentes e amigos. Pediu, então à tartaruga que o deixasse voltar para terra. A tartaruga anuiu o seu pedido, mas quando ele partiu deu-lhe uma arca forrada de ouro, como presente, com a recomendação de que só a abrisse num momento em que se sentisse muito aflito.

O pescador partiu carregando a arca mas, ao chegar à terra onde vivera, não a reconheceu e, pior do que isso, não encontrou nenhum dos seus familiares ou amigos, uma vez que todos estes já tinham morrido e ainda soube que há centenas de anos, naquela terra, tinha desaparecido, no mar, um pescador com o nome precisamente igual ao seu.

Muito triste e desolado o pescador foi sentar-se sobre um rochedo, à beira do mar, na esperança de reencontrar a tartaruga, mas desesperou-se porque esta demorava em aparecer. Começou, então, a sentir uma aflição enorme. Nesse momento abriu a arca que a tartaruga lhe oferecera. Ao fazê-lo, todos os anos começaram a passar para ele que depressa envelheceu e morreu.

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A PONTA

Quinta-feira, 08.10.15

O lugar da Ponta da Fajã Grande, mais conhecido simplesmente por Ponta, com a sua igreja dedicada a Nossa Senhora do Carmo, é um local de grande beleza e equilíbrio paisagístico. No entanto, devido à sua proximidade da rocha e as consequentes derrocadas que, de vez em quando, por ali têm desabado, gerou-se, nos últimos tempos, alguma perplexidade e incerteza relativamente à permanência ali dos seus habitantes, em consequência das restrições legais de habitação impostas, pelos responsáveis da Região, na sequência dos desabamentos de 1987. Assim, a Ponta conta, atualmente, apenas com cerca de 20 habitantes residentes. No entanto, encafuada no verde dos socalcos e andurriais da rocha, com as suas cascatas a escorrer pelas escarpas abaixo, a Ponta da Fajã Grande não deixa de continuar a ser um lugar belo e idílico que teima em manter-se com o carácter próprio e autónomo que criou desde que, nos primórdios do povoamento da ilha, serviu de fronteira entre as freguesias de Nossa Senhora do Remédios das Fajãs e de São Pedro da Ponta Delgada.

A Ponta manifesta-se assim, hoje, como uma localidade como que imaginária e de sonho, emaranhada num mito de silêncio e de isolamento, consubstanciada num idílico com tradições profundamente rurais, onde ainda se ouve o cantar dos pássaros, o murmurar das águas e o marulhar do mar, por vezes intempestivo.

Em tempos idos, porém, a Ponta foi um povoado com mais população do que os atuais lugares que constituem a freguesia a que pertence. A sua igreja, sede do curato, foi construída em 1898. A sua construção deveu-se, em grande parte, ao empenho e ação o padre Henrique Augusto Ribeiro, natural dos Cedros, ilha do Faial, na altura vigário e ouvidor de Santa Cruz das Flores e a quem se deve também a construção de outras igrejas das Flores. Até 1922 o curato, munido de um passal, esteve a cargo de um cura próprio, que ali vivia, tendo sido o seu primeiro cura o padre José Leal da Silva Furtado. Seguiram-se os padres Alfredo Augusto Menezes e Santos, José Furtado Mota e Francisco José Gomes.

O lugar da Ponta, no que ao seu povoamento dizia respeito, era e continua a ser constituído, fundamentalmente, por uma enorme rua, quase paralela à Rocha e que se iniciava logo a seguir à Ribeira do Cão, terminando no extremo oposto já no sopé da Rocha, onde existia uma pequena capelinha de madeira, dedicada à Senhora de Fátima, mandada construir por João Lizandro. Só na década de sessenta esta capelinha foi substituída pela atual ermida, construída muito próximo do local da primeira, também ela dedicada à Senhora de Fátima. Foi benzida em Setembro de 1969 pelo então ouvidor de Santa Cruz, padre Francisco Vitorino Vasconcelos. Um ano antes, fora lançada a primeira pedra pelo então pároco da freguesia, Padre José Gonçalves Soares e nela introduzida a ata do registo desse acontecimento e uma moeda do ano em curso. Da rua principal, no entanto partiam algumas pequenas vielas, sobretudo do lado do oceano. Para além da igreja da Senhora do Carmo e da ermida da Senhora de Fátima, a Ponta ainda possuía uma interessante Casa do Espírito Santo, construída em 1862, sob a forma de capela, de arquitetura muito interessante, situada no largo do Outeiro, ao lado da igreja, bem como alguns outros edifícios particulares. Na década de cinquenta a Ponta ainda possuía um posto de desnatação de leite e dois estabelecimentos comerciais.

