PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
AS PASTORAIS
Naquele verão, o novo bispo visitava a ilha. Para além de ainda não conhecer a maioria do clero, desjava fazer a tradicional visita canónica a cada paróquia. Pretendia assim, à maneira de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, integrar-se na vida e costumes das paróquias, visitando uns e conhecendo outros.
O pároco de São Cristóvão, um dinâmico e ativo sacerdote, saído do Seminário há três anos, era alvo de muitas críticas e mexericos, por parte não só de colegas mas também das autoridades e poderes locais, contra cujas decisões muitas vezes pouco democráticas e favoráveis aos interesses do povo, se insurgia e opunha, pregando a doutrina social da igreja, enriquecendo-a com reflexões e críticas que, por vezes até punham em causa a autoridade da própria hierarquia eclesiástica. Pelo meio, os delatores da sua imagem, não se furtavam de lhe atribuir um ou outro namorico, alcunhando-o de verdadeiro rabo de saias. O bispo disso já havia sido informado pelos elementos do clero que o rodeavam, em salamaleques, mesuras e vénias logo depois que chegara à diocese e, segundo se dizia entre os párocos da ouvidoria, era essa a razão pela qual o bispo revelara tanta urgência em visitar as paróquias da ilha.
O pároco havia-se formado no Seminário, ao eco dos documentos do Concílio Vaticano II e e no estudo das encíclicas Rerum Novarum e Quadragésimo Anno, orientado por mestres exímios, sábios e competentes, formados em Roma, alguns deles recentemente chegados à diocese, trazendo consigo a pureza do pensamento teológico dos grandes mestres das universidades romanas e que punham em causa os velhos manuais de Teologia, de Moral, de Direito Canónico, de Sagrada Escritura e até de História da Igreja. Despojara-se, por completo da indumentária eclesiástica, convivia com o povo, acompanhando-o nos trabalhos, no descanso e nos divertimentos. Não se lhe reconhecia grande atração pela oração e pela penitência, embora fosse exímio e rigoroso nas celebrações litúrgicas, dando-lhe a dignidade e o simbolismo que mereciam.
O prelado chegou à freguesia sem se fazer anunciar nem da hora nem do dia. O jovem sacerdote a essa hora ainda dormia. No dia anterior levantara-se muito cedo. Decidira acompanhar alguns pastores aos matos da ilha, a fim de conhecer melhor e de se inteirar do seu trabalho, dos seus sacrifícios, auscultando os seus problemas, confortando-os nas suas angústias.
Foi um colega que lhe bateu à porta, anunciando-lhe que o senhor bispo, acompanhado do senhor ouvidor estavam na igreja à espera dele. Sua Excelência Reverendíssima queria ouvi-lo. O pároco sorriu entre desconfiado e indiferente. Tanto se lhe dava. O bispo se quisesse falar com ele devia tê-lo procurado em casa. Mas, pelo sim, pelo não, enfiou, à pressa, umas calças e uma camisa, calçou umas havaianas e lá foi.
Recebeu-o o bispo, na sacristia, ornado de púrpura e de ar sombrio, estendendo a mão para que o pároco lhe osculasse o anel.
- Não tem batina, nem cabeção. – Indagou o bispo com rigor.
- Obviamente que tenho, pois trouxe-os do Seminário. Mas muito raramente os uso.
- E breviário?
- Não tenho.
- Não tem!? – Exclamou o pontífice com ar rigoroso. - E os livros paroquiais? Os paramentos, as alfaias litúrgicas, em suma as Pastorais, onde está tudo isso?
Perante o silêncio do pároco o bispo continuou. Falava austero, em devoção e santidade, em prudência e castidade, em o obediência e responsabilidade. As leis eclesiásticas eram para serem cumpridas e as penas canónicas para serem aplicadas. Quando terminou, o pároco, sorrindo disse-lhe:
- Vou-lhe mostrar tudo isso, se o senhor bispo fizer o favor de me acompanhar.
O bispo hesitou. Como o pároco insistisse sairam da sacristia e entraram no velho automóvel do pároco. Este, dando uma pequena volta pela freguesia, parou em frente a um enorme edifício. Era o Centro Social da paróquia que ele, com a ajuda dos paroquianos, construíra em menos de três anos. Saíram do carro e entraram. Numa sala um grupo de idosos tomava o pequeno-almoço em alegre e animado contubérnio. Noutra sala outros idosos praticavam exercícios físicos sob a orientação duma jovem animadora. Um grupo de crianças, noutra sala, juntamente com uma catequista ensaiavam cânticos para o Natal, enquanto outro grupo aprendia catequese. Algumas mulheres enchiam um atelier no fabrico de artesanato. Um grupo de jovens estudava noutra sala. No bar, alguns homens descansavam e conversavam. Depois de mostrar tudo isto ao prelado, o pároco, parando no hall de entrada do centro exclamou:
- Aqui estão as minhas Pastorais, senhor bispo.
Do lado um velhinho trémulo de corpo mas seguro de espírito, aproximou-se do bispo e puxando-lhe a manga da batina como quem lhe queria dizer alguma coisa, a assoando-se num lenço vermelho, acrescentou:
- E mais, senhor bispo… Ainda nem são dez horas da manhã! O senhor bispo havia de ver isto de tarde… E aos domingos e feriados…
NB – Este texto foi inspirado no conto com o mesmo título, do contista Nunes da Rosa, do livro Pastoraes do Mosteiro.