PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O ROCHÃO GRANDE
Situado bem lá no interior da ilha das Flores e a sul da freguesia da Fajã Grande o Rochão Grande era um lugar, apesar de exuberante, pouco procurado pelos habitantes daquela freguesia, a fim de ali trabalharem, uma vez que, para além de se situar muito distante do povoado, não possuía praticamente nenhuma propriedade ou terreno pertencente a particulares, nem muito menos agrícolas. Ali tudo era árido. Assim como os seus vizinhos Rochão do Junco, Água Branca e Burrinha quase toda a área deste lugar era zona de concelho, isto é local de terreno que não sendo de ninguém pertencia a todos. Por isso, era ali que se lançavam comunitariamente as ovelhas que eram juntas duas vezes por ano, nos chamados dias de fio, destinados à tosquia dos ovinos e ao registo das crias mais novas. Essa a razão por que estes andurriais eram procurados pelos habitantes da Fajã apenas nestes dias ou então quando, evitando a Fajãzinha e a Rocha dos Bredos, faziam viagens para Santa Cruz, ou então quando procuravam alguma rês que mais afoita e destemida, colocada nas terras próximas, se escapulia por entre os bardos de hortênsias e se perdia por ali. De resto um deserto, este Rochão Grande, povoado de forrecas, de musgos, de fetos, de queirós de cedros anões, de junco e ervas e que na verdade para pouco mais servia do que para alimento dos ovinos.
O Rochão Grande, paralelo à Burrinha estendia-se por uma enorme encosta voltada a sul, com o Pico do Touro por perto e o Morro Alto lá mais longe, confrontando com a Água Branca e o Rochão do Junco quase até ao Curral das Ovelhas e do Rochão Tamusgo.
De resto e de acordo com o seu nome, por certo teria a sua origem no facto de ser uma espécie de grande rocha em terreno plano, sendo o qualificativo grande usado apenas para o distinguir d os seus homónimos e vizinhos, nomeadamente o Rochão do Junco e o Rochão Tamusgo.
Situado no complexo montanhoso do Morro Alto, o rochedo que envolve o Rochão Grande revela-se muito vigoroso, característica comum a todo o relevo aa ilha das Flores, repleta de pináculos e rochedos de pedra e que se cuida ser fruto duma atividade combinada de vários cones vulcânicos rondando os 700-800 metros de altitude, posteriormente sobreposta com a de alguns cones menores. Daí resultou uma estrutura planáltica em dois degraus, que se prolonga até à costa. No patamar Norte, desenvolvido a uma altitude média de 600-700 metros, onde a vastidão, o silêncio, a tranquilidade e a homogeneidade dos tons verdes tomam conta da paisagem, encontra-se o Morro Alto, o Pico da Burrinha e, ainda, o da Testa da Igreja e o Pico da Sé. No patamar inferior, a Sul, com altitudes entre os 500-600 metros, os aparelhos vulcânicos são mais pequenos e modernos. Nas zonas aplanadas envolventes dos cones encontram-se lagoas, antigas crateras de afundamento, rasas ou fundas, com água acumulada na sua parte inferior. É numa destas encostas que se situa o Rochão Grande.
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FRASCOS DE XAROPE A SERVIREM DE BIBERÕES E LEITE AQUECIDO EM CIMA DE CANDEEIROS A PETRÓLEO
Muito tiveram que inventar os nossos antepassados! Não apenas no seu dia-à-dia mas também e sobretudo nos momentos ou ocasiões mais importantes e significativas da sua vida, como eram aquelas em que nascíamos e íamos crescendo, no meio de enormes dificuldades, com excessivas carências, limitadas condições e pouquíssimos meios de conforto e bem estar. Fixemo-nos num pormenor aparentemente muito simples: o dos nossos biberões. Nos tempos em que nos criámos, na década de quarenta, não havia plásticos ou afins e, consequentemente, não existiam biberões com a forma, a qualidade, a performance e a excelência dos actuais. Aliás nem sequer nenhuns biberões de outra coisa qualquer havia e se os houvesse não era possível comprá-los por parte da maioria das famílias da Fajã Grande. Assim, aos nossos progenitores só se proporcionava uma alternativa, a de inventar. Havia que inventar não apenas os biberões mas tudo o resto necessário ao nascimento e ao subsequente crescimento duma criança. Para o nascimento inventou-se a velha do Corvo, que daquela pequenina ilha trazia os meninos numa cestinha. Mas inventar ou arranjar biberões não era assim tão fácil como criar a figura mítica duma velha vinda do Corvo. É que os recipientes de vidro também eram raros e a maioria desadequados, não apenas na forma mas também no tamanho. Imagine-se o que seria dar de mamar a uma simples e inocente criancinha numa garrafa de litro, uma vez que estas eram praticamente as únicas então existentes, resultantes da venda de vinho, aguardente ou licores por parte dos comerciantes. As de cerveja e laranjada eram cilíndricas e muito escorregadias e as de pirolito tinham uma bola no gargalo que impedia a saída do leite.
Sendo assim e perante tais dificuldades e limitações, havia que procurar frascos mais adequados para biberões, noutras paragens, recorrendo-se frequentemente aos frascos de medicamentos, geralmente os dos xaropes, dado que estes eram mais pequenos, ligeiramente achatados e, obviamente, mais adequados a que as frágeis mãozinhas os agarrassem, dado que as mães não tinham muito tempo para os ir segurando durante a mamada. Era pegar e mamar. Assim, recorria-se geralmente aos frascos de xarope Benzodiacol, usados contra a tosse e, por isso existentes em maior quantidade e mais adequados por duas razões: primeiro porque o gargalo onde se enroscava a tampa tinha muitas voltas, sendo assim mais fácil prender a “mamadeira” e, por outro lado, eram bastante espalmados permitindo, assim, ao fedelho segurá-los melhor, enquanto bebia o delicioso, agradável e reconfortante leitinho.
Quanto ao leite, normalmente era fervido num caldeirão próprio, bastante mais pequeno do que os caldeirões de cozinhar. Mas não era possível estar a fervê-lo ou aquecê-lo ao lume sempre que a criancinha tivesse fome. Custava muito acender o lume com garranchos verdes e, além disso, só para aquecer um pingo de leite… Microondas? Nem na imaginação ou em sonhos… Daí recorrer-se a algo acessível e fácil mas nem sempre eficiente e eficaz, ou seja, por vezes não se alcançava o objectivo deseja, sendo, nesse caso, “pior a emenda do que o soneto”. Para aquecê-lo colocava-se o leite num pequeno caneco de alumínio e este em cima do fogão de vidro de um candeeiro a petróleo, daqueles que tinham um rendilhado ou uma espécie de flor na parte superior do vidro chaminé. Uma pequena distracção e estava, neste caso em vez do caldo, o leite derramado, com a agravante de sujar e besuntar não apenas o caneco mas também o candeeiro e, muito especialmente o fogão da luz que ficava num estado de sujidade impressionante e que só poderia ser limpo depois de arrefecer.
Tantas eram consumições! Tantas eram as arrelias. Talvez por isso mesmo deixávamos de mamar nos biberões bastante cedo e nos habituávamos a beber o leitinho pelas tigelas de loiça, por canecos de alumínio ou até pelas tampas das latas em que se ordenhavam as vacas. E nem um pingo se derramava!
