PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
CHUVA PORFIADA
“Antes frio e geada do que chuva porfiada.”
Outro enigmático adágio muito utilizado na Fajã Grande na década de cinquenta. Enigmático porque numa terra onde a água, apesar de abundante, era absolutamente necessária e muito útil, em nenhuma circunstância a sua presença, personificada na chuva, seria preterida ao angustiante frio ou à malfazeja geada. No entanto não se trata, segundo o provérbio, duma chuva qualquer, mas sim duma chuva porfiada, isto é, uma chuva persistente, teimosa, pertinaz, que nunca mais acabava e que, para além de trazer enxurradas prejudiciais, impedia ou cerceava os trabalhos no campo e, sobretudo, o tratamento do gado. E este não podia esperar! E isso nunca, pois, o homem fajãgrandense era, por natureza, um trabalhador permanente e contínuo, sobretudo no que aos cuidados e tratamentos dos bovinos dizia respeito. Não sabia, não era capaz, nem podia estar parado. A sua força e vontade eram tais que nem o frio nem a geada o impediam de trabalhar, tanto na agricultura como na pecuária. Apenas a maldita chuva torrencial, permanente, contínua e incessante o incomodava nos seus trabalhos quotidianos.
Assim este adágio revela incondicionalmente a gigantesca força e a dinâmica capacidade de quantos viviam na mais ocidental freguesia açoriana e cuja vida e a da própria família dependia da eficiência do trabalho agrícola. Na Fajã Grande, nos dias frios de inverno também se trabalhava. Era preciso ir à erva, aos incensos e levar o gado às relvas onde pastava durante o dia, recolhendo à noite aos palheiros. Estas e outras atividades quer ligadas à agricultura, quer à pecuária tinham que ser necessariamente realizadas todos os dias. Sobretudo as ligadas à pecuária. O gado não sobrevivia, nem sequer dava leite se não se alimentasse. Mesmo nos dias de chuva necessitava de alimentos. Com chuva era mais difícil arranjá-los do que com os dias frios. Por isso antes frio e geada do que chuva porfiada.
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GOMES DIAS RODOVALHO
Hoje sabe-se que entre os primitivos moradores da ilha das Flores existia um número significativo de europeus, oriundos de vários quadrantes deste continente. Assim e segundo Pedro da Silveira, alguns dos mais ilustres nomes da população florentina atual denunciam uma origem estrangeira, muito embora os homens e as mulheres que para a ilha os levaram fossem todos portugueses.
À cabeça destes surge o nome de Gomes Dias Rodovalho da família dos Rodovalhos e primeiro capitão-mor e ouvidor da ilha das Flores, que, na sua origem, tinha sangue francês. Desconhece-se ao certo a origem desta família Rodovalho, mas alguns genealogistas pretendem que seja originária de França, da casa de Redoval, na Normandia, e que um seu membro emigrou para Portugal, fixando-se em Alcácer do Sal. Dizem também, que o apelido Redoval se aportuguesou em Rodovalho, o que parece mais forçado do que admitir que ele provém, muito simplesmente, do peixe com o mesmo nome. Constam como filhos do pretenso francês emigrado para Portugal, entre outros, um Diogo Vaz Rodovalho, que casou com Maria Esteves Cansado, em Viana do Alentejo, donde Gomes Dias também era natural e de quem, muito provavelmente, seria descendente.
Verdade porém é que Gomes Dias Rodovalho está para sempre ligado à história da ilha das Flores e, muito concretamente, à curta história da freguesia da Fajã Grande, já que terá sido ele o principal responsável pelo povoamento definitivo de grande parte da ilha e, juntamente com sua mulher, Beatriz Lourenço Fagundes, segundo o padre António Joaquim Inácio de Freitas, o primeiro casal a fixar-se no lugar onde hoje se situa da Fajã Grande.
Personagem coeva mas anterior a Dias Rodovalho é o capitão-donatário, João da Fonseca, também natural do Alentejo, que acompanhou às Flores, com o intuito de povoar a ilha, a primeira leva de colonos, entre os quais se encontrava Gomes Dias Rodovalho. Cuida-se que com eles chegaram, nomeadamente, Diogo Pimentel, Antão Vaz, Lopo Vaz, os irmãos Rodrigo Anes e Álvaro Rodrigues, Pedro Vieira e João Fernandes que se fazia-se acompanhar das suas sete filhas. Chegaram também os irmãos António e Pedro Fraga, com as respetivas mulheres e Jordão Rodrigues, Gonçalo Anes Malho e João Fernandes.
Segundo Frei Diogo das Chagas Gomes Dias Rodovalho, ainda solteiro, terá permanecido algum tempo na ilha Terceira, casando na Praia da Vitória, com Beatriz Lourenço Fagundes. Cuida-se que o próprio Frei Diogo Chagas era bisneto de Rodovalho. Só mais tarde o casal se deslocou para as Flores. Terá assim o nome Fagundes, muito possivelmente, levado para as Flores, a partir da Terceira.
O capitão-donatário João da Fonseca deu a cada um desses homens que aportaram à ilha, uma sesmaria ou seja um quinhão ou pedaço de terreno. Como regressasse, pouco depois, ao Reino a fim de ir mandando novos colonos para as Flores, deixou na ilha Gomes Dias Rodovalho como seu capitão-mor, ouvidor e sesmeiro ou distribuidor de terras. Assim terá sido Gomes Dias Rodovalho o primeiro capitão-mor das Flores, sendo também o responsável pela distribuição de terrenos pelos novos colonos que, entretanto, iam chegando à ilha.
Do casamento com Beatriz Lourenço Fagundes, Gomes Dias Rodovalho teve os seguintes filhos, todos eles nascidos nas Flores: Tomé e Francisco Gomes, ambos casados com filhas de Diogo Pimentel e Catarina Antunes; Gomes Dias Rodovalho, com nome igual ao do pai, casado com Luísa de Mendonça; Henrique Gomes, que casou com Inês Álvares; Ciprião Gomes, casado com Brízia Valadão; Fernão Lourenço, que foi casado em segundas núpcias com Violante Privado e que, por quatro vezes, a última das quais com mais de 80 anos, exerceu o cargo de ouvidor; Garcia Dias Fagundes, que foi mulher de Inácio Fraga, talvez estes os avós de Frei Diogo Chagas; Nuno Gomes, casado com Maria Pimentel.
NB – Dados retirados de Francisco António Gomes e da Net
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GUERRA E PAZ
“Jamais existiu uma guerra boa ou uma paz má."
Benjamin Franklin
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AS ROUPAS
Muita da roupa que se vestia na Fajã Grande, na década de cinquenta, vinha da América. Carvalho após Carvalho, chegavam às mãos de quem tinha familiares e parentes nos States os famosos avisos amarelos, trazidos pela Maleira. Quem os recebia abalava, todo contente, na madrugada seguinte para as Lajes, a pé, atravessando os matos da ilha de lés-a-lés. Por vezes eram ranchos que, a meia tarde, chegavam de regresso à Fajã, carregados com as tão desejadas encomendas. A abertura das ditas cujas era uma festa a que se seguia a distribuição dos trapinhos a quem serviam ou a quem ficavam melhor.
Era esta a razão por que na Fajã Grande praticamente não havia um traje tradicional. Vestia-se, regra geral, o que vinha da América. Mas não chegava e por isso muitas vezes era necessário costurar a própria roupa, encomendá-la a uma costureira ou ir comprá-la à vila.
