PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A LENDA DE SÃO MIGUEL ARCANJO
Na igreja da Fajã Grande, na década de cinquenta, ainda existia uma imagem de São Miguel-o-Anjo. Tratava-se de uma pequena escultura em talha dourada que se dizia ser muito antiga, tendo, provavelmente, pertencido à primitiva ermida, construída em 1755 e que antecedeu a atual igreja. A imagem representava o São Miguel Arcanjo, empunhando numa das mãos uma espada e na outra uma balança. Estranhamente esta imagem não estava exposta à veneração dos fiéis, encontrando-se guardada numas arrecadações que existiam por detrás do altar-mor, junto às escadas do camarim.
Era sobre São Miguel Arcanjo que, naquela altura, se contava a seguinte lenda a qual, provavelmente, teria algum fundamento religioso e cristão, dadas as semelhanças entre o seu conteúdo e a representação que havia sido feita da velha e pequenina imagem. Contava-se que houve, certa vez, no Céu um grupo de anjos comandados por Lucifer que se revoltou contra Deus, numa espécie de golpe de estado exigindo que lhe fossem dados poderes e privilégios semelhantes ais divinos. Como Deus não aceitasse tão inoportuna e exasperada rebeldia, travou-se uma batalha no céu, envolvendo os anjos fiéis a Deus contra os anjos revoltosos. Estes eram comandados por Lucifer e os fiéis a Deus tinham como chefe São Miguel Arcanjo. Nessa batalha, destacou-se, na verdade, São Miguel Arcanjo. Segundo a lenda, São Miguel enfrentou diretamente Lucifer, derrotando-o definitivamente e atirando-o para o inferno juntamente com todos os anjos revoltosos. Essa a razão por que São Miguel Arcanjo, geralmente, é representado quer em imagens sacras quer em pinturas religiosas sob a forma de guerreiro vitorioso, empunhando uma espada contra Satanás, como acontecia na velhinha imagem da Fajã Grande. É também por isso que é invocado como patrono dos guerreiros e se lhe pede auxílio nas lutas e combates da vida.
São Miguel Arcanjo também é invocado como o anjo da morte, pois acredita-se que é ele que assiste cada alma na sua jornada final, logo após a morte, até o céu para julgamento. Essa a razão por que para além da espada, se apresenta também com a balança para pesar os pecados dos humanos e julgar os bons e os maus. A tradição diz que Miguel dá uma última chance a todas as pessoas, a fim de se redimirem antes da morte e assim, desta forma, provoca consternação ao demónio e seus seguidores, obtendo mais e mais vitórias sobre Lúcifer.
Inspirado na velhinha imagem da igreja da Fajã Grande, Pedro da Silveira nascido naquela localidade escreveu o seguinte poema
“Lembrei-me agora de ti,
San Miguel-o-Anjo de espada ferrugenta e capacete emplumado
De quando eu ia com meu pai à missa de domingo.
Tu não falavas nunca com os meninos da tua idade,
Nem rias quando olhávamos para ti;
Os teus beiços ficaram sempre mudos
Ao meu apelo insistente de criança.
Abismados em não sei eu que pensamentos de nuvens,
Teus olhos nunca se abriram para a vida
Que a minha ingenuidade de seis anos te quis dar.
Todos os dias a pesar pecados
Na balança velha do céu…
San Miguel-o-Anjo da minha infância,
Esquecido da vida num canto escuro da igreja,
Nem tu talvez existes já…
Outras vozes acordaram nos meus dias
E chamaram a outros caminhos
O menino que eu era contigo.
Hoje, San Miguel-o-Anjo da minha infância,
Menino santo de pau insensível à vida,
De ti em mim persiste só
A vontade que eu tinha de gritar à tua indiferença
Que deixasses de ser santo
E viesses cá para fora brincar comigo
Nas poças da beira-mar.”