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O PIQUENIQUE
A Rita, depois de sair da escola, chegou a casa um bocadinho triste. Alguns colegas e amiguinhos da sua salinha, desde há alguns dias, levavam brinquedos para as aulas para os partilhar uns com os outros mas nem sempre se entendiam da melhor forma.
- “Que posso fazer para também poder partilhar alguma coisa com eles mas de maneira que todos fiquem felizes e contentes?” – Pensava ela.
De repente teve uma ideia.
- “Já sei! Se eu lhes fizesse uma surpresa? Talvez um piquenique!”
Muito contente, foi, de imediato, ter com os pais que estavam na cozinha a preparar o jantar:
- Papá, mamã! Tenho uma ideia. Posso partilhá-la convosco?
Os pais, de imediato, interromperam as suas tarefas e aproximaram-se dela.
- Sim, sim Rita. Explica-nos qual é a tua ideia?
Um bocadinho tímida, a Rita explicou aos pais o seu plano. Queria fazer uma surpresa aos seus amiguinhos, partilhando com eles aquilo de que mais gostavam. Para isso ia fazer-lhes uma grande surpresa. Um piquenique.
Os pais, embora um pouco admirados, concordaram. Mas para isso era preciso que a Rita lhes dissesse quais as comidas e guloseimas de que os seus amigos mais gostavam, a fim de irem com ela ao supermercado comprá-las.
A Rita cada vez mais animada, enquanto os pais escreviam num papelinho, foi explicando:
- A Sofia gosta de bolachas, a Carla de chocolates kinder, a Mariana de suspiros, o João de Manhanzitos, o Pedro de pão com manteiga, a Andreia de queijo...
Num instante os pais, com a ajuda da Rita, fizeram a lista de tudo o que ela levaria para o piquenique a fim de partilhar com os seus amigos. Antes de jantar ainda tiveram tempo para ir ao supermercado.
No regresso passaram por casa dos avós e foram visitá-los. Nessa tarde, a avó tinha chegado dos Açores e trouxera um saboroso Queijinho do Pico que ofereceu à Rita. Ela ficou muito contente e decidiu que também o havia de partilhar com os seus amigos.
Depois do jantar a Rita, antes de se deitar, ainda ajudou a mãe a preparar e a arrumar tudo dentro de um saco para, na manhã seguinte, levar para a escola. O pai ainda lhe lembrou:
- Rita, não te esqueças de, quando terminar o piquenique, pedires aos teus amigos para te ajudarem a arrumar e limpar tudo a fim de não deixarem lixo no local.
A Rita concordou e, logo depois, adormeceu muito feliz e contente.
No dia seguinte chegou à escola e…
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O CAIXÃO COMUM
Nas traseiras da igreja paroquial da Fajã Grande, encostada à capela-mor, do lado do Evangelho ou seja a sul, porque a igreja da Fajã como quase todas as igrejas da ilha das Flores tinham a porta de entrada voltada para o nascente, e paredes meias com o cemitério havia uma arrecadação, relativamente grande e que mais tarde veio a servir de casa do motor. Aí se guardavam vários objectos que, embora não sendo de culto ou de uso litúrgico, eram utilizados por altura das festas, no espaço exterior. Era o caso dos andores mais antigos e toscos, do quiosque para a quermesse, do boneco de revirar às boladas, das tábuas e suportes do coreto e de outros adereços utilizados, sobretudo, por altura das festas da Senhora da Saúde e de São José. Mas o que mais enchia aquele vetusto e abandonado pardieiro era um conjunto de velharias já sem utilidade alguma, mas que ali haviam sido colocadas e por ali tinham ficado a perder-se no tempo. Mesas partidas, ralos de confessionários esquartejados, andores sem barrotes, lanternas com os vidros estilhaçados, cruzes de madeira desfeitas e muitas outras bugigangas, entre as quais, pasme-se, um caixão, sem tampa mas feito em madeira de cedro e em muito bom estado de conservação.
Mas este caixão, embora abandonado ali por já não ser de uso corrente, fazia parte do património histórico da paróquia. Na realidade e de acordo com testemunhos de pessoas mais idosas, antigamente, na Fajã Grande, rareava a madeira e ainda mais o dinheiro para comprá-la e construir o que quer que fosse. Daí que, para muitas famílias, de tão pobres e necessitadas que o eram, fosse impossível mandar fazer e, sobretudo, pagar um caixão para sepultar os seus familiares. Para superar essas dificuldades, mandou a paróquia, com o objectivo de ajudar os seus fregueses, fazer um caixão de boa madeira de cedro, mas comum, isto é, um caixão que servisse para sepultar todos aqueles cujos familiares tinham problemas económicos e eram pobres e ainda os que o quisessem fazer, por vontade expressa dos familiares. Assim o morto era simplesmente embrulhado pela família num lençol e colocado dentro do caixão comum, onde era velado, transportado para a igreja e depois sepultado, nos primeiros anos da paróquia na própria igreja ou, mais tarde, no cemitério para tal construído. Sendo assim os defuntos, antigamente, eram sepultados apenas embrulhados num lençol, enquanto o caixão comum, depois de cada funeral, voltava para a arrecadação da igreja à espera de novo defunto.
O caixão comum! Um marco importante e significativo, talvez bastante esquecido, na história da Fajã Grande!
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DO NATAL AO CARNAVAL (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Ainda há poucos dias era Natal e já estamos quase a chegar ao Carnaval. Quando eu era criança costumava dizer-se que Do Natal ao Carnaval era um pulinho de pardal. E é bem verdade, pois perece que foi ontem que aconteceu aquela maravilhosa noite em que se ceia um pouco melhor - galinha recheada, uns inhaminhos com linguiça e, no fim, um pratinho de arroz doce, a cheirar a canela… Depois a missa do galo, à meia-noite. Tudo isto só acontece uma vez por ano, por isso é lembrado muitas vezes, Agora que tudo passou, os dias até já parecem maiores, vão seguindo uns atrás dos outros, sem acontecer nada de especial, a não ser mau tempo. Já quase passamos janeiro e a seguir virá fevereiro que nos trará o Carnaval para adocicarmos a boca, novamente, mas agora com umas filosinhas que a minha Maria faz, muito saborosas e que assim como o arroz do Natal também terão um gosto e um cheirinho a canela. A canela a unir o Natal ao Carnaval. Por esses dias há por aqui muitas folias e também aparecem aqui na freguesia umas danças… umas de cá outras de fora. Eu cá nunca entro nessas brincadeiras. São para os mais novos. Para mim agora só contas e bordões.
Dezembro foi frio, janeiro também e pouco se pôde trabalhar. Fevereiro vamos lá a ver como vai ser. Vamos ver se vem um pouco melhor. Há muito trabalhinho à minha espera, sobretudo nas terras. Tenho que fazer o canteiro da batata-doce, limpar o curral para por o bacorinho novo e lavrar as terras do Areal e das Furnas, para nelas semear o milho mais cedo. Não sabemos se o tempo vai ajudar. Nesta ilha e nesta freguesia, no que ao tempo diz respeito, nunca se sabe o que nos espera o dia de amanhã. De repente levanta-se aí um temporal que não nos deixa fazer nada. Espero bom tempo a fim de que todos estejam seguindo em frente nos seus trabalhos e culturas e que estejamos olhando adiante, centrados no futuro que haveremos de novamente escolher e festejar o Carnaval.