As mulheres, naqueles tempos, nunca usavam calças. Usá-las seria sujeitar-se ao difamatório. De semana cada qual vestia segundo as suas possibilidades e o que tinham de mais velho ou usado. O melhor guardava-se para o domingo. De semana a roupa de trazer, era constituída, geralmente, por saias, blusas, soeras e um lenço de panino ou chita, que cobria a cabeça, atando-o por debaixo do maxilar inferior. As mais novas andavam em cabelo, prendendo-o com ganchos e fitas. O xaile era usado pelas mulheres mais velhas, sobretudo pelas viúvas. Curiosamente a forma de trajá-lo dependia do estado da portadora. As viúvas e as mulheres que estavam de luto traziam-no dobrado em triângulo e sem cadilhos, para maior simplicidade, fazendo-o cair em ponta, ao longo das costas. Por sua vez as solteiras ou casadas, dobravam-no, de forma a assemelhar-se a uma manta. As raparigas, aos domingos, vestiam um casaco, um buler ou uma soera, geralmente de abotoar e, ao entrar na igreja, eram obrigadas a cobrir a cabeça com um mantinho ou com um lenço. Aos domingos calçavam sapatos altos e meias de vidro. As mais abastadas traziam a chamada saia-de-balão e a sai plissada. Algumas senhoras mais ricas vestiam casaco e usavam sombrinha, mas a maioria usavam o xaile e cobriam a cabeça com o lenço de merino
As cores preferidas na indumentária feminina variavam com o estado de solteira, casada ou viúva. Estas vestiam de preto até morrer ou até contraírem novas núpcias, as solteiras de cores vivas e claras, as casadas de cores mais modernas, modestas e escuras. Quando morria um familiar, por vezes, as raparigas não tendo roupas pretas tingiam de negro alguma da que possuíam a fim de a usar durante o tempo estipulado, de acordo com o grau de parentesco. Esta operação fazia-se metendo a roupa que se pretendia tingir num caldeirão com água a ferver onde se havia misturado uma tinta própria para o efeito. As próprias crianças também se vestiam de negro. Como objectos de adorno, traziam, ao pescoço fio de carolinas, colares e fios om uma pequena cruz. Presos na roupa usavam broches, prisões e ganchos no cabelo e pulseiras. Raras as raparigas e mulheres que possuíam e usavam relógio. Além disso não era de bom tom usar relógio e andar descalço. O anel de prata, ouro ou coral constituiu o mais apreciado objecto de luxo da mulher, que o trazia não só como adorno mas ainda como distintivo do seu estado. As solteiras traziam-no nos dedos indicadores e médio, as casadas, no anelar da mão esquerda.
Quanto às crianças, as meninas vestiam de modo semelhante às raparigas, enquanto os meninos usavam calça curta. Uns e outros, geralmente, andavam descalço, com excepão dos doentes e os filhos de gente rica.
Os homens também tinham o fato de ver a Deus, isto é, a roupa melhor e roupa de trazer. O primeiro consistia numas calças e casaco ou camurça. Muitos usavam chapéu de lona ao domingo. A maioria usava o boné. Um ou outro, boina. Assim como a das mulheres quase toda esta roupa dos homens vinha da América, nomeadamente as calças de angrin, as frocas e os alvarozes, calças largas, também eles de angrin, com suspensórios e peito, vestidos por cima duma camisola de lã. De toda a cobertura da cabeça, porém, a mais usada, por homens e mulheres, durante os trabalhos agrícolas era o chapéu, feito com palha de trigo entrançada, fabricado na freguesia. Eram geralmente as mulheres que os faziam, ornando-os com uma fita no sítio em que a parte de enfiar na cabeça se ligava à aba. Os chapéus das mulheres tinham grandes abas e por vezes eram colocados na cabeça, por cima do lenço.
O povo da Fajã Grande, na década de cinquenta, andava, em regra descalço. Segundo o seu modo de pensar, a cobertura dos pés era considerada um luxo escusado e dispendioso que a poucos se podiam dar. Muitas vezes até era pouco prático, sobretudo na travessia de grotas e ribeiras, e no trânsito por caminhos, canadas e atalhos cheios de pedregulhos e calhaus. Somente os velhos e doentes andavam calçados. A maioria dos sapatos vinha da América. Os sapatos vendidos nas lojas da Fajã eram os de pele-de-cabra e as botas de injaroba, usadas sobretudo para ceifar erva nas lagoas e tirar o esterco dos palheiros. Muitos homens usavam os tamancos e as mulheres galochas. Tanto aqueles como estas eram fabricados na freguesia e tinham sola de madeira com cobertura de couro, pregado à madeira com tachas. Os homens novos e saudáveis, mesmo ao domingo, andavam descalços e dizia-se que alguns houve que, durante a vida, apenas se haviam calçado por três vezes: no dia da primeira comunhão, no dia do embarque para o castelo e no dia do casamento. Contava-se até que certo homem de tanto andar a pé e ter os pés grandes, ao ir para a tropa, não havia botas que lhe servissem, elo que teve que andar sempre descalço.
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O COMPADRE DIABO
Era uma vez um lavrador pobre e já velho, mas muito honrado e trabalhador. O lavrador tinha um compadre que era o diabo, mas não o sabia.
Certo dia o compadre encontrou-o e disse-lhe:
- Ó compadre, tu és tão pobre, tão pobre… Além disso já és muito velho. Sabes que mais? Como já mal podes trabalhar davas-me o teu campo para o trabalharmos a meias, com a condição de que o que crescer para debaixo da terra seja para mim. Claro que o crescer para cima da terra será para ti.
O lavrador, que não tinha nada de parvo, aceitou a proposta, e foi trabalhar o campo, semeando-o de trigo. Mas o compadre, contrariamente ao prometido, não o ajudou nada. Mas no campo nasceu muito trigo que o lavrador colheu. De seguida disse ao compadre que fosse apanhar o que tinha crescido debaixo da terra. O diabo apenas encontrou raízes, e só então percebeu que tinha sido enganado pelo compadre. Foi ter com ele e disse-lhe, novamente:
- Já me não serve o nosso contrato como o estabelecemos. Se o quiseres continuar deverá ser às avessas. Assim o que crescer para cima da terra será para mim, e o que crescer para baixo será para ti.
O lavrador aceitou a condição proposta pelo compadre e semeou o campo, enchendo-o todo de batatas, Produziu batatas que era um regalo. Foi ter com o compadre e disse-lhe que fosse apanhar a sua parte, o que tinha crescido para cima da terra, que era a rama da batata, enquanto ele tirou muitos e muitos alqueires de batatas, com que fez muito dinheiro. O diabo viu que perdia sempre nos contratos, e quis vingar-se do compadre:
- Ah velhaco, que me enganaste, mas eu é que te não deixo ficar assim. Havemos de bater-nos. Será à unhada! Ao menos desta vez hei-de ficar de melhor partido.
Só então o lavrador percebeu que o seu compadre era o diabo. Ficou pois muito assustado, pois sabia que o diabo tinha umas garras terríveis, mas como não podia escolher as armas, já dava ao diabo como vencedor. Foi ter com a mulher, sem saber como se veria livre daquela alhada. A mulher acalmou-o, dizendo-lhe:
- Tem calma, homem. Deixa-o vir para cá, que eu trato-lhe da saúde. No dia em que te vier procurar para lutar contigo, eu escondo-te, porque eu é que me vou entender com ele.
No dia combinado, chegou o diabo muito furioso. Bateu á porta do compadre e disse:
- Aqui estou para irmos lutar.
Foi a mulher do lavrador que, disfarçando simpatia, o recebeu:
- Entre para aqui compadre! Vem para a desforra, não é verdade? Espere pelo meu homem, que foi amolar as unhas. Mas olhe que ele sempre que as amola dá cada unhada! Aqui está a primeira que ele me deu…
Nem foi preciso mostrar nada. O diabo mal a ouviu começou a fugir com medo de ficar cheio arranhaduras, e nunca mais voltou a importunar o honrado lavrador.
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ZERBONE JÚNIOR
Manuel Zerbone Júnior nasceu na cidade da Horta, ilha do Faial a 7 de novembro de 1856, tendo falecido na mesma cidade em 29 de março de 1905. De origem sarda ou corsa, estudou no Porto, onde privou com M. Teixeira-Gomes, Luís Botelho e Queirós Veloso, e em Lisboa, no entanto, nunca concluiu qualquer curso superior. Foi professor de Francês no liceu no liceu da Horta e jornalista publicando textos ainda sob a égide do Romantismo. Zerbone Júnior foi poeta, cronista, contista e romancista e tentou também o teatro. A uma primeira abordagem, a sua obra, parece fútil, por vezes um mero jogo de palavras habilidosamente tecido mas sem fundo. Não é assim, porém. As aguarelas impressionistas de Zerbone Júnior, discípulo de Aloysius Bertrand e de Baudelaire do Spleen de Paris, revelam um verdadeiro poeta, delicado e de funda sensibilidade.