Hoje sabe-se que o lugar da Ponta foi povoado desde o século dezasseis. Visto de longe este lugar apresenta-se deslumbrante e belo a igreja branca de Nossa Senhora do Carmo a impor-se entre verde dos andurriais e dos cerrados de milho. A Ponta da Fajã é um lugar de sonho cingido por montanha e mar. Do lado norte existe uma subida para Ponta Delgada, um antigo trilho de trabalho, por onde passavam animais e homens que diariamente iam à ordenha ao mato. Era por ali também que subiam os pescadores com destino aos Fanais. Hoje é trilho muito apreciado, devido às deslumbrantes vistas que dali se desfruta, por caminhantes sendo um trilho de referência nos Açores e mais concretamente na Ilha das Flores. O trilho pedestre tem o seu início em Ponta Delgada, passa pela Ponta da Fajã e termina na Fajã Grande. Ao longo dele destacam-se troços de piso de pedra antiga e pastagens delimitadas por muros de pedra. Quem o percorre pode observar, ao longe a ilha do Corvo, o Ilhéu Maria Vaz e o Ilhéu do Monchique. Durante o percurso, podem encontrar-se exemplares de flora endémica dos quais se destacam o cedro-do-mato, a urze, o azevinho, o bracel, o sanguinho, o pau-branco e a faia-da-terra. Podem ainda observar diversas espécies de aves, tais como o tentilhão, o canário e o melro-preto assim como algumas espécies migratórias que nidificam na ilha como é o caso do cagarro e dos garajaus.

Mas de repente e sem que nada o fizesse prever este belo e magnífico lugar se tornou-se numa “Zona de alto risco“ numa espécie de “localidade fantasma”. Foram as fortes chuvadas que duraram dias que se desencadearam sobre este local que fizeram com que na zona da rocha, atrás da igreja, se desse uma derrocada de grande parte da encosta que caiu por duas fases, sobre parte do povoado. Por milagre não houve feridos entre a população no entanto a derrocada destruiu muitos campos de cultivo e algumas casas. Os vestígios desta desgraça ainda hoje são visíveis pois a vegetação só muito lentamente recupera o seu terreno. Já na década de sessenta uma enorme derrocada havia assolado este martirizado lugar.

Ponta um mito perdido no tempo, uma vez que hoje residem ali apenas seis famílias a poucos metros daquele que é o ponto mais ocidental da Europa, embora, durante o dia alguns dos antigos residentes, hoje a morar na Fajã, ali se deslocam para trabalhar os campos e tratar do gado.

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A PEREIRA

Quarta-feira, 07.10.15

O Rodrigo, chegado à Califórnia há poucos dias e hospedado em casa dos tios Barbosa, indignava-se, veementemente, com os telefonemas diários e contínuos que fazia a tia Bárbara, a dona da casa. A cada hora, a cada momento, pegava no telefone e chamava a Pereira. Depois lá continuava num inglês muito revezado:

- Give me naine, sikse, tree, naine, for, ou, for…

E logo a seguir lá vinha a enxurrada:

-  À melhé , comé que are you? Yesterdei cóllade mi a Maria do Gervásio to say caquele sana babicha do Jose do Oiteiro, bote a niu automóvele. Bat hi gaba-se que it is tope of gama. Shua que hi is um vain da merda. Tere are pouco mais the tu days reached here and already tote que tem mundos e fundos. To me it small a esturro. May be the brother in law who gave him the moni… E o tei home, comé que vai? You já foste a Sana Cruz? Its a tauzinho bem pequenino….

