PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PREGAR PARTIDAS
O José de Lima era exímio no pregar de partidas. Calmo, bonançoso, bom conservador e amigo do seu amigo não se furtava, no entanto, de se divertir um pouco, sobretudo com aqueles com quem tinha maior amizade e mais confiança. Fazia-o, no entanto, sem magoar ou ofender. Apenas pelo prazer de se divertir. Eu, apesar de mais novo, era um dos seus maiores amigos e mantínhamos, durante os meses de verão, uma cumplicidade recíproca. Convivíamos, conversávamos, sobretudo à noite, uma vez que andando ele a caiar e a retelhar casas durante o dia e ainda por que o pai tinha terras para trabalhar e gado para criar, ele, na verdade e como era costume na Fajã Grande noutros tempos, trabalhava de sol a sol e, por vezes, pela noite dentro. Incontestavelmente eu era uma das maiores vítimas das suas partidas, geralmente inofensivas e por vezes até jocosas.
Certo dia decidi que me havia de vingar.
À tardinha o Lima, como era seu hábito, subia a Fontinha com duas ou três rezes levando-as a uma relva que o pai possuía para os lados da Escada-Mar. Passou à porta da casa da minha avó, onde eu morava e parou um pouco de maneira a que o gado não se distanciasse nem se confrontasse com outro que descesse a rua. Conversámos vagamente e seguiu o seu caminho. Decidi, então, que aquele seria o dia da vingança.
Chamei um miúdo meu vizinho e perguntei-lhe se queria ganhar um escudo. Que sim. A tarefa era simples: fazer-me o favor de ir à Via d´Água, a casa do Senhor José de Lima, avisar a esposa dele, a minha prima Minerva, de que o enteado hoje não ceava com eles. Não esperassem por ele para a ceia, pois ele ia cear em minha casa. Eu sabia que a prima Minerva, sabendo da nossa amizade, havia de acreditar. Além disso, enviar um miúdo a avisá-la era coisa de respeito e nunca uma brincadeira.
O Lima regressou já quase noite, pois nunca se apressava nas suas tarefas. Vi-o passar por entre os cortinados da sala, descer o Caminho de Baixo, a Rua Direita e Via de Água. Quando calculei que estivesse prestes a chegar a casa, segui-lhe as pisadas e, em breve, estava a bater-lhe à porta da sala.
Entrei e começámos a conversar. Na cozinha o pai e a madrasta ceavam tranquilamente. De vez em quando ouviam rumores da azáfama de preparação da ceia. Mas chamar o Lima para o bródio é que nada. Nem o pai, nem a madrasta. E eu a tentar prolongar a conversa de maneira que não desse a entender o que quer que fosse e que a ceia que se desenrolava na cozinha terminasse. Às tantas o Lima começa a olhar para o relógio. Primeiro espaçadamente, depois com frequência, até que muito admirado se levanta, de rompante e, dirigindo-se para a cozinha, reclama em voz alta:
- Ómessa! Hoje não se janta nesta casa!?
A Minerva ouviu a reclamação e, assomando à porta, de avental ao peito, tenta explicar muito aflita e confusa:
- A gente já ciou. Cuidava que não vinhas cear…
- Não vinha cear… Então porquê?! – Interrogou o Lima muito indignado.
- Por que veio aqui o piqueno do Ângelo do Tisoireire dezê que tu hoje nam vinhas ciá a casa. Que ciavas em casa do….
Nessa altura já não contive a risada e o Lima nem precisou de mais explicações. Apenas, virando-se para mim avisou:
- Vais pagá-las bem pagas… Vais… Óh, se vais!