Para Marcelino Lima, seu contemporâneo, Zerbone era «alma de artista, verdadeiro esteta em tudo, no julgar e no praticar, até nas cousas mais comezinhas da vida, destacava-se no círculo dos intelectuais; e muito poderia ter-se salientado, porque condições não lhe faltavam, se não fosse a incapacidade para se amarrar ao trabalho de cinzelar obra de vulto.» Para Ernesto Rebelo, Zerbone tem «um estilo ligeiro e maleável, adequado ao predilcto género de literatura que em França teve por iniciador Júlio Janin e no qual, em Portugal, tanto se distingue Júlio César Machado ? o folhetim, as crónicas alegres»
As suas crónicas saídas no Açoriano, com o título genérico de Crónicas Alegres, subscritas com o pseudónimo Pablo, foram recolhidas, parcialmente, por Carlos Lobão e editadas, em 1989, pela Câmara Municipal da Horta. Todavia, a restante obra que, segundo Pedro da Silveira «daria um bem bom pequeno livro de contos, aguarelas ou poemas em prosa e crónicas (às vezes quase contos)» continua dispersa também pelos jornais hortenses e ainda pelos jornais Folha Nova, do Porto, e Diário da Manhã, de Lisboa. Em parceria com Florêncio Terra, escreveu o romance A Vingança da Noviça, publicado em folhetins no Açoriano, e a peça dramática em três atos Luísa.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O CAMINHO DO BATEL À ESCADA MAR
O caminho que ligava o Cimo da Fontinha ao Alagoeiro, com destino para o sul, prolongava-se através de montes, escarpas e planaltos, até aos Lavadouros e Curralinho, atravessando e permitindo o acesso a muitos outos lugares situados para aquelas bandas. A seguir ao Alagoeiro e até ao Batel, no entanto, havia duas alternativas de seguir para os lugares seguintes, incluindo os Lavadouros. Uma, mais curta mas inacessível a carros de bois e a corsões, era a Canada da Fontecima. A outra era a continuidade do caminho, atravessando o amplo lugar da Ribeira. Esta alternativa, no entanto, tornava-se um pouco mais longa e demorada apesar de mais larga e transitável a uma junta de bois. Assim as pessoas, geralmente, seguiam pela Canada, quando sozinhas. Os animais e os carros e corsões deslizavam pela Ribeira, onde junto ao arame, o caminho se bifurcava, com uma saída para a Rocha e para as relvas e lagoas da Figueira. Todo este caminho, desde o Alagoeiro até à Escada Mar, era empedrado, tipo calçada romana, com uma pedra mestra a indicar-lhe o meio e de tanto passar por ali gado e pessoas não tinha uma erva que fosse, a não ser junto às paredes que o ladeavam.
Após o cruzamento para a Rocha, onde se situava o largo do Arame, seguia-se uma pequena ladeira, ladeada por altas paredes, delimitando alguns serrados de milho e belgas de batata-doce. Era a ladeira da Ribeira que terminava junto ao termo superior da Canada da Fontecima. Aí o caminho formava uma pequena reta, após a qual se iniciava a íngreme e sinuosa ladeira do Batel, ladeada, a leste, por paredes altíssimas, construídas com enormes calhaus, provavelmente, vindos da Rocha, em tempos idos. Os meios de que os nossos antepassados possuiriam para os revolver e ali colocar continuam a ser um mistério. Apenas a força humana? Não se sabe, mas é a hipótese mais provável. A imponência destas paredes poderia muito bem apresentar-se como um ex-libris da Fajã Grande. Por sua vez, os terrenos circundantes, sobretudo do lado este, mais pobre e mais perto da rocha, na sua maioria eram relvas para pasto dos animais. Nas encostas do lado contrário, bafejadas pelo sol e defendidas dos ventos nortes e a configurarem com a Bandeja, situavam belas terras de cultivo de milho e onde nos meses da primavera floresciam as forrageiras e onde o gado era amarrado à estaca, a fim de as trilhar. A seguir à ladeira, conhecida como do Batel de Baixo e no cimo da qual se situava um grande descansadouro de onde se desfrutava uma vista deslumbrante, novamente uma reta que desembocava numa outra ladeira, mais pequena apesar de mais inclinada, a do Batel de Cima.
Estávamos em plena Silveirinha, lugar aprazível e idílico, onde existiam ainda muitas terras e serrados de cultivo mas também muitas e férteis relvas de pasto. Na Silveirinha, o caminho continuava largo e perfeitamente acessível a carro de bois e era como que uma continuidade do arruamento do anterior. O piso continuava a ser de pedra fixa, do tipo calçada romana, com uma pedra maior no centro, a tal pedra designada por pedra-mestra, fixando-se as outras, mais pequenas, ao seu redor. Nalguns sítios bifurcava-se em pequenas canadas e seguia com duas enormes curvas, aproximando-se cada vez mais da Rocha, até à enigmática ladeira da Silveirinha. Enigmática porque larguíssima, cheia de calhaus disformes e em cujo cimo havia uma enorme laje; a Laje da Silveirinha. Tratava-se duma pedra monumental, achatada, de forma circular e com a parte superior muito lisa, uma espécie de mesa redonda, embora sem pés e muito baixa, a fazer lembrar um verdadeiro monumento megalítico. A ladeira que começava numa curva do caminho, no sítio em que ele mais se aproximava da Rocha e de onde se desfrutava de uma bela vista da Figueira e de muitas das suas lagoas e levadas, subia íngreme e pedregosa, latejante e desoladora, ao mesmo tempo que se ia alargando até chegar ao cimo e desembocar num amplo e tosco largo, onde pontificava aquela espécie de tampa aparentemente retirada de um dos menires do Cromeleque dos Almendres. Ali bifurcavam-se duas canadas: uma, precisamente, junto da Laje e que ligava este caminho ao das Queimadas, outra, um pouco mais acima e do lado oposto do caminho, proveniente do Cabeço da Rocha.
O Caminho seguia até à Escada Mar, sob a forma de mais uma pequena ladeira, no meio da qual se bifurcava uma outra canada que servia de acesso às hortas e terras de mato já ali existentes, ainda pertencentes ao lugar da Silveirinha mas já a misturarem-se com as suas congéneres do Pocestinho.
Finalmente a reta mais retilínea de todo este caminho a abrir as portas ao amplo e histórico lugar da Escada Mar e que se cuida que o nome terá tido a sua origem no antigo Escada do Amaro. Esta reta terminava no amplo descansadouro da Escada Mar. O caminho, então, seguia, agora plano, sem ladeiras, paralelo à Rocha até ao Pico Agudo. Mas era ali, no largo da Escada Mar que se iniciava um outro caminho, muito importante e de grande utilidade - o Caminho para o Pocestinho, ampliado e alargado na década de cinquenta.
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UM BONECO DE MASSA PARA SANTO AMARO
Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não se apercebessem da abalada e deu consigo quase tresloucada, no meio da rua, imersa numa madrugada ingente e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.
Era Maio e a noite estava muito escura e fria. Júlia cobriu os ombros quase nus com um xaile de lã grossa que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de tiros, prolongando-se por aqui e por além, ecoando nas rochas das Águas e das Covas, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante. Um temor imenso arrasava-a por completo. Mas persistiu.
Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do lado mar, aterrorizou-se mais e desatou numa correria louca, pela canada que dava para o Mimoio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes singelas a vedar os pequenos cerrados de milho, as compridas belgas de batata-doce e uma ou outra courela a abarrotar de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse ainda mais naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-a por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.
Desde há muito que Júlia e António se amavam, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitetando construir, dentro em breve, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam quando soubessem que ali havia muito amor, que havia uma grande paixão e que conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Talvez por isso é que ele tomara aquela abruta e radical decisão. Por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e, por isso mesmo, nunca haviam de autorizar aquele casamento, é que ele, o seu António, decidira partir, em busca da aventura, do sucesso, do necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia nunca concordara com aquela partida, para tão longe, para a América e naquelas terríveis e perigosíssimas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.
Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira, já quase no Mimoio, desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projéteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar contínuo das balas dos azougados artilheiros. A ordem, inequivocamente, era atirar a matar.
Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, do alto do Mimoio, no escuro da noite, apenas clarificada momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, aquele terrífico e dramático espetáculo. Apenas a certeza de que o seu António estava ali, misturada com a esperança de que havia de salvar-se. Nossa Senhora da Saúde havia de o ajudar e se ele salvasse prometeria um boneco de massa a Santo Amaro para o dia da sua festa, em janeiro próximo. E no meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma enorme réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim. Agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice, saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Outros seguiam-lhe o exemplo. Para desespero dos guardas, todos se salvaram. Pouco depois o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste.
O seu António estava salvo e Santo Amaro havia de ter um grande boneco de massa no dia da sua festa!
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O DANIEL DE TI BRITSA
O Daniel era considerado um dos mais simpáticos e inteligentes jovens da Fajã Grande na década de cinquenta. Para além de simples, humilde, educado e respeitador era muito trabalhador granjeando o respeito e a consideração de todos.
Filho de Tio Britsa, irmão da minha avó, morava numa das últimas casas da Fontinha, juntamente com os pais e os irmãos. Cedo, porém, como muitos outros jovens do seu tempo e da sua idade, abandonou a freguesia, primeiro por ser chamado para o serviço militar e depois emigrando para o Canadá. Mais tarde regressou de visita, à terra que o vira nascer. Apaixonou-se e casou com a Vitória do Francisco Inácio, uma das meninas mais bonitas da freguesia, também ela muito bondosa, educada, meiga, simpática e trabalhadora, fixando-se definitivamente no Canadá, mais concretamente na cidade de Edmonton, a capital da província de Alberta, onde vive atualmente.
