PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CÚMULO DO ISOLAMENTO
Ao segundo dia na ilha das Flores, abrimos as cortinas, espreitámos para cima e vimos a caminhada pelo maciço rochoso da Sé por um canudo.
Não somos malta de desistir facilmente e lá entrámos no jipe da West Canyon à espera de um milagre. Raul Brandão, mais uma vez: "Esta paisagem molhada e verde é como um sonho: entreabre-se, fecha-se, sorri e adormece..." Não tivemos sorte, porém: pelo menos a esta altitude, as Flores não se abriram para nós, mantiveram-se naquele estado em que "água, ar e bruma intimamente se casam". Ao volante, Marco Melo explica--nos que o trilho que estava previsto para esta manhã (convém que seja guiado, uma vez que não está marcado na sua totalidade) começaria na Fazenda de Santa Cruz e terminaria no Pico da Sé. "As vistas lá de cima são de cortar a respiração", afiança. Não duvidamos, mas praticamente não vemos um palmo à frente do nariz. Chegamos de jipe à zona dos Piquinhos e, além dos musgos na beira da estrada de terra batida, dos coelhos (tantos!) que saltam à nossa frente e das omnipresentes hortênsias, só esta bruma que nos dá cabo dos planos.
Parece-nos que nas Flores todos os caminhos vão dar ao nevoeiro - e dizemos isto em voz alta. Inconformado, Marco dispõe-se a provar-nos o contrário. Quem não tem cão, caça com gato: em poucos minutos entramos na Estrada Municipal do Galo, que dá acesso à Fajã de Lopo Vaz, perto das Lajes. Voltámos para a costa e o sol brilha agora com alguma intensidade. Olhamos para baixo e percebemos onde vamos ter de chegar, a pé. Às 11h15 começamos a cumprir o trilho da fajã.
Vamos descendo, com o vento a assobiar na vegetação (canas, conteiras) e o mar a rugir lá em baixo. É bonita, a paisagem, mas há-de melhorar não tarda. Vamos escutando os melros pretos e os tentilhões, observando as faias da terra (espécie endémica) empoleiradas na encosta rochosa e sentindo o cheiro a urze, que aqui se chama queiró. Em 15 minutos chegamos a uns degraus de pedra e deste ponto a vista para o mar pode ser vertiginosa para olhos mais sensíveis. E é daqui que vemos, lá em baixo, duas casas brancas - não, três, não, quatro, são quatro pontinhos brancos que sobressaem do negro basáltico das pedras que são o chão da fajã.
Continuamos a andar, ainda não passou meia hora, mas assusta olhar para cima e perceber que há este caminho pela rocha para subir de volta. Marco sossega-nos, habituado que está a palmilhar todos os caminhos das Flores, e diz que "é muito pior descer". A ver vamos. Por enquanto vemos a árvore da groselha e o araçazeiro - dá umas bagas muito utilizadas na ilha para fazer doce de araçá, que haveremos de provar e aprovar um destes dias. O vento amainou e o sol está agora muito mais aberto.
Passaram 45 minutos desde que começámos a descer e já temos a fajã debaixo dos pés. A primeira casa, que lá de cima era um pontinho minúsculo, ergue-se, branca, à nossa frente. Deixa ver alguns sinais de degradação, mas ainda assim percebe-se que cá esteve gente há pouco tempo, pelos vestígios de uma fogueira recente. A propósito, Marco explica que o acesso às casinhas plantadas na Fajã de Lopo Vaz é mesmo o que acabámos de cumprir, não há outro caminho - a não ser para quem chega pelo mar.
É para o mar, precisamente, que vamos agora. As ondas rebentam junto à areia e pedras negras, mas o azul, iluminado por um sol agora forte, enfeitiça. Não temos roupa para o mergulho, afundamos apenas as mãos na água para lhe confirmar a temperatura amigável. Olhamos em redor e vemos apenas dois turistas que também aqui chegaram a pé. De resto, somos nós, o céu e o mar azul, a areia negra e grossa e uma ou outra gaivota para garantir banda sonora. Rede de telemóvel não há e damos connosco a pensar, mais uma vez em voz alta, que isto deve ser o cúmulo do isolamento. Marco corrige-nos e garante que não.