Quando eu era novo o pároco desta freguesia era o padre Bizarra, um homem de muitas letras e de grande sabedoria. Um dia à Praça falando sobre o Carnaval ele disse que se tratava duma festividade muito antiga. Parece que começou a ser festejado quando se começou a celebrar as cerimónias da, Semana Santa pela Santa Madre Igreja, mas que era antecedida por quarenta dias de jejum e abstinência que eram os dias que durava a Quaresma. Como durante esse longo período de tempo havia muitas privações e grandes sacrifícios, nos dias antes da Quaresma começar, na Quarta Feira de Cinzas, o povo comia e bebia bem e fazia grandes festas, pois eram os dias que diziam adeus à carne ou dias de Carnaval. É por isso também que estes dias são chamados gordos, em especial o Domingo Gordo e a Terça-Feira Gorda, pois nestes dias costuma-se comer uma öboa talhada de toucinho com couves e linguiça com inhames. Depois e durante a Quaresma é comer umas tortas de lapas ou peixe frito para quem tem tempo e modo de o ir pescar. Muitas vezes, na Quaresma até se comem as batatas sem nada ou faz-se Mangão. E a minha Maria sabe fazê-lo muito saboroso.
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A NINHADA
O galo Delfim andava numa aflição desmesurada, num tormento incontrolável. Desde há algum tempo que vivia os mais tristes e amargos dias da sua vida. A galinha Codorniz, a sua amada e predileta entre todas as galinhas da cerca da Senhora Mariana, havia desaparecido.
Ao princípio ainda cuidou que fosse uma aventura amorosa, uma loucura momentânea, um salto esporádico à capoeira da vizinha para um encontro desavergonhado com aquele maricas que era o galo do galinheiro ali ao lado – um badameco que nem cantarolar sabia - como fazia, vezes sem conta, a atrevida e doida da Cor-de-Pomba. Uma desavergonhada que o traía com frequência e o atraiçoava sem escrúpulos! Mas a Codorniz, não. Para além de amiga, fora-lhe sempre fiel.
Séria, trabalhadora e ajuizada, aquilo fora amor à primeira vista. Desde o dia em que a senhora Mariana o comprara à Mariquinhas do Engenho e o atirara abruptamente para a cerca, que simpatizara com ela. A simpatia foi crescendo, crescendo e de recíproca que era, depressa se transformou em amor e este em paixão. Eram os dois enlaçados dia e noite em acervos amorosos e as outras, coitadas, à espera de oportunidades que, devido à pertinácia da Codorniz, rareavam.
Agora estava ali, mais do que triste, preocupado e sem saber o que fazer. Mas tão longa ausência não era, por certo, um simples salto ao galinheiro da vizinha. Ali, havia marosca e da grande. Oh! Se havia… Andando para trás e para diante como um tolo, saltitando para aqui, pulando para acolá como um labrego, barbela murcha que nem úbere de vaca seca, abanando as asas e esticando a perna esquerda aqui, a direita acolá, como se estivesse derreado, o galo Delfim definhava, dia após dia. Não comia, nem dormia. Levantava-se do linheiro, alta madrugada mas já nem conseguia encher os pulmões e atirar, por entre as brumas matinais, a sonoridade inconfundível do seu belo canto.
E o galo Delfim definhou por completo, quando, açulado pelo passar inequívoco dos dias, concluiu que aquilo só podia ter sido faca e alguidar. E, nada mais fez do que chorar e entrar num nojo assumido. A galinha Codorniz, por certo e seguro, havia ido parar ao caldeirão da sanguinária senhora Mariana. Perdera para sempre a sua bem-amada. As outras galinhas, manifestando disfarçadamente alguns laivos de contentamento, bem o tentavam demover da sua consumição, com festanças, cacarejos e provocações. Mas ele nada. Piorava de dia para dia.
Longe dali, na sua loja, a senhora Mariana havia colocado resmas e resmas de palha dentro de um cesto velho, anafara a última camada de forma a fazer uma espécie de linheiro muito fofinho e confortável, colocara-lhe dentro meia-dúzia de ovos, dos melhores que tinha e espetara-lhes, em cima, a galinha Codorniz, completamente choca, a arder em febre. Ao princípio a desnaturada ainda esvoaçou, estrebuchou, cacarejou e bateu as asas como que a querer sair dali, lembrando-se da ternura, do carinho e do amor do galo Delfim, que não via há dois dias. Mas mal sentiu a suavidade suplicante dos ovos, a pedirem-lhe que os aquecesse, acomodou-se com jeito sobre eles e encheu-se de ternura, com modos de galinha genitora.
E, passados, vinte e um dias, para gaudio da senhora Mariana e felicidade da galinha Codorniz, os ovos começaram a estalar a casca e deles saíam belos e fofinhos pintos, amarelos, alaranjados e cinzentos. Uma bela ninhada! E a mãe toda vaidosa a aquecê-los, a aquentá-los, a envolvê-los debaixo das suas asas, a dar-lhes as primeiras nicas de alimento. Depressa os pintainhos cresceram, transformando em penas a penugem que, inicialmente, lhes cobria os corpitos.
Entendeu então, a senhora Mariana que era altura de os misturar com a restante capoeira. Pegou-lhes um a um e lá os foi deitando na cerca, juntamente com a mãe que, preocupada em os defender das nicadas das invejosas das outras galinhas, nem se apercebeu da alegria e do contentamento do seu galo Delfim que, ressuscitando por completo do marasmo em que jazia, corria, como doido, de um lado para o outro, sem acreditar no que via. Parecia-lhe um sonho. Só mais tarde, quando já mais calmo e crente, se aproximou da mãe que, orgulhosa, lhe foi apresentando os filhotes, um a um, acreditou que, afinal, não estava a sonhar.
E na madrugada seguinte, todo contente, o galo Delfim, levantou-se cedo para a cantoria habitual, que, desde há muito, havia cessado. Não o fez sozinho. Ao seu lado estava um franganote, altivo e elegante, de cor de codorniz, que embora com uma voz ainda frouxa e trémula, lá ia imitando o cantar do seu progenitor.
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A LENDA DO MENINO DO CORO E A SINEIRA DA SÉ
(TEXTO DE ÂNGELA FURTAD BRUM)
No tesouro da igreja da Sé em Angra do Heroísmo existe uma exótica imagem de Santo António de Lisboa, em que este se encontra vestido como um menino do coro, representação pouco habitual.
Conta a lenda que, antigamente, um mestre da capela estava muito preocupado pois não conseguia a harmonia entre os seus pupilos e a festa seria para dali a poucos dias. Furioso, ameaçou bater a um aluno se este não começasse a entoar as músicas na forma correta. Apavorada, a criança fugiu pela catedral até que, à procura de um lugar para se esconder, se encaminhou para as torres da igreja.
Mesmo ali não se sentiu seguro, e à procura de um melhor lugar para se esconder, começou a subir a íngreme escada em caracol que levava aos sinos e aos pináculos das torres. Quando lá chegou pôs-se à escuta e, provavelmente confundindo o barulho do vento com o barulho de passos, julgou ter ouvido o mestre da capela no seu encalço. Não pensando nas consequências, atirou-se do alto de uma das torres.