Dele recebi, há dias, um texto intitulado “Recordando o passado da Mãe Terra, Fajã Grande” que aqui reproduzo:
“ Dezanove vezes fui à Terra Natal. Este verão de 2015 realizei mais uma. Tenho a certeza que foi a última. A minha mulher foi menos. Ela lá já não tem familiares. Apenas uma cunhada. O irmão e o sobrinho há muito que partiram. Eu lá ainda tenho vários familiares. Aqui tenho as minhas filhas que já visitaram a Fajã Grande várias vezes. Os netos um dia lá irão. A terra que me viu nascer e crescer é a mesma embora esteja, hoje, com vestes um pouco diferentes.
Oito décadas são passadas desde o dia em que entrei na escola pela primeira vez, juntamente com uma dezena de rapazes. Também eles entravam pela primeira vez. Hoje já lá não vive nenhum. Apenas encontrei um lá a passar férias como eu. Na escola, na altura, éramos mais de quarenta dos quais estarão vivos apenas uns três ou quatro, vivendo noutras partes do mundo. Os outros já partiram. Voltaram à Terra Mãe! A escola feminina, naquele ano teria mais de cinquenta meninas. A maioria destas também já partiram. Talvez estejam vivas meia dúzia. A Mãe Natureza tudo governa. Quando parti da Fajã Grande, em agosto passado, era o homem mais velho que lá estava. Logo a seguir o meu amigo José Fraga da Ponta, com 85 anos, mas que lá não estava. Também sou descendente e tenho origens na Cuada, lugar hoje conhecido em todo o mundo. O primeiro militar nascido na Cuada foi meu tio José Maria de Sousa, filho de José Maria de Sousa e de Maria José Teodósio. Terá assentado praça em Angra, em 1898 e lá esteve até 1922, altura em que emigrou para Nova Inglaterra, juntamente com a família, de onde nunca mais voltou. Foi primeiro-cabo, sempre trabalhando na cooperativa militar nunca manifestou aspirações em subir de posto, como fizeram outros colegas promovidos a capitães. Na mesma unidade esteve meu irmão entre 1951 e 1952. O segundo militar da Cuada foi o sargento Fragueiro Vasconcelos, nascido em 1907. Era filho de António Bettencourt Vasconcelos, natural da Graciosa, e de Maria do Céu Fragueiro, natural da Cuada. O terceiro militar da Cuada foi meu primo, Luís Maria Xavier, em 1946. Não sei se houve outros, posteriormente. Na Fajã não encontrei nenhum daqueles antigos atletas, homens que pensavam que sabiam quase tudo. Crentes em ideias primitivas! Partiram para sempre. Não eram como eu, mal conhecidos, na terra onde nasceram. Terminei a escola primária em 1941 e fui fazer o 2º exame às Lajes, juntamente com meu irmão. Até essa data, apenas meu primo, Pedro da Silveira, o fizera, com 10 anos. Apesar de na casa de meus pais existirem cinco filhos com diplomas da quarta classe, consideravam que era fácil obtê-los e quando saíamos portas fora consideravam-nos como tolos, talvez por não sabermos cantar ou contar histórias, etc. Hoje vivo aqui, nas Pradarias, na terra madrasta, longe daquela que não consigo esquecer. Neste grande país que percorri e todas as direções, nada me pertenço, exceto uma simples casa onde moro. Encontrei portugueses de todas as terras e de todas as ilhas açorianas e pessoas de todos os países da Europa e de todo o mundo. Todos emigrantes como eu! Todos éramos sempre marginalizados, como eu já o era na terra onde nasci. Mas tudo já vai longe e de tudo escapei. Afinal não encontro respostas para três perguntas. De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos? Alberto Einstein no século XX não explicou tudo. Agora, no século XXI, Stefhen Hawking já tentou completar e explicar tudo. Dizem que foi lucrativo para ele. O horizonte aproxima-se a largos passos, para mim, mas são as leis da Mãe Natureza. Assim é o nosso universo, para além do qual, dizem, existir algo mais. Afinal o mais importante é ter liberdade de pensar, de labutar, de seguir em frente, etc. etc. Vou terminar estas histórias simples pois a única coisa que sei é que nada sei.”
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O VIZINHO ATORMENTADO
Descendo a escadaria amarelada,
Uma vizinha impõe-se, em seu pijama,
Desdenhosa, elegante! Uma dama!
Uma brisa na fresca madrugada!
Da janela enviesada, ainda na cama,
O vizinho, bem preso à almofada,
Contempla esta visão imaculada,
Mais parecendo um sonho que um drama!
- Em pijama, na rua, a esta hora?
Lhe pergunta o magano atrevidote.
- Pois saiba que se assim ando na rua
É porque durmo na cama toda nua.
- Que marido sortudo. Mas que dote!
Ter a mulher despida a qualquer a hora!...
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AS BOQUEIRAS DAS VACAS
Na Fajã Grande, a palavra boqueira, na década de cinquenta, era utilizada para designar um conteúdo ou significado totalmente diferente do que refere aquela palavra, atualmente, ou seja, uma espécie de doença que consiste numa inflamação nos ângulos dos lábios dos humanos e que se apresenta como pequena lesão ou mancha avermelhada. Naqueles tempos, na mais ocidental freguesia açoriana, quiçá em muitas outras, chamava-se boqueira a uma espécie de focinheira ou açaime que era colocado nos focinhos das vacas quando estas puxavam o arado, a caliveira ou outro qualquer atrelado, tendo em vista impedir que o animal comesse as colheitas circundantes.
As boqueiras eram uma espécie de pequenas cestas mas com o fundo redondo e que na parte superior não tinham asa mas sim uns compridos e fortes cordões que permitiam que fossem amarradas à cabeça do animal, de forma a impedi-lo de movimentar os queixos e abrir a boca.
As boqueiras eram feitas, na maioria dos casos, de verga ou arame embora algumas, parcialmente, tivessem na sua constituição vimes ou outros troncos finos e maleáveis. Por sua vez os cordões que as prendiam à cabeça da rês eram feitos de corda ou de tiras de couro. Como eram objetos simples eram os próprios donos que as faziam. Começavam pelo fundo construindo uma estrutura com cinco ou seis arames ou vimes mais fortes. Depois entrelaçava-se nestes os arames finos como se estivesse a construir uma rede. Cuando se cuidava que a a fundura da boqueira já era suficiente, terminava-se a construção com um arame mais grosso e fortemente preso à estrutura inicial e que como que a firmava. Era nesta espécie de rebordo que se amarravam s cordões como o tamanho suficiente para que se pudessem amarar por de trás dos chifres dum bovino. Estava feita a boqueira, absolutamente necessária quando se corria a caliveira ou quando na terra que se lavrava existiam outras culturas. É que sendo a agricultura essencial ao sustento da população e sendo a mesma tantas vezes e com tanta frequência tacada e destruída por ventos, tempestades e salmouras havia que a proteger de todas as formas. As boqueiras eram pois uma forma de proteger os produtos agrícolas e as culturas.
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AS PROFECIAS DO BANDARRA
Em casa da minha avó Joaquina, na Fontinha, havia dois manuscritos muito interessantes. Ambos continham poemas, sob a forma de quadras, escritas em folhas de papel almaço. Um descrevia a fatídica morte do Rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, versos decorados por muitas pessoas que os musicalizavam. Recordo-me de ouvir meu pai cantá-los. O outro continha parte das célebres profecias do Bandarra, Gonçalo Anes de Bandarra, um célebre sapateiro nascido na vila de Trancoso, em 1500, onde viveu e onde faleceu, em 1556. Bandarra é considerado como o mais célebre e interessante profeta português, autor de trovas messiânicas que ficaram posteriormente ligadas ao sebastianismo e ao milenarismo português.
Aqui se recorda alguns destes versos:
Sonhei, que estava sonhando,
Que passados cem Janeiros
Os Portugueses primeiros
Se levantarão em bando.
Ergue se a aguia Imperial
Com os seus filhos ao rabo,
E com as unhas no cabo
Faz o ninho em Portugal.
Põe um A pernas acima,
Tira lhe a risca do meio,
E por de traz lha arrima,
Saberás quem te nomeio.
Tudo tenho na moleira
O passado, e o futuro,
E quem for homem maduro
Há-de me dar fé inteira.
Vejo sem abrir os olhos
Tanto ao longe como ao perto;
Virá do mundo encoberto
Quem mate da aguia os polhos
Lá para as partes do Norte
Vejo como por peneira
Levantar uma poeira
Que nos ameaça a morte.