A subida custa mais ou menos o mesmo que a descida - com a diferença que agora praticamente não falamos. Está calor, sentimos sede a cada passo e de repente estamos a beber água que escorre da rocha através de uma folha da qual improvisamos um copo. No último lanço de escadas, já conseguimos avistar o jipe, o que dá motivação extra para os metros finais. Estamos cansados, transpirados, esfomeados - há muito que uma simples sande de fiambre não nos sabia tão bem.
Com estas e com outras, já se passou a manhã. Porque somos persistentes, ainda jogamos, mais uma vez, o jogo do gato e do rato com as lagoas. Quase já sabemos de cor os caminhos que nos conduzem a elas. "Por vezes um fio de sol doira a névoa a medo", dizia Raul Brandão, mas ainda não foi desta - as nuvens continuam a montar guarda às lagoas, como se de um tesouro valioso se tratasse. Já não temos muito tempo, mas entretanto já aprendemos que é preciso saber esperar. Esperemos, então.
Antes, porém, temos direito a passagem panorâmica pela costa nordeste das Flores: ilhéus da Alagoa, de Álvaro Rodrigues (chegou a ter plantações de milho e exibe uma nascente natural) e Furado; Fajã da Ponta Ruiva, que ontem víramos de cima; as grutas da Catedral (imensa, com um eco extraordinário, daí o nome) e do Galo - a rocha é cortada, o sol incide na água e deixa à vista um pedaço de mar turquesa forte, tão cristalino quanto difícil de definir; a réplica marítima da Rocha dos Bordões, ex-líbris das Flores que (ainda) não lográmos ver em terra - um acidente geológico que se caracteriza pela solidificação da rocha basáltica em altas colunas prismáticas verticais.
Carlos conduz o barco para os recantos que se impõem e vai dando algumas dicas para olhos menos atentos. As hortênsias na escarpa, por exemplo, o pormenor da estratificação das rochas, o garajau comum que parece posar para as fotografias. (A propósito, ontem à noite ouvimos pela primeira vez o canto perturbador dos cagarros.)
Por enquanto voltamos às Flores, onde temos a base da nossa viagem ao grupo ocidental do arquipélago. O mar está agora mais alteroso e Carlos informa que o regresso será certamente mais molhado. Vamos de cabeça baixa, para evitar os salpicos de água salgada, até que ouvimos as palavras mágicas: "Golfinhos, golfinhos!" Lá estão eles, à esquerda do barco. Primeiro ao longe, primeiro poucos - mas depois quase coladinhos a nós e muitos, elegantes nos seus saltos acrobáticos. Tinham-nos dito que havia 90 por cento de hipóteses de os vermos e cá estão eles, para gáudio de todos os passageiros. Mais difícil, como se comprovou, seria avistarmos baleias, mas de vez em quando também aparecem.
O que aparece agora, ao fundo, é mesmo a ilha das Flores - e o recorte dos seus pontos mais altos apresenta-se muito mais nítido do que nos dias anteriores. Será hoje, finalmente, que vamos pôr a vista em cima das lagoas?
Na da Lomba, pelo menos. Apesar das nuvens, está completamente visível. Tem uma forma mais ou menos circular e está enquadrada por criptomérias e, claro, por belíssimas sebes de hortênsias. De momento não está cá mais ninguém. Ouvem-se os pássaros e o vento e agora o sol espreita por momentos, bate-lhe e torna as suas águas mais claras.