A criança foi salva por um vento divino que a sustentou no ar, usando a opa da função do coro como para quedas. Levado pelo vento, o menino voou por três ruas até ser depositado no telhado do Convento de Nossa Senhora da Esperança, onde foi recebido pelas freiras com grande espanto.
Para comemorar esta ação divina e o salvamento do filho, o pai da criança mandou fazer a mencionada imagem de Santo António vestido de menino de coro, que durante muitos anos esteve exposta antes de dar entrada no tesouro da Sé Catedral dos Açores. O menino de cantor de coro passou a ser sacerdote na sua vida de adulto.
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ELIZINHA ABRÃO
Elizinha Abrão era uma senhora de grande generosidade e entrega ao serviço e ajuda dos outros, nomeadamente dos sobrinhos que criou e educou, sozinha, após a morte dos cunhados no fatídico desastre do Corvo. Talvez essa a razão por que nunca se casou, assumindo-se com verdadeira mãe dos sobrinhos, qua aina novos haviam ficado órfãos. Foram seus pais Abrão de Freitas Henriques e Luísa Gonçalves de Freitas que casaram na igreja da Fajã Grande, em 19 de Junho de 1899, sendo o pai já viúvo de Clara Emília de Freitas. O pai ficou recordado na freguesia através da célebre frase Abrão vai perdido. É que até à década de cinquenta todas as deslocações da Fajã Grade para as vilas e freguesias da ilha, com exceção da vizinha Fajãzinha, eram feitas atravessando os matos da ilha. Outras vezes era necessário ir ao mato tratar do gado. Frequentemente surgiam nevoeiros, brumas, tempestades e temporais que, para além de perigosos, eram, por vezes, aterradores e já alguns homens se haviam perdido, embora, na maioria dos casos, apenas temporariamente. Temendo que o mesmo lhe pudesse acontecer, o velho Abraão, sem o confessar a quem quer que fosse, dia após dia, lá foi escrevendo, a letras garrafais, numa quantidade de tirinhas de papel julgada necessária, a frase: Abraão vai perdido. E, sempre que ia para o mato levava os papelinhos escritos, bem escondidos num bolso. Certo dia foi vítima de um forte nevoeiro que lhe tapou os olhos e o entonteceu-o de tal modo que perdeu o rumo. Recorrendo de imediato ao seu segredo, aos papéis que continha num bolso, lá os foi deixando cair um após outro, enquanto deambulava sem saber o rumo. Passou a noite numa furna, onde facilmente o encontraram aqueles que, seguindo os papelinhos, na manhã seguinte, o foram procurar.
A filha Elizinha morava numa casa da Rua Direita, em frente à igreja paroquial a qual se disponibilizava em se colocar, tantas vezes, no apoio a festas, serviços e obras da igreja da freguesia. Ela própria dispensava grande parte do seu tempo em atividades religiosas e de apoio à paróquia, uma vez que, para além de participar ativamente em todas as celebrações que tinham lugar na igreja, era catequista e ajudava na limpeza, no arranjo e ornamentação do templo, zelando para que a lâmpada do santíssimo se mantivesse sempre acesa, ora acrescentando-lhe azeite ora substituindo-lhe o pavio, um pequena flor a boiar num triângulo de lata e cortiça sobre o azeite. Era uma senhora permanentemente motivada no apoio às várias iniciativas da paróquia, assim como ajuda nas Casas do Espírito Santo, nomeadamente na de baixo, por altura da festa. Teve pois um percurso de vida extraordinário como mulher, como cristã e como mãe adotiva graças aos talentos que possuía e que colocava, sem qualquer interesse ou restrição., na ajuda dos outros e ao serviço da igreja.
Mas, para além de tudo isto, Elizinha Abrão também era uma excelente e prestigiada costureira. Durante anos e anos trabalhou em sua casa, agarrada a uma máquina de costura, fazendo vestidos de noiva e da comunhão solene, enxovais para casamentos e roupas de senhora, enquanto ia orientando os sobrinhos no amanho dos terrenos e na produção agrícola que, embora reduzida, lhes garantia o sustento.
Aos sobrinhos transmitiu-lhes uma esmerada educação apoiando-os nos seus anseios. Um deles notabilizou-se como oficial do exército e outro como cabo do mar. Uma educação com base na disciplina e rigor não faltando todavia muito amor, carinho e dedicação.
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ÀNGELO RIBEIRO
O escritor açoriano Ângelo Ribeiro nasceu em Angra do Heroísmo, a 7 de Janeiro de 1886, realizando os estudos superiores na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, primeiro o curso de Filologia Germânica e, posteriormente, o bacharelato em Filosofia. Nos primeiros anos do regime republicano foi nomeado para administrador dos concelhos da Praia da Vitória e, mais tarde, de Angra do Heroísmo.
Tendo escolhido a carreira docente como percurso profissional, foi professor na Escola Normal Primária de Lisboa e professor contratado de Filologia Germânica Faculdade de Letras do Porto, sendo, dois anos depois, nomeado professor ordinário, passando à categoria de catedrático pela Reforma de 1926. Manteve-se em exercício de funções até ao encerramento da Faculdade, em 1931. Durante esse período, foi o responsável pelas cadeiras de Língua e Literatura Alemã, Língua e Literatura Inglesa, Curso Prático de Alemão e Gramática Comparada das Línguas Germânicas e assegurou a regência das disciplinas de História Geral da Civilização, História de Portugal, História Medieval e História Moderna e Contemporânea, devido ao afastamento progressivo de elementos do corpo docente. Mais tarde foi-lhe atribuído o grau de Doutor em Letras – Filologia Germânica, tendo, ainda, desempenhado as funções administrativas de Secretário, de Bibliotecário e de delegado junto do Senado Universitário.
Uma vez terminada a carreira docente universitária na Universidade do Porto passou à situação de adido, até à sua colocação como professor primário do Liceu Passos Manuel, em Lisboa. Leccionou, ainda, noutros liceus da capital, tendo falecido nesta cidade a 5 de Outubro de 1936.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O CONTO DO VIGÁRIO
Conta-se que há muitos anos, numa aldeia ribatejana, havia um lavrador de parcos recursos mas que também negociava gado. Chamava-se Manuel Peres Vigário.
Certo dia procurou-o para negociar, ludibriando-o, um fabricante ilegal de notas falsas, que lhe disse:
- Senhor Manuel Vigário, tenho aqui umas notazinhas de cem mil réis que me interessava passar. Será que o senhor as quer? Largo-lhas por vinte mil réis cada uma.
O lavrador, um pouco desconfiado, pediu que lhas mostrasse. O homem anuiu e o lavrador, observando-as minuciosamente, reparou que eram bastante imperfeitas e que facilmente seriam identificadas como falsas, por isso, rejeitando a oferta, retorquiu:
- Acha o senhor que as devo aceitar? Até um cego vê que são falsas.
Como o homem insistisse na permuta, o lavrador cedeu um pouco, regateando o preço proposto pelo falsário. Por fim, lá fechou o negócio, comprando vinte notas por dez mil réis cada uma.