O Rodrigo pasmava! Pouco falava inglês mas dava para perceber que aquilo nem chinês era. Mas o que mais o intrigava era a Pereira. Quem seria aquela Pereira com quem a tia Bárbara tanto conversava. Talvez a Irene Pereira, casada com o Inácio Tadeu que tinha vindo há uns anos para a América e morava em Vallejo, ou a filha do António Pereira, radicada em San José… Talvez uma amiga de outra freguesia das Flores ou de outra ilha açoriana…

Certo dia em que o visitaram os primos Silveira, não se contendo, perguntou ao Gonçalo:

- Sabes quem é aquela senhora Pereira, com quem a tia Bárbara tanto conversa todos os dias.

O Gonçalo, dando uma enorme gargalhada, explicou:

- Não é nenhuma mulher com esse nome. A Pereira que ela chama é a operare ou seja a telefonista a quem ela pede o número do telefone da pessoa com quem quer falar…

 

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A BATARIA DA ALAGOA

Terça-feira, 06.10.15

Por bateria ou bataria como se dizia nas Flores, entende-se um agrupamento de bocas-de-fogo ou de outros sistemas de armas de artilharia, no caso das Flores localizado à beira-mar, nos chamados fortes, situados num lugar estratégico, com um comandante à frente e com posições de tiro próximas.

Segundo os Anais do Município das Lajes das Flores, no século XIX existiram nas Flores vinte e três fortes, estando quatro deles localizados na Fajã Grande: Estaleiro, Castelhana, Vale do Linho e Castelo da Ponta. Cuida-se, no entanto, sobretudo devido a ausência de vestígios dos mesmos que alguns destes fortes seriam simples casas da guarda. O seu objetivo principal era defender a ilha dos frequentes ataques dos piratas.

Um dos mais importantes fortes da ilha das Flores era a Bataria da Alagoa localizado na baía da Alagoa, freguesia dos Cedros, concelho de Santa Cruz, destinado vigiar e defender grande parte da costa nordeste da ilha das Flores e, indiretamente o Corvo, onde existiam apenas quatro fortes. Em posição dominante sobre um grande trecho do litoral, o Forte da Alagoa constituiu-se em uma bateria destinada à defesa do ancoradouro ali existente contra os ataques de piratas e corsários, outrora frequentes nesta região do oceano Atlântico.

Pouco se sabe da sua história como aliás de quase todos os outros. Apesar de tudo, deste existe alçado e planta, com o título "Bateria da Alagoa", de autoria do sargento-mor do Real Corpo de Engenheiros, José Rodrigo de Almeida (1822). A "Relação" do marechal de campo Barão de Bastos em 1862 refere-o como "Posto da Praia da Freguesia dos Cedros", informando que "Tem uma pequena casa arruinada" e acrescenta: "Não existem vestígios de fortificação."

Assim se conclui que nem sequer vestígios da sua estrutura chegaram até aos nossos dias.

Recorde-se que nesta zona da e do lado da freguesia dos cedros que faz fronteira com a de Ponta Delgada ainda existiam os fortes da Volta da Rocha, Carregadouro da Fajã da Gata e Barrosas.

 

NB - Dados retirados de F. A. Pimentel Gomes, inA Ilha das Flores: da redescoberta à actualidade (Subsídios para a sua História) (1997; 2.ª edição, revista e ampliada, em 2003) e de Marinha de Guerra Portuguesa, Fortes e Fortalezas de Costa - Atlântico - Açores X

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O OUTEIRO

Segunda-feira, 05.10.15

Estava-lhe no sangue. Era como se fosse uma parte de si própria. Estampado, ali mesmo ao lado da casa onde nascera, onde crescera e onde sempre viveu, o Outeiro, sobranceiro ao povoado, fazia parte do seu quotidiano, da sua vida, tal como um amigo fiel, confidencioso e inseparável.