Vosso grande Capitão,
Ó povo errado, e perverso,
Já caminha com o terço,
E vós dormindo no chão?
Na era que eu nomear
Terá fim a heresia;
Verás certa a Profecia,
Se bem souberes contar.
Poe[m] três tesouras abertas,
No fim um linhol direito,
Depois conta seis vezes cinco,
E mais um vai satisfeito.
Muito rijo bate o vento
Na parede da igreja;
Alguém caido a deseja,
No levantar vai o tento.
Rugia a porta do sino,
O sino não badalava,
A grimpa se revirava,
E o sino andava a pino.
Meto a sovela nas viras,
E vejo pelo buraco
Os ossos de Pedro Jaco
No penedo das mentiras.
Que belamente soam
As Profecias direitas!
Depois que forem perfeitas
Verão que a terra povoam.
Quando o sonho é verdadeiro
Dá se uma lei muito clara:
Sonho agora, que uma vara
Vai dando luz a um outeiro.
O outeiro é Portugal,
E a vara Castelhana;
Da minha pobre choupana.
Vejo esta vara Real.
Dará fruto em tudo santo,
Ninguém ousará a nega-lo,
O choro será regalo
E será gostoso o pranto.
Bem cuido, que já vem perto
O fim destas Profecias;
Passarão trezentos dias
Depois de eu ser descoberto.
Em dous sitios me achareis
Por desdita, ou por ventura,
Os ossos na sepultura,
E a alma nestes papeis.
Não há pedra sobre pedra,
Quando eu aqui for achado,
E as letrinhas do Letrado
Há trezentos anos queda.
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A LENDA DA LUA E DA ÁGUA
Segundo uma lenda muito antiga, que também se contava em tempos idos na Fajã Grande, quando Deus criou o mundo, decidiu também criar o Inferno, a fim de castigar os maus e os prevaricadores. Ao ausentar-se do Céu, deixou, sentado no seu trono o seu anjo de maior confiança, Lucifer, a fim de que O substituísse, provisoriamente. Quando Deus regressou, Lucifer recusou-se a sair do trono e dar o lugar a Deus, pois pretendia ser igual e superior a Ele, passando a governar o universo. Mas para não revelar os seus desejos invejosos e malévolos e a sua enorme ânsia de poder, dizia simplesmente que Deus, ao ausentar-se, lhe tinha dado o seu trono, pelo que dali não mais sairia.
Deus retorquia dizendo:
- O trono é meu. Apenas te pedi que nele te sentasses e do universo cuidasses enquanto me ausentei.
Mas Lucifer teimava em não sair do trono do Altíssimo. Perante a insistência de Deus, Lucifer decidiu por uma demanda contra Ele. Deus para se defender apresentou a Lua, a Água e o Sol como suas testemunhas, a fim de que comprovassem que apenas tinha emprestado e não dado o seu trono a Lúcifer. A Lua e a Água juraram falso, dando razão a Lucifer. Apenas o Sol jurou a verdade, dizendo ao Senhor Deus:
- O que é dado é dado, o que é vendido é vendido e o que é emprestado é emprestado. Portanto o trono é Vosso.
Foi então que Deus destronou Lúcifer enviando-o para sempre para o Inferno, transformando-se num anjo mau. Além disso, Deus também castigou os anjos amigos de Lucifer e que haviam jurado falso contra Ele, assim como castigou a Lua que era tão linda e tão brilhante como o Sol e também a Água que era limpa, pura e transparente. Os anjos maus foram atirados para o inferno, juntamente com Lúcifer, mas como Deus não podia enviar para lá nem a Lua nem a Água, pois ambas faziam falta ao mundo, simplesmente tirou os raios e o brilho da Lua para os dar ao Sol que assim se tornou ainda mais brilhante, e castigou a Água, obrigando-a a correr para sempre, sempre, sem nunca estar queda.
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CCOPERATIVAS AGRÍCOLAS
Hoje sabe-se, através de escritos e livros sobre o tema publicados que as primeiras tentativas de apoio aos agricultores e criadores de gado da ilha das Flores tiveram lugar na freguesia do Lajedo sob a égide do padre José Furtado Mota, na altura pároco daquela freguesia. Este movimento, pioneiro no arquipélago e no país, pelo menos na área dos lacticínios, teve como causa a drástica descida, na altura, do preço do leite à produção, imposta sobretudo a partir de 1912 pelos industriais das Flores. É então que surge a ideia da criação de um grande sindicato agrícola que, abrangendo toda a ilha, tivesse como objetivo o fabrico e exportação de lacticínios e a exportação de gado a liquidar em Lisboa por conta própria, o qual foi criado nos mais tarde, seguindo-se a formação de cooperativas de laticínios, uma das quais teve lugar na Fajã Grande., sendo o seu primeiro presidente tio Mateus Felizardo Os sucessos iniciais destas iniciativas foram claríssimos e os agricultores das Flores conseguiram colocar, pela primeira vez, os seus produtos em Lisboa, sem intermediários, a preços bastante remuneradores. Não foi fácil, porém, o caminho que conduziu ao estabelecimento das cooperativas, cuja progressão e sucesso, ao bulir com os interesses de alguns comerciantes e políticos locais, suscitou, da parte destes, violenta e impiedosa reação. Nas Flores, proibiram-se, então, reuniões aos cooperativistas, mandou-se a tropa fiscalizar outras, fizeram-se ameaças e esperas em caminhos mal frequentados, recusaram-se arrendamentos de terras aos associados e renunciaram-se outros contratos, chegando as autoridades locais a proibirem a exportação para Lisboa da manteiga das cooperativas, as quais chegaram a ter em armazém grandes quantidades de manteiga, correndo o risco de se estragar, dado na altura ainda não existirem câmaras
Mas o grande ataque às cooperativas e que havia de provocar a sua morte foi obra da firma Martins e Rebelo. Ao instalar-se na Fajã Grande e, provavelmente noutras freguesias, começou a pagar o leite a um preço ligeiramente superior ao das cooperativas. Os sócios, assim ludibriados foram-nas abandonando e elas ruíram até à sua destruição total,
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COMBATE À POBREZA
“Se a sociedade açoriana não começar a agir com determinação no combate à pobreza e à exclusão social, os homens de amanhã interrogar-se-ão, certamente, sobre como foi possível que, numa sociedade de abundância como é a nossa, se mantivesse a escalada de exclusão que, hoje, se vive, sem que o grosso da sociedade se envolvesse, com determinação, no combate a este flagelo.”
Weber Machado
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MINHA AVÓ DE LÁ DE RIBA
Minha avó de lá de riba,
Tem uma tábua na barriga,
Quando chove toca nela,
Passa cão, vem cá cadela.
Aravia popular fajãgrandense.
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O SACO DAS NOZES
Conta-se que tendo falecido o pároco de uma freguesia, foi nomeado um novo que pretendia renovar os costumes dos fiéis, corrigindo-lhe os defeitos, retirando-lhe os vícios, ensinando-os a viver segundo a doutrina de Cristo e os mandamentos da Santa Madre Igreja. Para isso começou o reverendo a orientar as suas homilias e os seus sermões no sentido de conseguir os seus objetivos, anunciando as virtudes, repreendendo os maus costumes do povo.
Certo domingo, num sermão, do alto do púlpito disse:
- Consta-me que cá na nossa freguesia existe um costume muito mau, contrário aos ensinamentos de Jesus. São os homens que obedecerem às mulheres, quando, de acordo com o que está escrito na Sagrada Escritura, deviam ser as mulheres a obedecer em tudo às ordens dos seus maridos. Isto é tão verdade que até o povo, na sua sabedoria simples mas verdadeira, diz que em casa de Gonçalo manda a galinha mais do que o galo. – E prosseguiu. - Ora eu tive este ano muitas nozes na minha quinta e declaro-vos diante de Deus que darei um saco cheio delas ao homem desta freguesia que me demostrar que não anda ao mandado da sua mulher e que a sua casa não é como a do Gonçalo. Depois da missa quem achar na sua consciência que na sua casa não existe este mau costume, traga um saco e vá a minha casa buscar as nozes.
Estava na igreja a ouvir o sermão um homem casado que era muito abrutalhado, que tratava a mulher de muito mau modo e que tinha fama de gabarola. Ao ouvir o prebendado, esfregando as mãos de contente, disse para um que estava ao seu lado:
- As nozes do padre já cá cantam. Ninguém cá na freguesia me as tira, pois em minha casa mando eu e ninguém nesta freguesia se pode gabar disto como eu. Tenho nozes para o ano todo.