Passados alguns dias o lavrador teve que pagar uma dívida a dois irmãos que, como ele, também negociavam gado. Combinaram que haviam de se encontrar no primeiro dia de uma feira que se realizava ali por perto. Quando o lavrador chegou à feira, foi procurar os irmãos e encontrou-os a jantar numa taberna da localidade, onde a luz era frouxa e a taberna escura. Sentou-se à mesa junto deles, e pediu um copo de vinho.
Começaram a conversar e o lavrador lembrou aos irmãos que, como o combinado, viera à feira para lhes pagar a dívida. Puxando da carteira, perguntou-lhes se aceitavam que lhes pagasse com notas de cinquenta mil réis. Eles disseram que não, e, como a carteira nesse momento se entreabrisse, o mais vigilante dos dois irmãos chamou a atenção do outro, com um olhar rápido, informando-o de que as notas, que se viam na carteira eram de cem mil reis, pelo que decidiram aceitar as notas que o irmão trazia e com que lhes pretendia saldar a dívida.
O lavrador tirou as notas da carteira e, lentamente, contou-as uma a uma, ao mesmo tempo que as deixava ir caindo em cima da mesa. Um dos irmãos pegou nelas com prontidão e guardou-as imediatamente no bolso. Se ambos as haviam visto contar, não havia razão para desconfiar do mano que, descontraidamente, continuou a conversa, pedindo e bebendo mais vinho. Por fim e antes de se ir embora disse aos irmãos que queria um recibo a provar que a dívida estava liquidada. Não era uso, mas nenhum dos irmãos se opôs e passaram o recibo no qual se declarava que Manuel Peres Vigário tinha pago a quantia de um conto de réis em notas de cinquenta mil réis, a fim de liquidar a sua dívida. O lavrador meteu o recibo na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais um copo de vinho e, pouco depois, foi-se embora.
Alguns dias depois, um dos irmãos ao efetuar um pagamento numa mercearia com uma das notas que recebera, esta foi-lhe devolvida pelo dono por ser descaradamente falsa. O mesmo aconteceu com a segunda, a terceira e com todas as outras. Revoltados os dois irmãos foram entregá-las às autoridades, denunciando quem lhas tinha entregado. O lavrador foi chamado e acusado de ter pago a dívida com notas falsas e exigir um recibo para encobrir o logro. Mostrando-se muito admirado explicou que na altura tinha bebido demais e, por isso, pedira o recibo que, afinal, estava assinado pelos dois irmãos, e que provava bem que tinha feito o pagamento em notas de cinquenta mil réis, o que fora aceite pelos manos. E concluiu:
- E se eu tivesse pago em notas de cem, nem eu estava tão bêbedo que pagasse vinte, como estes senhores dizem que têm, nem muito menos eles, que são homens honrados, mas receberiam dinheiro a mais…
E foi mandado em paz.
Assim passou a designar-se por conto do vigário todos os embustes que tem em comum golpe de esperteza de alguém que subtilmente engana o seu semelhante.
NB – Este texto foi elaborado com dados retirados da Net, publicado por Formiguinha e inspirada num conto de Fernando Pessoa.
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A GARREADELA
Chegou à Fajã na companhia duma tia. Sublime na sua elegância, desdenhosa nos seus procedimentos, outorgante na sua solicitude, Joana, para além de bonita e elegante, irradiava simpatia, carinho e beleza. Os cabelos ligeiramente louros e soltos, rosto fino e perfumado de brancura e transparência, e os olhos de um verde acastanhado, ocultando uma timidez translúcida e uma comunicabilidade indefinida. A cobrir-lhe o corpo um vestido de chita, deixando-lhe os braços nus, o que permitia adivinhar retalhos de um corpo delicado, macio e melífluo, pese embora uma blusa de seda lhe caísse dos ombros a simular decoro. A excelência personificada.
A tia Gertrudes era dos Cedros e casara na Fajã. Conhecera o marido num abril em que o Carvalho, totalmente impedido de fazer serviço em Santa Cruz e nas Lajes rumara a ocidente, ancorando na ampla baía da Ribeira das Casas. Gertrudes regressava do Faial, onde fora consultar médico. O desembarque no Cais era precário e meticuloso. Além disso fez-se quase à boquinha da noite. Foi pelo homem que lhe deu a mão a fim de que saltasse para terra em segurança que Gertrudes se apaixonou. Sozinha, em cima do Cais, sem alguém que a ajudasse e sem saber como regressar aos Cedros, foi acolhida em casa duma família generosa. Eram os pais do Lizandro, o homem a quem se apoiara ao saltar do gasolina para terra. Deram-lhe ceia e dormida. No dia seguinte Lisandro, com beneplácito dos progenitores, acompanhou-a na longa e difícil viagem até aos Cedros, subindo a Rocha e atravessando os matos durante quase um dia. Um ano depois casaram.
Gertrudes, para além de tia, era madrinha de Joana. Desde de tenra idade que a garota se afeiçoara a ela e Gertrudes tratava-a como se fosse filha. Ao deixar os Cedros e ao fixar-se na Fajã, não podia separar-se da pequena por quem tinha tão grande amizade e a quem disponibilizava um enorme carinho. Com a anuência da irmã e do cunhado trouxe-a consigo.
Na Fajã, no entanto, Joana vivia numa monotonia rotineira, desinteressante e quase odiosa. Não conhecia ninguém. Além disso, a tia Gertrudes, muito ciosa da menina a fim de que nada lhe acontecesse de mal e não se metesse em confusões, bem a acautelava, impedindo-a de sair de casa e de se integrar em tudo o que acontecia na terra, de inesperado ou de normal. Apenas aos domingos saía para a missa. De resto, passava os dias fechada em casa, olhando por detrás das vidraças as pessoas que transitavam na rua. A princípio como não as conhecia não identificava quem quer que fosse, mas com o tempo foi-se habituando a rostos e feições que depois, em cada domingo, confrontava e confirmava à entrada e saída da igreja. Passado um ano conhecia toda a freguesia.
Foi o Carlos Salema que lhe mudou o destino. Sempre aprumado e correto, trabalhador e honesto, passava na Assomada, onde ficava a casa do Lizandro, todos os dias, de manhã e à tarde, nas idas e vindas para as terras do Outeiro Grande, do Espigão e da Cabaceira. Passava, parava e voltava a passar e a parar vezes sem conta. O Alexandre Pereira deu pela excentricidade do garrano. Revoltou-se. É que não gostava nada de o ver plantado, todos os dias, em frente à janela. Também ele apaixonadíssimo pela moça, roía-se de inveja e ameaçava, muito embora reconhecesse a vantagem do Salema. Mas, no fundo, sobrava-lhe uma resta de esperança.
- Se ela me visse… Se falasse com ela… Se lhe abrisse o meu coração… Se lhe contasse quanto a amo… Se tivesse oportunidade de ela me conhecer… Outra galo cantaria… - Matutava consigo próprio o primogénito do Pereira, à espera de um encontro com a amada enclausurada. Não sabia como. Mas qualquer maluqueira lhe havia de passar pela cabeça.