Embalados pela sorte, vamos em busca das que nos faltam no currículo. Correm as nuvens e corremos nós, a cruzar os dedos. Nada na Comprida, nada na Negra. Mudamos de lugar, sempre atrás dos prejuízos desta neblina que nos troca as voltas. Estamos há minutos à espera de poder ver uma nesga da lagoa Funda. Primeiro perdemo-la, por dez segundos. Pacientes, esperamos, que aqui aprendemos a esperar. E entretanto ela surge, uns metros apenas, que se escondem logo às mãos destas nuvens com vontade própria.
Estamos dentro de um jogo de paciência, que agora nos oferece um centímetro da Negra e um centímetro da Comprida. Andamos para trás e para a frente, ao sabor dos blocos de nevoeiro. De vez em quando, um ameaço de sol doura os campos molhados e renasce a nossa esperança. Marco, porém, conhece melhor do que ninguém estas "terras metidas nos vulcões" e chama-nos à realidade: por mais que esperemos hoje, não as veremos na plenitude que merecem. Resignemo-nos, então, a voltar para o continente com esta lacuna por preencher.
A não ser que ainda não sejam 8h00 do último dia e que o telemóvel nos arranque do mundo dos sonhos - para nos levar para o mundo dos sonhos. "É o Marco. Está um dia magnífico. Se quiserem fazer um passeio antes voo, é pegar ou largar."
Pegámos, como é óbvio. Fomos subindo em direção às lagoas debaixo de uma luz como nunca tínhamos visto a esta altitude. Já não era toldada, como nos outros dias, mas muito mais límpida - talvez a "poeira dourada" de que fala Raul Brandão. Ignoramos a entrada para a lagoa da Lomba, que ontem já tínhamos visto, e dirigimo-nos sem outras paragens para a Comprida. Uma súbita neblina ainda nos faz temer o pior, mas de repente fechamos os olhos e quando os abrimos lá está ela, completamente despida para nós.
O silêncio é enorme, deixamo-nos ficar num exercício de contemplação. Estamos a viver um momento quase solene, que interrompemos para avançar poucos metros a fim de conhecermos a vizinha lagoa Negra. É uma circunferência quase perfeita, rodeada de espécies endémicas por todos os lados: cedro do mato, louro, queiró. Tem mais de 100 metros de profundidade que, no entanto, não assustam devido à magia do cenário. Mais mágico do que isto só mesmo o que vemos em seguida, no varandim de um segundo miradouro. As duas lagoas, a Comprida e a Negra, praticamente lado a lado - ou, se preferirmos, de costas voltadas, numa sintonia descasada quase dramática. O sol incide sobre a Negra e deixa-nos ver-lhe melhor a tonalidade das águas. O momento é solene, já tínhamos dito - este canto da ilha é belíssimo, acrescentamos agora, sem receio de exageros.
Entramos no jipe com a alma cheia. E quando, em simultâneo, alcançamos com o olhar as lagoas Funda e Rasa, damos muito mais valor ao que está a acontecer. Era justificada a angústia dos últimos dias: não podíamos deixar as Flores sem levarmos connosco estas imagens de assombro e rendição. A lagoa Funda é de uma beleza extrema, quase trágica de tão verde. Por um rasgão nas nuvens, vê-se o mar lá ao fundo. Mas o impacto é muito maior, realmente, quando estão ambas no mesmo plano de visão.
Estamos absolutamente esmagados. Isto é imenso e misterioso, pena não termos mais tempo para fruir do instante. A contragosto, voltamos as costas a este reino encantado e vamos descer. De bónus, ainda levamos a visão longínqua da lagoa Branca. E finalmente o céu abre-se para nos mostrar a imponência da Rocha dos Bordões. Talvez hoje pudéssemos subir ao Pico da Sé e fazer a caminhada até ao Poço da Alagoinha.
A ilha, percebemos agora, é uma mulher prudente: não se mostra à primeira, gosta que lhe façam a corte sem pressas. Nós tivemos alguma pressa, reconhecemos. Mas havemos de voltar, Flores.
Sandra Silva, Fugas Viagens, Jornal Público de 3/9/11