No domingo seguinte, no fim da missa, trazendo um saco apresentou-se em casa do pároco, dizendo:
- Cá estou, senhor padre! Não há mais ninguém cá pela freguesia que se possa gabar como eu de poder dizer que a sua casa não é como a de Gonçalo. Em minha casa mando eu, por isso venha cá buscar as nozes que o senhor prometeu no domingo passado.
- Muito bem, – disse o pároco. - Eu bem sei o teu viver. E pelo que me têm dito, és tu que mandas lá em casa. Sendo assim levas as nozes. Dá-me o saco para que o encha.
O homem, muito desembaraçado, entregou o saco que trazia ao ombro para encher as nozes. Com ar atrevidote diz-lhe o pároco:
- Ó homem, trazes um saco tão pequeno?! Não tinhas lá em casa um saco maior?
- Tinha, sim senhor. – Retorquiu o homem, prontamente.
- Então porque não trouxeste um saco bem grande? – Continuou o abade escondendo a malícia.
- Ó senhor, eu trazia um saco bem grande. Mas ao pegar nele a minha mulher começou a dizer que era uma vergonha trazer um saco daqueles. E olhe, o senhor. Tanto teimou e tanto porfiou que me obrigou a trazer este mais maneirinho…
- Ah, seu grande tratante! - Gritou o pároco. - Despeja já essas nozes, que daqui não levas nada. Põe-te já no olho da rua e vê se não continuas a deixar que seja tua mulher a mandar em ti.
O homem foi-se embora muito atrapalhado, por lhe ter fugido a língua para a verdade.
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O PORCO E O AMIGO
“Quem não mata porco não cria amigo.”
A julgar pela importância que tinha, antigamente, na Fajã Grande a criação e, sobretudo, a matança do porco, este parece, na verdade, ser um adágio muito provavelmente típico desta freguesia. Na verdade, na década de cinquenta a matança do porco, depois do casamento dos filhos, constituía a maior festa realizada em casa de cada família para a qual se convidavam pessoas de fora: parentes e amigos. Assim ser convidado por alguém para a sua matança era sinal de amizade e tinha mais amigos quem mais pessoas convidava para a matança. Nas semanas antes do Natal ou do Ano Novo, chegava a altura da matança, a qual começava a ser preparada com alguns dias de antecedência, porque era preciso procurar, apanhar no mato as queirós, que iriam ser utilizadas para a chamusca, cortar, serrar e picar a lenha parra derreter o toucinho e afoguear as linguiças e ainda ceifar os fetos e a cana roca para secar o curral e lá se poder entrar no fia da matança para se apanhar o suíno sem grandes riscos de se enterrar até à cintura numa estrumeira. Depois faziam-se os convites aos familiares e aos amigos e preparava-se tudo o resto. Alguns, por vezes, faziam-se ao convite. Ficavam amigos, amigos de matança.
Mas este adágio também era utilizado em sentido figurado a querer significar que a amizade naqueles tempos, em muitos casos, era interesseira e só se era amigo de quem nos presenteasse com alguma coisa de bom, como era o caso de um convite para a matança. Atitude condenável, como o adágio indica sub-repticiamente. Na verdade, como já dizia o filósofo grego Platão, a amizade deve ser uma predisposição recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro. Na verdade a amizade que se restringe a um simples convite para uma matança ou outra dádiva passageira embora agradável e desejada, não pode ser verdadeira. Parece ser isto que o povo da Fajã Grande, na sua verdadeira e simples sabedoria, queria lembrar ao utilizar este interessante adágio
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O ARREGANHADO
Uma das estórias cómicas que se contava antigamente na Fajã Grande era a do Arreganhado. Rezava assim:
Era uma vez uma viúva que velando o seu marido morto, deitado dentro de um caixão, sobre a essa, lamentava-se assim:
- Ai, mei home, que desgraçada qu’ei sou porque morreste com Prazer e Alegria e me levas a minha Consolação entre as pernas. Ai Jasus! Que desgraçada qu’ei fique que já nan tenhe quen me sacuda u mei arreganhade!
Mas para que não houvesse interpretações maliciosas e desonestas vinha logo a explicação: Afinal a pobre viúva chorava e tinha toda a razão para fazer aquele pranto. Naquele tempo a pobreza era muita e quando falecia mais do que uma pessoa numa casa, para poupar dinheiro, sepultavam-se todas no mesmo caixão. Ora a pobre mulher perdera o marido e as três criancinhas que tinha no mesmo dia. As crianças eram três meninas. Uma chamava-se Prazer, outra Alegria e a terceira Consolação. A mulher mandara colocar as duas maiores, a Prazer e a Alegria, uma de cada lado do marido. A Consolação, por ser mais pequenina, foi-lhe colocada entre as pernas. E como na ilha das Flores era costume chamar arreganhado ao castanheiro, porque os ouriços ao caírem abrem-se, como que a rir-se ou arreganhados a fim de porem as castanhas à mostra, a parte final da estória está explicada. É que a pobre viúva também se lamentava por já não ter o marido para lhe sacudir o castanheiro, a fim de que os ouriços caíssem e deles retirasse as castanhas.
Ele há cada interpretação maliciosa!
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EU FUI AO MAR ÀS LARANJAS
Eu fui ao mar às laranjas
Coisa que lá não havia
Vim de lá toda molhada
Co'as ondas que o mar fazia
Ó minha mãe, minha mãe
Ó minha mãe, minha amada
Quem tem uma mãe tem tudo
Quem não tem mãe não tem nada
Eu fui ao mar às laranjas...
Ó estrela que vais tão alta
Por essas serras d'além
Leva-me aos céus onde tenho
A alma de minha mãe.
Fui no mar da vida um dia,
Fui buscar amor também.
O amor que eu queria,
Ai, meu deus, no mar não tem!
Nas ondas fui embalada
Até que à praia voltei
Sozinha, triste e molhada
Das lágrimas que chorei!
Fajã Grande - Cancioneiro Popular
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O VINHO DERRAMADO
Conta-se que havia numa determinada terra um fidalgo tão pobre, que dispunha apenas de duas pequenas moedas para comprar diariamente o seu alimento.
Uma certa manhã, ao verificar que só tinha em casa um pão, decidiu comprar um pouco de vinho com uma das moedas. Foi à taberna mais próxima e pediu vinho.
O taberneiro, que era um homem grosseiro e desagradável, serviu-lhe de má vontade um copo de vinho, colocando-o na mesa tão bruscamente, que derramou quase metade. Em vez de desculpar-se, disse com insolência:
- O senhor está com sorte. O vinho derramado significa alegria e riqueza.
O fidalgo não protestou, mas cuidando que o taberneiro recebera dinheiro a mais do que o valor do vinho que bebera, uma vez que pagara um copo cheio e só bebera meio, pediu que lhe trouxesse um pedaço de queijo, no valor do meio copo derramado pelo taberneiro. O homem recusou, mas apanhou a moeda bruscamente e foi ao andar de cima a fim de a guardar.
Enquanto isso o fidalgo levantou-se, abriu a torneira do tonel de vinho e deixou que ele escoasse, formando um enorme lago vermelho no meio da taberna.
Quando o taberneiro voltou e viu o que acontecera, avançou furiosamente sobre o fidalgo. Este defendendo-se, atirou-o contra o tonel, que caiu ao chão junto com seu dono, entornando o que restava do vinho ali guardado.
Acudiram vizinhos e soldados, separaram os contendores, levando-os à presença do rei, a fim de que os julgasse e castigasse. O taberneiro falou primeiro e pediu uma indenização. Mas antes de dar a sentença, o rei quis ouvir também o fidalgo, que narrou o sucedido com toda a veracidade, e acrescentou:
- Majestade, este homem, quando entornou a metade do vinho que me vendera, disse-me que isso era sorte minha, pois vinho derramado significa alegria e riqueza. Pensei então que, se eu me tornaria rico por ter derramado só meio copo de vinho, o bom taberneiro se tornaria muito mais rico e feliz se derramasse meio tonel. Assim, cheio de reconhecimento e gratidão, resolvi abrir a torneira do tonel, e o resto já Vossa Majestade conhece.
O rei e toda e todos os membros da corte presentes riram com a engenhosa justificativa, e o fidalgo foi absolvido sem pagar a pretendida indenização.
Fonte de Inspiração - Net
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PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (XIX)
Abaixar a crista – Acalmar-se. (Expressão usada pelos adultos quando as crianças os contrariavam ou se revoltavam).
Abrir – Lavrar um terreno pela primeira vez, com arado de ferro.
Advertir-se – Divertir-se.
Agrião d’água – Agrião que nasce nas lagoas, junto com a erva.
Água pela borda – Embarcação muito cheia. Pessoa mui carregada.