Depressa o Salema soube da cobiça do Pereira. Pegaram-se de unhas e dentes na tarde da festa da Casa de Cima, precisamente no dia em que pela primeira vez a tia Gertrudes, abrindo uma brecha no seu persistente carracismo, deixara Joana sair de casa para ir à festa. Ambos viram a moça e, com gaudo e entusiasmo, tentaram aproximar-se e meter conversa. Mas antes que chegassem junto da protegida de Gertrudes, sem que ninguém o previsse, pegaram-se, atirando-se um ou outro com unhas e dentes, como cães raivosos. O burburinho foi tal que os cabeças tiveram que parar as sortes que ainda nem iam a meio. As mulheres gritavam, as crianças tremiam de medo e os homens hesitavam desapartá-los. Uma garreadela como nunca se vira na freguesia. O Salema, de camisa rasgada, sangrava, a jorros, pelo nariz e o Pereira, nu da cintura para cima, tinha um olho negro e inchado como um coicelo.
Foi o regedor que veio por termo à peleja. Que parassem imediatamente, senão dava-lhes ordem de prisão. Iam os dois direitinhos bater com os costados na cadeia da Vila.
A bufar como cavalos depois uma corrida, a arfar como uma junta de bois após lavrar um cerrado, retiraram-se cada qual para seu lado. O Salema para a Tronqueira o Pereira para a Assomada. Mas terminada a briga começou o mexerico. Uma menina tão requintada, tão guardada, tão enfiada em casa, tão protegida pela titia, arranjava um sarilho daqueles, metia-se em tão grande alhada? Ela era a culpada de tudo aquilo. Pois não havia de ser? Havia mesmo quem jurasse a pés juntos que a vira piscar o olho ora a um ora ao outro. Era uma boa peça a menina da Gertrudes. Um grande coirão, era o que ela era. Uma desavergonhada que viera para a freguesia só para inrediar!
Nesse mesmo dia chegou tudo aos ouvidos da tia Gertrudes. No dia seguinte o Lizandro foi levar Joana aos Cedros, a casa dos pais e, no Carvalho seguinte, partiu para Lisboa para um convento onde tinha uma tia freira que, algum tempo depois, através uma benfeitora do convento, muito de igreja e muito religiosa, lhe arranjou emprego numa das mais conceituadas farmácias da capital.
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CASAS VELHAS
O lugar onde hoje se situa a freguesia da Fajã Grande, a quando da descoberta da ilha das Flores, a oeste da qual se situa, estaria naturalmente todo coberto por uma vegetação selvagem, densa e viçosa. Os primeiros povoadores tiveram um árduo e difícil trabalho de desbravar e arrotear, transformando o terreno em campos agrícolas, ao mesmo tempo que construíam atalhos, traçavam veredas e edificavam as suas próprias habitações.
Como seriam as casas da Fajã Grande no início do povoamento e nos séculos dezassete, dezoito e dezanove?
A resposta não parece ser muito difícil porquanto na década de cinquenta ainda existiam algumas dessas casas que haviam sido adaptadas a palheiros ou a casas de arrumação, designadas precisamente por casas velhas. A julgar pelos exemplares que foram deixados tratava-se de uma habitação, pobre, pequena, simples, com precárias condições de habitabilidade e, em muitos aspetos, semelhante a muitas que ainda existiam e eram habitadas na década de cinquenta e com algumas traços a lembrar a casa típica do Norte de Portugal Continental.
Essas casas, embora não sendo rigorosamente iguais, tinham muitos aspetos comuns, podendo pois falar-se, de alguma forma, num tipo de habitação específico ou se quisermos, uma casa tradicional. Trata-se, na sua maioria, de casas lineares, correspondentes a uma construção retangular, sobre o comprido e que geralmente tinham três divisões: cozinha, sala e um quarto. O quarto era destinado ao casal e aos filhos mais pequenos, a sala ou casa de fora que tinha uma ou mais camas para os filhos mais velhos e era aí também que se recebiam as visitas mais importantes e onde, dentro de caixas ou baús vindos da América, se guardavam as roupas domingueiras e, finalmente, a cozinha, a maior divisão da casa, que tanto servia para cozinhar como sala de estar, de local para as refeições, para fazer serão e até para guardar, encambulhar e descascar o milho no dia da apanha ou até para o guardar. De facto em muitas casas da Fajã, antigamente, penduravam-se os cambulhões do milho descascado em varas presas nos tirantes ou nas próprias traves das cozinhas, pois estas geralmente não eram a tabicadas. Para além de o guardar de ventos, intempéries e dos ratos tinha a vantagem, por um lado, de ele ir secando lentamente e por outro de manter a casa mais quente nos frios e gelados meses de inverno.
Normalmente estas casas eram térreas e só de um piso, embora algumas tivessem uma loja inferior semienterrada, por aproveitamento do desnível do terreno. A loja inferior, geralmente, servia de palheiro do gado, de arrumos de utensílios agrícolas, de guarda dos alimentos dos animais e também de retrete. A sala era o espaço mais iluminado, sendo a cozinha muito negra e escura, cheia de fumo, permanecendo geralmente num respeitável desarrumo. Geralmente possuía duas portas, uma na frente e outra na parte de trás, quase sempre sem vidros e uma ou duas janelas, sendo uma, por regra muito pequena. A sala por sua vez tinha uma porta do lado da frente, a porta principal fechada com tranca de madeira e que se abria em ocasiões mais solenes, enquanto o quarto, regra geral desfrutava apenas de uma janela. Grande parte da cozinha era ocupada pelo forno e pelo lar. Era debaixo deste que se arrumava a lenha, os cestos com sabugos e em cima do forno guardavam-se as pás e os varredouros e ainda enxadas, sachos e pás.
Cuida-se que antigamente as casas eram cobertas de palha de trigo e não tinham chaminés. O fumo evadia-se por entre a palha, com os riscos que tal operação corria. A cozinha e, nalguns casos até a sala, não tinham soalho de madeira, mas eram de terra barrenta, muito escuras e frias. Grande parte da cozinha era ocupada pela mesa das refeições, uma amassaria, pelo forno, onde se cozia o pão e pelo lar, onde se cozinhava e onde havia o tijolo do bolo. Debaixo do lar guardava-se a lenha picada, cestos de batatas e de inhames e, ao lado, o balde do porco onde se iam armazenando os restos da comida, que eram poucos, e as lavagens. Ali ficava tudo a fermentar, durante o dia. Estas casas eram construídas com pedra e não tinham nenhuma forma de revestimento, nem na parte interior nem na exterior e, consequentemente, não eram caiadas. As suas condições de habitabilidade e de higiene eram muito limitadas.
Como anexos, estas casas tinham, para além de um pátio atrás e outro à frente, um curral para o porco, outro para as galinhas, um logradouro para guardar o estrume dos animais, o cepo da lenha e o estaleiro onde se guardava o milho.
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MALDITA CANA ROCA
A cana roca, na década de cinquenta, na Fajã Grande era uma espécie de planta maldita ou, pelo menos mal a amada. Uma monda ou uma praga que urgia devastar a fim de que não alastrasse e se sobrepusesse às outras plantas e às árvores que cresciam ao redor e que eram de grande utilidade. Assim, uma das tarefas de cada agricultor era cortá-la e por vezes até lhe arrancar as potentes e grossas raízes nos terrenos onde florescia desalmadamente. O seu aproveitamento era muito reduzido, servindo apenas, uma vez picada, para secar as cercas ou currais dos porcos e, quando verde, as suas folhas de melhor qualidade eram selecionadas e utilizadas para colocar debaixo do pão de milho quando saído do forno, ainda quente, assim como debaixo da carne fresca, por alturas de jantares e festas do Espírito Santo ou em matanças de porco. As crianças, assim como as abelhas famintas aproveitavam o suco adocicado das suas flores para se deliciar, uma vez que nesses tempos o açúcar e os doces rareavam.