Desde pequenina que Carla se habituara a procurar, ali, bem no alto, entre pequenas árvores e grosseiros pedregulhos, o palco apetecido e inócuo das suas brincadeiras e folguedos. Os incensos, os sanguinhos, os folhados e uma ou outra babosa, a crescerem à porfia, forrados de um verde apetecível, deslumbrante e suculento, pareciam-lhe fantasmas encantadores e mirabolantes que povoavam o seu universo sonhador e lhe transmitiam uma alegria e uma felicidade inaudíveis e os enormes calhaus basálticos, soltos e crespidos, caiados de musgos e limos, eram monstros arrebatadores e provocantes, a embalá-la numa fantasia perfumada e deliciosamente infinita. Até a enorme cruz, branca, ingente e altiva, plantada ali sobre o povoado, como que a abençoá-lo e a protegê-lo, parecia-lhe um castelo gigante, morada de príncipes encantados, ornado de vitrais coloridos e em cuja torre de menagem repicavam, festivamente, sininhos de tamanhos diferentes e de sons diversos.

Depois viera a juventude e o Outeiro, outrora oráculo de inocência e fantasia, ora se transformava num companheiro e amigo com quem partilhava sonhos e anseios, ora se metamorfoseava num covil, esmorecido e sombrio, onde desabrochavam desejos e ambições, ou num tugúrio de soturnidade e desencantos, onde despejava o desassossego das suas goradas e desgostosas inebriações. Os fantasmas da fascinação transvertiam-se em horóscopos de deslumbramentos atrofiados e os monstros empolgantes, outrora construídos sob os penhascos, soltavam-se trôpegos, como se fossem gaivotas em voos entontecidas   

Agora, com trinta anos, Carla ainda procurava o Outeiro, mas sentia-o diferente, embora o amimasse com o mesmo carinho da infância, o amasse com o mesmo ardor da juventude e o demandasse numa paixão incontida. Era uma espécie de prodígio petrificado, agreste e desértico, onde o perfume bravio dos incensos e dos sanguinhos, a salubridade telúrica dos rochedos, o sabor dulcificado do alecrim e do poejo se confundiam com uma estranha, indolente e inconstante nostalgia. Ainda se sentia jovem, embora displicente no corpo e selvagem na alma, e continuava a sonhar, ali, embrenhada naquele andurrial, cujo silêncio e o remanso lhe transmitiam uma paz inconfundível e uma tranquilidade abundante. Agora era a vista que dali desfrutava sobre o povoado, que mais a encantava, enternecia e a forçava a galgar horizontes perdidos e intransponíveis. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, mais além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha. Encravada, quase no cimo do Outeiro, a cruz continuava branca, ingente, altiva e teúrgica, como se fosse um santuário de sacrifícios, preces e oferendas. Era junto a ela que, nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse, quer ventasse, ajoelhava, entoando cânticos e impropérios diversos e prolongados e, por isso mesmo, continuava a impor-se como símbolo duma sacralidade dolente, taciturna e humanizada. Parecia-lhe ouvir, mesmo em pleno dia, as vozes dos cantores ecoando nas encostas dos montes, ressoando e repercutindo-se sobre os velhos telhados dos casebres. Nesses momentos, como em todas as outras casas, ela ajoelhava também e, em simples mas sincera oração, unia-se às preces dos cantores e de todos os habitantes da freguesia e suplicava perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores. Por isso mesmo, agora, mais do que na infância ou na juventude, tentava encontrar naquele cerro os ecos dos cânticos e das súplicas que lhe incendiassem o corpo e purificassem a alma. Procurava ali, no remanso da taciturnidade, o enigma do seu próprio destino. Mas a resposta vinha-lhe tão vaga, tão vazia, e tão desnudada, cerceada pelo sopro acutilante do vento norte. E os campos, lá em baixo, cobriam-se de um nevoeiro amarelado, ocultando-se num silêncio abrupto e profundo, misturado com os ecos roufenhos do estonteante estrebuchar das ondas contra escolhos e baixios e com os gritos agonizantes das gaivotas perdidas nos remoinhos do vento norte. Lá em baixo, no povoado, velhos, novos, homens, mulheres e crianças fervilhavam num desassossego perturbador, entre vagas de murmúrios, num labirinto de mexericos, num turbilhão de comentários, de interrogações, de ódios e enganos, entre suplícios e tormentas que ela joeirava, purificando-os e retirando-lhes o doloroso amargo dos espinhos.