Aguilhada – Vara comprida e rija com que se incentivava os animais a andar quando encangados.
Alambuzar – Comer com as mãos e sujar-se.
Alheta – Persilha que prende o cinto das calças.
Amaricado – Efeminado.
Amerca de Baixo – Costa leste dos Estados Unidos.
Apastrar tintilhões – afastar os tentilhões das colheitas.
Aprumado – Com boa aparência. Educado.
Arco da Aliança ou Arco-da-Velha – Arco-Íris. (Na Fajã grande, outrora, dizia-se quando o Arco da Aliança aparecesse de pernas para o ar seria o fim do mundo.)
Arionó – Do inglês “Are you know?” (nome próprio).
Arriba – Para cima.
Arrochos – Dois pequenos pedaços de pau devidamente preparados e adequados para apertar o cabo que segurava uma carrada de lenha, fetos, incensos, melheirós, rama, erva, etc. Um deles era direito e pontiagudo numa das extremidades, a fim de ser espetado na carga, junto ao cabo. O outo, por sua vez, era um pouco mais curto e torto ou arqueado. Enrolado no cabo, ia girando à volta do primeiro, de maneira que o cabo se fosse enrolando e, consequentemente diminuindo de tamanho e apertando a carga. Ambos os arrochos eram furados numa das extremidades, no caso do direito na extremidade que não era pontiaguda, sendo presos uma ao outro com uma corda.
Atarrachar – Aparafusar.
Atracar – Encostar uma embarcação ao cais.
Azougue – Magnetismo.
Babo – Inchaço resultante a picada de um inseto ou outro.
Baganha – Parafuso de dar corda e acertar o relógio de pulso.
Balbúrdio – Grande quantidade (geralmente de dinheiro). Balúrdio.
Batelameiro – Bartolomeu (nome próprio)
Bicha cadela – Bicha que se enrosca de cor negra.
Boca-aberta – Pessoa muito demorada em realizar uma tarefa.
Boi da junta – Homem que exagera no seu comportamento sexual.
Boquinha da noite – Anoitecer.
Brocha – Trincha.
Bunzinho – Com noa saúde.
Cara de cu – Pessoa feia. Pessoa má.
Deixar da mão pra fora – Terminar.
Foles – Parte superior das calças, larga e desajeitada.
Lajone – Nome próprio.
Nó boline – tipo de nó muito seguro.
Olho da batata – Rebento das batatas.
Papujão – Indivíduo que fala mal.
Passar fome de rabo – Passar muita fome.
Pegado no sono – Adormecer facilmente.
Pegar na fala – Gaguejar.
Pessoa de remate – Pessoa de confiança.
Pisadela – Pequena lesão sem ferida.
Pulso desmanchado – Entorse no pulso.
Quando o Chico vier da areia. – Nunca.
Quebradura – Hérnia.
Recebedoria – Tesouraria da Fazenda Pública
Relampo – Relâmpago.
Retalhar – Cortar as batatas para a semente, deixando um rebento em cada uma
Sante nome de Jasus – Admiração, espanto.
Sarnalha – Tipo de erva.
Solvo – Sorvo.
Talhada – Posta de carne ou de toucinho
Tralhouco – Tonto.
Ter vagar – Ter tempo.
Toleira ou toliça – Tolice.
Tomar Nosso Senhor – Comungar.
Troca – Soro do leite depois de desnatado.
Uma vez na vida outra na morte – De vez em quando.
Valada – Pequena grota entre os tapumes de hortênsias que separavam as relvas do
Ver estrelas ao meio dia – Ficar atordoado.
Vieiro – Carne entremeada no toucinho do porco.
Zé-da-Véstia – Homem desajeitado.
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À PORTA DAS ALMAS SANTAS
À porta das almas santas,
Bate Jesus toda a hora.
Respondeu as almas santas:
- Meu Jesus, que quereis agora.
- Quero que vão comigo,
Para o Paraíso cantar.
- Muito me pese, Senhor,
E me dá grande pesar,
Se a minha alma não está limpa
Para convosco caminhar.
Caminharam as três Marias,
Numa noite de luar
Em cata do Bom Jesus
E não O puderam achar.
Foram-no achar em Roma,
Vestido ao pé do altar:
- Menino tão pequenino,
Missa nova queres cantar?
Eu também a quero ouvir,
P’ra minha alma se salvar.
Popular Fajã Grande.
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BERNARDO MACIEL
Manuel Bernardo Maciel, nasceu em São João do Pico e estudou no seminário de Angra do Heroísmo onde foi ordenado em 1896. No ano seguinte, foi colocado na paróquia de Santo Antão do Topo, ilha de S. Jorge, onde permaneceu até 1914, destacando-se como orador sacro e cantor. Então, ou porque decidiu ingressar num convento ou porque desejou apenas viajar, em Maio daquele ano, embarcou na Horta, com destino a Lisboa, de onde seguiu para França e Itália. Surpreendido pelas hostilidades da I Guerra Mundial, regressou ao Pico, em 1916, via Estados Unidos da América, onde entretanto viveu em Fall River e New Bedford, Massachusetts. Ainda voltou a Santo Antão, a pedido dos paroquianos que o surpreenderam com a edição de duas das suas obras Versos da Mocidade e Livro d’alma. Porém a sua saúde debilitada obrigou-o a regressar a São João do Pico, sendo recolhido pela sua família e onde veio a falecer em 1917.
A sua obra, considerada por Cortes-Rodrigues lírica genuína, de características ultra-românticas, embora às vezes com laivos de simbolismo e por Pedro da Silveira como tangencialmente simbolista, embora sem o jargon da escola, é marcada pela tensão existencial. Peixoto relaciona essa marca com «o drama da sua vida», o seu «drama íntimo», «a prisão terrena em que decorreu o sacerdócio que não constituiu vocação» e acrescenta, ter a sua obra ficado quase toda inédita como modo de evitar susceptibilidades. Autodidacta, possuidor de cultura vasta, aprendeu inglês para ler Milton e Shakespeare e alemão para entender Kant e Goethe.
Obras principais: Versos da Mocidade, De Longe, Coisas Íntimas, Monja, Livro d’alma. Visões Sagradas, Envelhecer e Às Crianças.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A RAPARIGA DAS LARANJAS
Conta-se que antigamente havia uma rapariga que vivia no mato, distante do casario e afastada das outras pessoas que viviam no povoado, à beira mar. No meio do silêncio, perdida na solidão, imersa numa enorme tristeza, emaranhada em sonhos e dominada pelo temor e nos sonhos, a jovem passava o tempo à espera de um dia reencontrar o seu príncipe encantado, que as adversidades da vida haviam levado para longe.
Mas o destino compadeceu-se dela e levou-a a encontrar uma feiticeira, a qual, com a sua sabedoria e simpatia, conseguiu arrancá-la do marasmo em que jazia e levá-la para outro lugar, menos tenebroso e mais bonito e luminoso, onde a jovem poderia recomeçar a sua vida, sendo de novo alegre e feliz.
Depois de ser libertada a jovem percebeu que nenhuma das portas que a assombravam, que a rodeavam e que julgara fechadas para sempre, tinham qualquer fechadura. As portas abriam-se a fim de que ela renascesse e recomeçasse a sua vida.
Muito feliz e desejosa de viver como as outras pessoas, começou a deambular pelos caminhos que se encontravam por detrás das portas, até que ao chegar-se a uma dessas portas encontrou caída no chão uma bela laranja coberta de ouro. Admirada, juntou a laranja para não mais a largar. Desde esse dia em diante, a rapariga nunca mais parou de procurar o laranjal indicado pela feiticeira, a qual lhe revelara existir, na verdade, um esplêndido laranjal, no local de onde teria vindo a bela e valiosa laranja que encontrara.
A jovem passou a chamar-se Rapariga das Laranjas e, desde esse dia, deu início a um longo caminho na tentativa de encontrar o laranjal, que era tido por ser o mais sublime e paradisíaco lugar que alguma vez imaginara ou sonhara encontrar. Quando finalmente o encontrou, sentiu-se livre e segura, porque da laranja de ouro que conservara na mão emanou uma luz que lhe permitiu ver a presença subtil do seu amado príncipe que há muito se ausentara. Foi assim que a jovem pode de novo voltar a acreditar no amor.
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A VELHA E AS GALINHAS
Era uma vez uma velha muito pobre que vivia na companhia de seis filhas, todas elas solteiras. As raparigas bem desejavam casar, mas era de todo impossível. É que sendo a mãe muito pobre não tinha dinheiro nem para as bodas nem, muito menos, para os dotes. Essa a razão por que as moças andavam muito tristes e revoltadas. Mas mais ainda se indignaram quando se aperceberam de que a sua velha mãe passava os dias sentada à janela simplesmente a bisbilhotar e a saber da vida de uns e de outros.
