PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O MILHO DA FONTINHA
Naquele ano, meu pai encheu de milho uma terra que tinha na Fontinha, em frente à casa de Tio José Teodósio, junto a um fontanário que ali existia. O terreno era muito fértil, produtivo, fora bem estrumado e o ano bom de milho. A Fontinha produziu milho como nunca. Maçarocas enormes, robustas, admiravelmente suculentas, admiradas e elogiadas por quantos ali passavam e olhavam por cima das paredes.
Perante tão desabitual abundância, que em anos anteriores meu pai nunca enchia aquela terra de milho, meu tio Luís logo se disponibilizou para acarretar tão exuberante colheita para casa, de carro. Criara uns bezerros, agora gueixo e gueixa, fortes e possantes, bons para a canga. Ele um belo modelo de bovino, quase todo branco, manso, robusto, filho da Mimosa, a puxar pela direita e a quem alcunhara de Damasco. Ela lavrada de preto e branco, um projeto falhado de vaca parideira que permanecia teimosamente incólume na sua virgindade, incapaz de parir e de se tornar uma vaca boa de leite como a mãe, a Formosa. Tio Luís, com uma arte e paciência desusadas, ensinara-os e habituara-os na canga que era um regalo. Trabalhavam na perfeição, de dia ou de noite, puxando carros, corsões, lavrando, gradeando sem ninguém diante, o que fazia inveja a muita junta de bois.
Meu pai mostrou algum desinteresse e, inicialmente indeferiu a disponibilidade do cunhado. A terra era muito perto de casa. Sempre acarretara o milho da Fontinha em cestos, às costas. Mas como Tio Luís insistisse, meu pai anuiu e combinou-se o dia.
Meu pai levantou-se muito cedo e, ao amanhecer, quando chegámos, já tinha meia terra apanhada. A meio da manhã a tarefa estava terminada e as belas e amareladas maçarocas jaziam, amontoadas umas sobre as outras, em enormes montículos, à espera do transporte que as havia de trazer até à nossa casa, na Assomada, baldeando-as pela porta dentro, atafulhando a cozinha quase até ao teto. De tarde haviam de ser encambulhadas e dependuradas no estaleiro.
Chegou tio Luís com os gueixos encangados a puxar o carro. A Maria Pedra, filha adotiva de Tio José Teodósio, a quem catrapiscava o olho desde há muito, apareceu, de imediato, por dentro dos vidros e por detrás das cortinas. Mais para se vangloriar junto da amada, talvez para a impressionar e ser admirado, tio Luís não se fazia rogado. Meu pai preferia que o carro estacionasse fora da terra, junto à parede e que o milho, enchido nos cestos, fosse baldeado lá para dentro, de cima da parede. Mas o tio Luís não lhe deu ouvidos. Abriu, de rompante, o largo portal de pedras pesadas e irregulares que só se abria no dia em que se acarretava o esterco e entrou com o carro pela terra dentro, desfazendo milheirais, calcando uma ou outra maçaroca e cravando profundas rilheiras no terreno amolecido pelas chuvas dos dias anteriores.
De seguida o milho foi sendo, aos poucos e às macheias, atirado para dentro da ceira de vimes que o tio Luís havia prendido aos fueiros do carro, até ficar cheia. Depois, escolhendo as maçarocas maiores, tio Luís fez uma espécie de borda falsa, espetando-as umas a seguir às outras, muito bem apertadas e prensadas, o que permitiu aumentar a capacidade da ceira, que se encheu de novo. Tio Luís, pachorrentamente e com alguma arte e sabedoria, voltou a fazer uma outra borda e depois várias outras até terminar no centro do carro, formando assim uma espécie de zigurate do antigo Egipto. Terminada a obra, para encanto meu e mais uma vez contra a opinião do meu progenitor, sentou-me em cima da carrada de milho. De seguida deu ordem às rezes para que andassem e conduziu o carro na direção do portal. Agora, já com a janela aberta, a Maria Pedra observava e admirava, encantada, todas estas operações.
A saída do portal da terra para o caminho era irregular e, para descer a Fontinha, obrigava os bovinos a virar à esquerda, com alguma celeridade, pois o caminho era apertado. Além disso as rezes eram acicatadas pelos desejos cada vez mais evidentes em tio Luís de impressionar a Maria Pedra. Eu, escarrapachado em cima do carro de milho, delirava em deslumbrante aventura.
De repente, a roda esquerda do carro salta sobre um enorme calhau bem encravado no limiar do portal. O carro dá um enorme solavanco e tomba por completo para a direita, espalhando-me a mim e à quase totalidade do milho no meio do caminho. A minha sorte foi de que ao embrulhar-me com as maçarocas, estas serviram-me de almofada protetora, pelo que apanhei apenas umas arranhadelas e um enorme mamulo na cabeça.
Eu chorava. Tio Luís vergastava os gueixos para que se levantassem e culpava-os. A Maria Pedra punha as mãos e rezava. Meu pai barafustava e praguejava:
- Ó alma do diabo, para além de me espalhares o milho quase todo, mais um nada e davas-me cabo do pequeno!