PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
AS ROUPAS
Muita da roupa que se vestia na Fajã Grande, na década de cinquenta, vinha da América. Carvalho após Carvalho, chegavam às mãos de quem tinha familiares e parentes nos States os famosos avisos amarelos, trazidos pela Maleira. Quem os recebia abalava, todo contente, na madrugada seguinte para as Lajes, a pé, atravessando os matos da ilha de lés-a-lés. Por vezes eram ranchos que, a meia tarde, chegavam de regresso à Fajã, carregados com as tão desejadas encomendas. A abertura das ditas cujas era uma festa a que se seguia a distribuição dos trapinhos a quem serviam ou a quem ficavam melhor.
Era esta a razão por que na Fajã Grande praticamente não havia um traje tradicional. Vestia-se, regra geral, o que vinha da América. Mas não chegava e por isso muitas vezes era necessário costurar a própria roupa, encomendá-la a uma costureira ou ir comprá-la à vila.
As mulheres, naqueles tempos, nunca usavam calças. Usá-las seria sujeitar-se ao difamatório. De semana cada qual vestia segundo as suas possibilidades e o que tinham de mais velho ou usado. O melhor guardava-se para o domingo. De semana a roupa de trazer, era constituída, geralmente, por saias, blusas, soeras e um lenço de panino ou chita, que cobria a cabeça, atando-o por debaixo do maxilar inferior. As mais novas andavam em cabelo, prendendo-o com ganchos e fitas. O xaile era usado pelas mulheres mais velhas, sobretudo pelas viúvas. Curiosamente a forma de trajá-lo dependia do estado da portadora. As viúvas e as mulheres que estavam de luto traziam-no dobrado em triângulo e sem cadilhos, para maior simplicidade, fazendo-o cair em ponta, ao longo das costas. Por sua vez as solteiras ou casadas, dobravam-no, de forma a assemelhar-se a uma manta. As raparigas, aos domingos, vestiam um casaco, um buler ou uma soera, geralmente de abotoar e, ao entrar na igreja, eram obrigadas a cobrir a cabeça com um mantinho ou com um lenço. Aos domingos calçavam sapatos altos e meias de vidro. As mais abastadas traziam a chamada saia-de-balão e a sai plissada. Algumas senhoras mais ricas vestiam casaco e usavam sombrinha, mas a maioria usavam o xaile e cobriam a cabeça com o lenço de merino
As cores preferidas na indumentária feminina variavam com o estado de solteira, casada ou viúva. Estas vestiam de preto até morrer ou até contraírem novas núpcias, as solteiras de cores vivas e claras, as casadas de cores mais modernas, modestas e escuras. Quando morria um familiar, por vezes, as raparigas não tendo roupas pretas tingiam de negro alguma da que possuíam a fim de a usar durante o tempo estipulado, de acordo com o grau de parentesco. Esta operação fazia-se metendo a roupa que se pretendia tingir num caldeirão com água a ferver onde se havia misturado uma tinta própria para o efeito. As próprias crianças também se vestiam de negro. Como objectos de adorno, traziam, ao pescoço fio de carolinas, colares e fios om uma pequena cruz. Presos na roupa usavam broches, prisões e ganchos no cabelo e pulseiras. Raras as raparigas e mulheres que possuíam e usavam relógio. Além disso não era de bom tom usar relógio e andar descalço. O anel de prata, ouro ou coral constituiu o mais apreciado objecto de luxo da mulher, que o trazia não só como adorno mas ainda como distintivo do seu estado. As solteiras traziam-no nos dedos indicadores e médio, as casadas, no anelar da mão esquerda.
Quanto às crianças, as meninas vestiam de modo semelhante às raparigas, enquanto os meninos usavam calça curta. Uns e outros, geralmente, andavam descalço, com excepão dos doentes e os filhos de gente rica.
Os homens também tinham o fato de ver a Deus, isto é, a roupa melhor e roupa de trazer. O primeiro consistia numas calças e casaco ou camurça. Muitos usavam chapéu de lona ao domingo. A maioria usava o boné. Um ou outro, boina. Assim como a das mulheres quase toda esta roupa dos homens vinha da América, nomeadamente as calças de angrin, as frocas e os alvarozes, calças largas, também eles de angrin, com suspensórios e peito, vestidos por cima duma camisola de lã. De toda a cobertura da cabeça, porém, a mais usada, por homens e mulheres, durante os trabalhos agrícolas era o chapéu, feito com palha de trigo entrançada, fabricado na freguesia. Eram geralmente as mulheres que os faziam, ornando-os com uma fita no sítio em que a parte de enfiar na cabeça se ligava à aba. Os chapéus das mulheres tinham grandes abas e por vezes eram colocados na cabeça, por cima do lenço.
O povo da Fajã Grande, na década de cinquenta, andava, em regra descalço. Segundo o seu modo de pensar, a cobertura dos pés era considerada um luxo escusado e dispendioso que a poucos se podiam dar. Muitas vezes até era pouco prático, sobretudo na travessia de grotas e ribeiras, e no trânsito por caminhos, canadas e atalhos cheios de pedregulhos e calhaus. Somente os velhos e doentes andavam calçados. A maioria dos sapatos vinha da América. Os sapatos vendidos nas lojas da Fajã eram os de pele-de-cabra e as botas de injaroba, usadas sobretudo para ceifar erva nas lagoas e tirar o esterco dos palheiros. Muitos homens usavam os tamancos e as mulheres galochas. Tanto aqueles como estas eram fabricados na freguesia e tinham sola de madeira com cobertura de couro, pregado à madeira com tachas. Os homens novos e saudáveis, mesmo ao domingo, andavam descalços e dizia-se que alguns houve que, durante a vida, apenas se haviam calçado por três vezes: no dia da primeira comunhão, no dia do embarque para o castelo e no dia do casamento. Contava-se até que certo homem de tanto andar a pé e ter os pés grandes, ao ir para a tropa, não havia botas que lhe servissem, elo que teve que andar sempre descalço.