E no sempre persistente remanso do Outeiro, Carla escrevia com o fumo emaranhado das fogueiras que nunca acendera, o restolho dos sonhos que ali sempre embalara e que, agora, se perdiam em projectos cheios de um rumor alvoroçado.

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UMA TECEDEIRA DE CANTIGAS CHAMADA MARIA ANTÓNIA ESTEVES

Domingo, 04.10.15

(Texto de Victor Rui Dores)

 

Numa altura em que praticamente ninguém se interessa pelo Cancioneiro dos Açores (e os poucos que o fazem, através do Cancioneiro Geral de Armando Côrtes-Rodrigues, andam a lavrar regos já lavrados…), é de saudar a insistência e a persistência de Maria Antónia Esteves, que, numa linha de contínua e continuada investigação, vai recolhendo, registando, gravando e cantando a música tradicional dos Açores e suas incidências com a música vinda do continente português, da Europa, das Américas, do Brasil e de África.

Muito haveria a dizer sobre esta cantora e etno-musicóloga, que tem talento, sensibilidade e bom gosto. Porque não é impunemente que se é herdeira de uma tradição musical e poética com raízes fundas e profundas nos cantares de gesta medievais e na melhor poesia trovadoresca. Porque não é impunemente que se é trisneta de baleeiros que balearam até ao Oceano Ártico. E porque não é impunemente que se é sobrinha do grande folclorista açoriano padre José Luís de Fraga, e se cresceu no seio de outros familiares para quem a música constituiu sempre um compromisso de paixão.

Depois de Açores (45 r.p.m., 1981), Manjericão da Serra (LP, 1984), Canto do Prisioneiro (LP, 1988) e Com o Rosto a Este Vento (CD, 2005), temos agora Entre França e Aragão(2014) como título do mais recente CD de Maria Antónia Esteves e que, a meu ver, constitui uma das mais porfiadas experiências musicais dos últimos anos em solo pátrio, sendo que, nos Açores, não há precedentes de um disco com esta temática. Um disco com boa apresentação gráfica e com um booklet que nos dá informação muito precisa sobre a origem, a história e outras incidências dos temas recolhidos.

Com a sua voz telúrica, bem timbrada, límpida e expressiva, superiormente acompanhada à viola de arame (ou viola da terra) por Miguel Pimentel, que é também autor dos eficazes e eficientes arranjos para viola(s), Maria Antónia Esteves canta sentimentos, emoções e estados de alma. Com expressão lírica e grande serenidade.

Ela canta errâncias marinheiras e vivências baleeiras (“Um Marinheiro”, recolhida na ilha das Flores pelo padre José Luís de Fraga), evoca o amor e a dolência nostálgica da alma açoriana (“O Meu Bem”, por ela recolhido na ilha de São Jorge, ”Cabeçal onde me deito”, recolhida na ilha de São Miguel por Miguel Pimentel, e “Lindos Amores”, recolha de Manuel José Tavares Canário em São Miguel), havendo a destacar a relação que a cantora/recoletora estabelece entre melodias/danças do folclore açoriano e as suas congéneres do Sul do Brasil (Rio Grande do Sul e Santa Catarina), nomeadamente “Ratoeira” e “Terno de Reis”, temas que, sendo de origem açoriana porque levados para o Brasil por colonos açorianos no século XVIII, foram naquelas regiões recolhidos. E aqui muito haveria a dizer sobre as marcas da música criada nos Açores que a diferencia da matriz portuguesa, flamenga, americana, africana ou brasileira, ou seja, o fenómeno da adoção, adaptação, alteração e criação local de toadas populares açorianas – matéria sobre a qual me venho debruçando nas últimas três décadas.

Mas a cereja em cima do bolo deste disco é mesmo a faixa “A Donzela Guerreira”, versão recolhida na ilha de São Jorge, tratando-se de um dos romances tradicionais mais populares nos países do sul da Europa, e que dá conta da história de uma jovem que vai combater a guerra “entre França e Aragão” fazendo-se passar por homem.

E depois há essas duas preciosidades melódicas e harmónicas que são o “Fado Maria da Luz” (recolhido por Maria Antónia Esteves na ilha de São Jorge) e “Fado da Meia Noite” (recolhido por Miguel Pimentel em São Miguel). Por isso mesmo, o que escutamos neste disco não é folclore, mas música autêntica e profunda, toada intemporal e universal.