No entanto a cana roca, uma planta invasora muito comum nas ilhas dos Açores, florescia em catadupa nas terras de mato da Fajã Grande, nomeadamente no Delgado, Cabaceira, Cuada, Espigão, Cancelinha, Lombega, Moledo Grosso, Pocestinho Pico Agudo, Lavadouros, Vale Fundo, Curralinos e de muitos outros e até no sopé da Rocha e em muitas relvas sobretudo nas mais próximas das terras de mato. Nesses tempos recuados e de grandes trabalhos e canseiras, os donos das terras, de foice em riste, haviam de se livrar de toda ela, ceifando-a e cortando-a durante horas e dias, por vezes até arrancando as suas carnudas raízes, simplesmente para deitar fora, pois não servia para nada.
A cana roca, considerada também como planta ornamental, dada a beleza das suas flores é originária do Himalaia. Tem um caule herbáceo e as suas folhas são de um verde brilhante e as flores amarelas e alaranjadas, de rara beleza e adocicado aroma, crescendo em botões em forma de espigas. Pode atingir os dois metros de altura. As raízes são carnudas, assemelham-se a tubérculos e são muito parecidas, no aspeto e no sabor, às do gengibre, uma das plantas medicinais mais antigas e populares do mundo, de cuja família a cana roca açoriana é uma espécie.
O seu nome científico é Hedychium Gardnerianum Sheppard ex Ker Gawl, sendo conhecida popularmente pelos nomes comuns de conteira, jarroca, roca, cana roca e gengibre-selvagem e, em muitas regiões assim como nas ilhas açorianas, é considerada espécie invasora. Nos Açores, na verdade, tem vindo a tornar-se um problema crescente para as espécies nativas. Recorde-se que são consideradas plantas invasoras as espécies que, a nível geral, apresentam alta capacidade reprodutiva, alta capacidade de dispersão, alta resistência e versatilidade adaptativa face a mudanças ambientais, ausência de competição importante por parte de espécies nativas, e escassez ou ausência de inimigos naturais no novo ambiente. A cana roca que para se desenvolver melhor prefere um clima quente e regiões temperadas está incluída na lista das 100 espécies exóticas invasoras mais perigosas do mundo publicada pela União Internacional para a Conservação da Natureza.
Ultimamente, porém, surgiram algumas boas notícias sobre um possível aproveitamento económico da cana roca, já usada na ilha das Flores para o fabrico de mel. Uma delas foi o chamado Projeto “Conteira amiga” que tem como objetivo fundamental o fabrico de plástico a partir das folhas desta planta numa consistência suficientemente rígida que pode ser um boa alternativa aos plásticos, esferovites e espumas de polipropileno, pretendendo-se assim combater o consumo em massa de plásticos em todo o Mundo. Esta transformação após o revestimento e proteção com resina biodegradável, a conseguir-se pode revolucionar o nosso dia-a-dia, pois produzirá vasos de flores, copos, pratos, embalagens diversas, bases, banheiras, paletes para ovos, ninhos de aves, cestos de lixo para escritórios, etc. O projeto pretende substituir por razões de natureza ambiental, os plásticos e afins, mediante matéria-prima proposta quase inesgotável e biodegradável e terá a vantagem concorrencial de se sustentar no aproveitamento duma planta infestante e sem benefícios ou lucros. O aproveitamento e utilização de uma espécie biodegradável, os reduzidos custos de produção, associados à crescente procura e consumo nos artigos que se propõe transformar, são fatores de sucesso deste projeto e trarão grande riqueza às ilhas.
Mais recentemente surgiu um segundo Projeto “Achas bem” cujo objetivo é produzir, da cana roca seca, gravetos e troncos para uso como combustível alternativo à madeira em fogões de aquecimento e lareiras em casas. Este projeto “Achas pretende, entre muitos outros, reduzir ao mínimo a utilização de matéria combustível e derivados do petróleo e madeira, consumidos desmesuradamente no aquecimento de moradias.
Um terceiro projeto, denominado Fibemanics Azores visa transformar as fibras da cana roca em produtos de alto valor acrescentado, ou seja materiais fibrosos como alternativa ao aço, à madeira e plástico e que podem ser utilizados na construção de barcos, asas ou produtos para a saúde, evitando também poluição e contribuindo para a saúde do ambiente e da natureza.
Acrescente-se ainda que segundo um outro estudo realizado pelo Departamento de Ciências Tecnológicas e Desenvolvimento da Universidade dos Açores, um outro aproveitamento da outrora maldita cana roca, está no fabrico de um óleo que revela ter potencial para poder ser usado no tratamento da doença de Alzheimer e que aparenta ainda ter um elevado poder antioxidante, igual ou superior ao de muitos antioxidantes utilizados como aditivos alimentares e que ajudam a combater diversos cancros e muitas doenças degenerativas associadas à idade. Uma outra aplicação do óleo da cana roca poderá ser a de ser utilizado como inseticida biológico, já que se verifica que raramente a planta apresenta sinais de predação por insetos ou caracóis.
Sem dúvida que a concretizarem-se estes projetos, atualmente ainda em estudo nas Universidades dos Açores e do Minho poderão aproveitar economicamente os recursos endémicos das ilhas e valorizar o tecido empresarial das mesmas, criando mais postos de trabalho e valorizando o trabalho das populações rurais açorianas.
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AS CORRENTES
Na Fajã Grande, em tempos idos, usavam-se correntes de ferro para prender o gado bovino quando este estava amarrado à cordada, nas terras de lavradio, onde, por entre o milho, haviam sido semeadas forrageiras, ou seja o trevo, a erva da casta e, num caso ou noutro, o alcacel. O gado permanecia ali dias e dias, alimentando-se não só das forrageiras mas também de outros alimentos que, dia a dia, eram acarretados para aquelas terras, nomeadamente erva ceifada nas lagoas e incensos cortados nas terras de mato. O objetivo desta permanência era fazer com que o gado trilhasse ou estrumasse muito bem o terreno, pelo que, várias vezes durante o dia, ia sendo mudado, em pequenas cordadas. Para o prender de forma segura e de maneira a que não se soltasse e desse cabo de tudo, usavam-se as correntes que presas a uma estaca de ferro seguravam o animal por uma das mãos, geralmente pela esquerda.