Certo dia perguntaram-lhe:
- O que é que a mãe faz aí sentada à janela todos os dias?
- Deixem-se lá, filhas da minha alma, que é da janela que vos hei-de casar.
As filhas não entenderam mas cuidando que nada podiam fazer deixaram que a mãe continuasse a sentar-se à janela de manhã à noite.
Passado tempo a velha disse às filhas que ia ao palácio real, falar com a rainha. As filhas bem a tentaram impedir. Mas os seus esforços foram vãos e a velha lá partiu com destino ao palácio do rei.
Ao chegar lá pediu para ser recebida pela rainha. Quando esta lhe perguntou o que pretendia, a velha respondeu:
- Venho aqui saber se Vossa Majestade quer mandar ensinar algumas das suas galinhas a falar? Eu própria as ensinarei se Vossa Majestade assim quiser.
- Quero, quero. – Disse a rainha. - Há-de ter sua graça! Galinhas a falarem…
E, de imediato, mandou entregar à velha uma dúzia das melhores galinhas que havia no palácio. A velha foi para casa. Nos dias seguintes bem se regalaram ela e as filhas a comerem as galinhas, cozidas, assadas e fritas Quando se acabaram os lautos manjares, a velha voltou ao palácio, e disse à rainha:
- Saiba Vossa Majestade que tenho um desgosto de morte…
- Então por quê? – Perguntou a rainha.
- Saiba Vossa Majestade que depois de muitos dias de trabalho e de muita persistência as galinhas já estavam a falar tão bem, que hoje tencionava vir entrega-las a Vossa Majestade. Quando as estava ajuntando e ao dizer que haviam de voltar para junto de sua dona, elas começaram uma estranha cantarolada: “Có-co-ro-có, cá-ca-ra-cá. A nossa Rainha andou a dormir com o Visconde da Estrebuela! A nossa rainha anda a por os cornos no rei”. Eu grandes esforços fiz para as calar, mas as malditas não se calavam e disseram-me que do seu poleiro bem viram, muitas vezes, o Visconde entrar às escondidas pelas traseiras do palácio. Eu desesperada fechei-as no poleiro, e venho saber se Vossa Majestade quer que lhas traga para o palácio.
A rainha ficou desesperadíssima e deu-lhe ordens para que fosse logo para casa e que as matasse todas, sem ficar nenhuma, e que não queria mais galinhas que falassem. E deu-lhe muito dinheiro, para que ela se calasse bem calada e não dissesse a ninguém o que tinha ouvido das malditas galinhas. Muito aflita ainda lhe disse que quando ela tivesse alguma necessidade viesse ao palácio falar com ela, que a ajudaria.
Foi assim que a velha conseguiu arranjar dinheiro para casar as suas filhas, às quais a rainha deu muitos bons dotes.
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POR NADA
(POEMA DE RESENDE VENTURA)
No momento em que nada
O silêncio tenha a dizer-te,
Chora.
Chora em silêncio e por nada,
No só de dar vida ao silêncio que esconda
Uma lágrima inútil.
Resendes Ventura
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ÌNGREME
Estafado, exausto, a verter suores por todos os poros, vermelho que bem um pero, o pároco, na companhia do Gervásio, subia a Ladeira do Covão, a mais desnivelada e a mais abrupta ladeira de todas as que possuíam os sinuosos caminhos da Fajã Grande. Situada logo a seguir ao Cimo da Assomada, plantada a este do Vale da Vaca, nos contrafortes do Covão, ligava o antigo caminho da Cuada, das hortas e dos Lavadouros com a Canada do Covão, ou seja com a penhascosa e escarpada vereda de acesso à Pedra d’Água e ao Outeiro Grande.
Acompanhava o reverendo, o Gervásio, muito leste e apressado. Iam ver uma terra de mato lá para os lados do Pocestinho, mas a confrontar com o Outeiro Grande. Por ali, na opinião do Gervásio era bem mais perto. Encurtava-se caminho. Tratava-se de uma pequena propriedade, deixada à igreja por uma benemérita recentemente falecida. O Gervásio com uma relva ali ao lado era quem melhor a delineava, uma vez que grande parta da divisória que a separava de outras propriedades ao redor e cujos proprietários se haviam ausentado para a América, era constituída por malhões. Mas a maioria destes estavam encobertos entre fetos e cana roca que ali cresciam à bruta. Só o Gervásio conhecia aqueles contornos.
A meio da ladeira, o pároco cada vez mais atafulhado em suores, com o lenço de bolso já totalmente encharcado, maldizia a sua sorte e recriminava o Gervásio:
- Não devíamos ter vindo por aqui. Esta ladeira é muito íngreme.
- Não é nam, snhô padre. O snhô está é bem engade! Ela é ´mum inclinada! – Esclarecia o Gervásio muito orgulhoso da sua sabedoria.
- Ó grande paspalho! É ingreme. Não vês que esta ladeira é muito íngreme.
- É inclinada, snhô padre. Ei conheça bem. Passaqui todesos dias!
- Mas é íngreme, paspalho. – E soletrava – Ín-gre-me… - Uma, duas, três vezes
E a discussão prolongou-se até ao alto sem se entenderem ou chegarem a acordo. E o Gervásio tão convencido de que a razão estava do seu lado, que alguns dias depois à Praça, ainda rezingava, glorioso:
- O snhô padre diz ca Ladeira du Quevão é ingreme, mas nã tem razão niuma. Ela é é ben inclinada quele até se cagou tode prá subir…
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A QUEDA DOS DEUSES
“Os deuses que sonhámos quando moços
E adorámos, de joelhos, como quem
Deles espera, ansioso, todo o bem,
Caíram do altar e são destroços.”
Diniz da Luz
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O MORRO ALTO
O Morro Alto é um dos lugares mais emblemáticos da ilha das Flores. Por um lado é o ponto mais alto da ilha, tendo mais de novecentos metros de altitude e, por outro, do seu cimo obtêm-se uma belíssima vista panorâmica de toda a ilha, nomeadamente sobre lagoas e vales verdejantes, onde correm pequenas ribeiras, e sobre as localidades de Ponta Delgada, Fajã Grande e Fajãzinha. Como em tempos idos se costumava dizer, de lá vê-se mar à volta de toda a ilha. Trata-se de um acidente geológico, o mais proeminente relevo da maior ilha do grupo ocidental açoriano e tem o seu ponto mais elevado a 914 metros acima do nível do mar. Atualmente integra a Zona Especial de Conservação da Zona Central-Morro Alto. Nas suas proximidades encontra-se o Pico da Burrinha, a Testa da Igreja e o Pico dos Sete Pés. Nos planaltos que o rodeiam, do lado da Fajã Grande, as Pontas Brancas, a Burrinha, a Água Branca e o Rochão Grande. Ao lado as lagoas Funda, Comprida, Seca, da Água Branca e ainda o serpentear da Ribeira Grande e de muitos outros veios de água. O Morro Alto como que se transformou assim num belo miradouro pertencente ao concelho das Lajes das Flores, no enfiamento do de Santa Cruz e na fronteira da Fajã Grande com a freguesia de Santa Cruz, dentro de uma área classificada como paisagem protegida pela sua variada biodiversidade.
O Morro Alto é o ponto mais alto da ilha, no seu topo observa-se o processo traquítico representado pelo Pico da Sé, formando um imponente aparelho vulcânico encaixado entre dois profundos vales de erosão, cavados pelas Ribeiras da Badanela e da Fazenda.
O clima atlântico húmido funciona como um modelador ecológico originando a “zona dos nevoeiros” com ventos muito fortes e elevada pluviometria, promovendo o aparecimento de turfeiras, no local onde predomina o cedro-do-mato o que dá a esta zona alta uma fisionomia peculiar e distinta do resto da ilha. O miradouro ali situado fica a grande altitude e debruça-se a partir do Morro Alto sobre uma paisagem de vegetação endémica bastante variada, com extensos maciços de florestas de Laurisilva características da Macaronésia sendo por isso um local classificado de paisagem protegida. A altitude permite uma vista abrangente de grande parte da ilha das Flores e do mar que a rodeia.
Outrora o Morro Alto era passagem obrigatória de quem se deslocava da Fajã Grande para os Cedros, quer em negócios, em visita de amigos ou pela festa de São Roque. Da mesma forma calcorreavam o Morro Alto os homens da Fajã que em dia de Fio se deslocavam pela Burrinha e Água Branca para juntar as ovelhas dispersas naquelas longínquas paragens. De resto um deserto permanente. Hoje um local de grande interesse turístico.