Em todas as cantigas do disco, a voz de Maria Antónia Esteves funde-se, em comunhão espiritual e em supremo diálogo, com o toque rasgado e puro da viola de Miguel Pimentel (filho de Manuel Moniz que foi igualmente notável tocador de viola), cuja excelente técnica e extraordinária capacidade solística estão bem patentes em outros três temas: “Pezinho”, “Chamarrita do Meio” e “Sapateia”. Aliás, este disco é também uma declaração de amor e de dignificação à nossa viola da terra, às suas sonoridades, capacidades e potencialidades. (De resto não é difícil tocar viola da terra, o que é difícil é tocá-la bem…).

De grande qualidade, este disco Entre França e Aragão (viagem musical e poética feita a partir dos Açores mas com rotas traçadas a pensar noutros espaços universais, ou seja, com música que parte da ilha para o mundo e que, do mundo, regressa à ilha) cumpre um verdadeiro serviço público. Por isso, mas não só por isso, deve merecer a nossa melhor audição.

Uma coisa é certa: na solidão comprazida de São Pedro do Nordestinho, na ilha de São Miguel, a trovadora Maria Antónia Esteves, sorriso radioso e sereno (calma por fora mas criativamente muito agitada por dentro), continuará a dar voz e expressão à alma de um povo. Porque é esse o seu destino. Porque é essa a sua missão. E porque é essa a sua forma de perseguir caminhos de sonho e felicidade.

 

Victor Rui Dores in Açoriano Oriental. 2 Out. 2015

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OS CALDEIRÕES

Sábado, 03.10.15

Na década de cinquenta o caldeirão era um dos utensílios domésticos mais utlizado nas cozinhas da maioria das casas da Fajã Grande para cozinhar. Eram feitos de ferro, tinham diversos tamanhos mas todos com o mesmo formato. Assentavam, com um fundo arredondado, sobre três pés e iam crescendo em largura formando um enorme bojo ao meio, depois afunilavam até uma espécie de pescoço ou gargalo, terminando numa grande boca, tendo geralmente como anexo, uma tampa, muitas delas também de ferro e uma ou outra de madeira. Todos os caldeirões eram dotados de duas asas, no exterior, na zona do gargalo, uma de cada lado. Raramente tinham outra forma para além do formato oval. Cuida-se que o caldeirão foi utilizado pelo homem desde a invenção da metalurgia, para o preparo de alimentos. Geralmente são feitos de ferro por este metal ser mais resistente ao fogo direto, e também para facilitar as preparações alimentares ou outras, onde é necessário aquecer ou ferver quaisquer tipos de substâncias, uma vez que o ferro, para além do seu baixo custo, tem mais resistência ao fogo, considerando-se também que tem possíveis contributos positivos para saúde humana. Além disso o caldeirão, por vezes com pés bastante altos, era capaz cozinhar sozinho, isto é, prescindindo das grelhas, também elas de ferro, muito usadas na altura.

Na Fajã Grande a maioria das famílias tinha mais do que um caldeirão, geralmente com tamanhos diferentes. Os mais pequenos serviam para ferver o leite, estufar o pão de milho ou fazer as papas, havendo mesmo, em muitas casas, um caldeirão específico para fazer as papas, designado por caldeirão das papas. Depois havia os médios que serviam para cozinhar, a carne de frango, cozer as batatas e fazer as sopas. Nalgumas casas havia um caldeirão gigante, destinado a cozer os inhames ou derreter os torresmos do porco por altura da matança. Como estes eram bastante caros quem não os tinha pedia-os emprestados a vizinhos ou amigos. É que apesar de mais baratos do que as panelas ou tachos feitos de outros materiais era sempre muito custoso para a maioria das famílias da altura comprar um caldeirão, sobretudo se fosse dos maiores, obviamente mais caros.

Para ferver água, para o café, para escaldar o pão ou o bolo e até para lavar os pés recorria-se a um chaleira, existente em todas as cozinhas e também ela de ferro.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05


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