As correntes eram constituídas por grossas argolas de ferro enlaçadas umas nas outras e tinham duas partes distintas, unidas por um suevo, também ele de ferro. A primeira parte da corrente, a maior e mais forte, que ficava oposta à mão da rês era constituída por argolas mais grossas. Numa das extremidades possuía uma espécie de arsa, também de ferro, que se enfiava na estaca que a fixava à terra. Por sua vez, a outra extremidade prendia-se ao suevo que funcionava como destorcedor, impedindo que a corrente se enrolasse e encolhesse magoando o animal que prendia. O suevo era também constituído por duas peças de ferro, sendo uma em forma de triângulo, com o furo na base, no qual estava metida e rodava a segunda peça, um prego ou um pedaço de ferro em feitio de prego enfiado no buraco do triângulo. Era esta parte, oposta ao furo que, através de uma argola, se prendia na segunda parte da corrente, aquela que ficava próxima da mão do animal. Esta parte era bem mais curta e muito mais fina do que a oposta e que era presa de um dos lados o suevo. Era na outra extremidade, ou seja na ponta final que se prendia na mão do bovino, pelo que possuía um pequeno mas seguro gancho de forma a permitir que a ponta do corrente se enrolasse na mão do animal e se prendesse a uma das argolas. Tudo isto devia ser feito com muita segurança de maneira a impedir que a rês se soltasse o que constituía sempre um grande prejuízo, uma vez que solto, andava por cima das forrageiras, comendo aqui e além, sujando de bosta e urina o que impedia a alimentação posterior dos outros animais.
Por tudo isto as correntes deviam ser fortes, seguras, com bons suevos e potentes estacas, bem enterradas com um malho feito com um grosso toro retirado de um tronco de árvore, a que se aplicava um cabo de araçazeiro, de pau branco ou de buxo. No entanto como havia uns animais mais fortes e outros mais fracos existiam correntes mais grossas ou mais finas a que se prendiam estacas maiores ou mais pequenas. Muitas vezes e para maior segurança, sobretudo quando o terreno estava amolecido pela chuva e o animal era mais forte, colocavam-se grandes e pesadas pedras sobre a cabeça da estaca.
Na verdade as correntes com os seus apetrechos, outrora, eram objetos de grande utilidade, na Fajã Grande, sobretudo no que à pecuária dizia respeito, uma vez que todos os anos, durante os meses da primavera, era costume retirar as vacas dos palheiros e levá-las para os campos onde havia forrageiras. E que bom era beber uma tampinha de leite fresco, acabadinho de tirar da teta da vaca, quentinho, nas terras, na hora da ordenha, a cobrir-se de espuma branquinha e com um leve aroma de trevo ou erva-da-casta!
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A FESTA DE SANTO AMARO NA FAJÃ GRANDE
Uma das maiores e das mais importantes festas celebradas, durante o inverno, na Fajã Grande, na década de cinquenta era a Festa de Santo Amaro.
Amaro, segundo uns, Mauro ou Amauro, segundo outros, nasceu em Roma em 1512 e foi frade beneditino, tornando-se célebre, sobretudo, pelo seu poder taumaturgo. Conta-se que certa vez um colega seu, de nome Plácido, estava a afogar-se longe de todos, no açude de Subiaco. São Bento teve a visão do perigo e pediu a Amaro que fosse salvar o irmão religioso. Obediente, Amaro pediu a São Bento que o abençoasse e, sem hesitar e com a graça de Deus, correu e andou sobre as águas sem se afundar, agarrou Plácido pelos cabelos e trouxe-o para a margem não se apercebendo sequer, Amaro, de ter saído de terra firme. Quando Amaro deu conta do que sucedera atribuiu os méritos ao seu mestre, São Bento. Mais tarde, ao ser enviado por São Bento de Roma para a Gália (hoje França), a fim de, a pedido do Bispo de Le Man, estabelecer a vida monástica beneditina naquela região, foi vítima de grandes e variadas atribulações durante a viagem, mas a todas escapou milagrosamente. Mas foi sobretudo, após a sua morte que os milagres se multiplicaram e em breve Santo Amaro tornou-se conhecido, celebrado e venerado por toda a Europa Católica, sendo também escolhido para patrono dos aleijados e especialmente invocado para a cura de reumatismo, epilepsia, gota, rouquidão, resfriados e muitas outras doenças e maleitas.
Muito provavelmente por influência dos primeiros colonos e povoadores, nos Açores Santo Amaro também foi sempre alvo de grandes devoções por parte da população de todas as ilhas, sendo até que algumas freguesias açorianas o têm como padroeiro e, nalguns casos, o Santo até deu nome à própria localidade. Na Fajã Grande, assim como em Ponta Delgada, nas Flores e nas outras ilhas açorianas, o fiel e pioneiro discípulo do patrono da Europa, também é invocado para a cura milagrosa de inúmeras maleitas de pessoas e animais, sendo considerado o patrono dos sapateiros e dos artesãos de cobre.
Na Fajã Grande, Santo Amaro era invocado para cura de tudo o que fosse quebrado, torcido, desmanchado, fora do lugar ou para tudo o que tivesse qualquer tipo de lesão, mazela ou achaque em qualquer parte do corpo humano, desde das pontas dos pés até ao cocaruto da cabeça. Para além disso, o Santo ainda era invocado na cura das doenças das crianças, na eficiência e normalidade dos partos e até nas doenças ou mal olhados dos porcos, das vacas e das galinhas. Na igreja paroquial, num dos nichos laterais do altar da Senhora do Rosário havia uma pequenina imagem de Santo Amaro, vestido com o seu hábito de monge beneditino e em sua honra fazia-se uma enorme e grandiosa festa no segundo ou terceiro domingo de Janeiro, normalmente a seguir ao dia 15 do mesmo mês e agendado no calendário litúrgico como o dia a ele dedicado, por se comemorar a sua morte.
Para além de missa votiva, cantada e com sermão, tinha lugar de destaque, após as celebrações litúrgicas, um enorme leilão, onde eram arrematadas inúmeras ofertas feitas em massa sovada com o formato ou feitio da parte do corpo humano, da criança, do jovem ou do adulto ou até do animal que o Santo milagreiro havia curado miraculosamente. Antes da missa o altar enchia-se por completo de promessas, personificadas por pães de massa sovada em forma de cabeça, braços, estômago, pernas, pés, de crianças (umas já crescidas outras acabadas de nascer), de porcos, vacas e até galinhas que ali ficavam ali durante a missa, sendo benzidas, finda a qual eram solenemente benzidas e depois arrematadas em leilão, no adro da igreja.
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PALAVRAS, EXPRESSÕES E DITOS UTILIZADOS NA FAJÃ GRANDE (XXI)
Abanar – Acenar. Cumprimentar com um aceno de mão.
Amachucar-se – Magoar-se.
Aporrinhamento – Falta de força.
Atalhar – Lavrar o terreno a segunda vez, com arado de madeira, antes de o lavrar para a sementeira.
Ave de rapina – Pessoa maldosa.
Aviar peixe – Retirar as escamas e as tripas ao peixe.
Bafão – Muito calor.
Baque – Emoção sofrida por se receber uma má notícia
Barbilho – Cordão de prender o chapéu ao pescoço.
Bichas – Lombrigas
Bifes de combrada – Carne de porco com couves.
Bispar pelo rabo do olho – Olhar de soslaio.
Correão – Pessoa que passa muito tempo fora de casa.
Cheio até aos olhos – Farto depois de comer.
Chave de boca de grilho – Chave inglesa.
Cagão da Visita – Criança medrosa
Cagança –– Mania.
Café negro - Café sem leite, geralmente bebido à tigela.
Cobradura – Hérnia.
Cisqueira – Pá de juntar o lixo.
Dar caminho – Dizia-se das terras cujos donos eram obrigados a dar passagem ao de outras contíguas e que não tinham acesso direto.
Dar criação – Educar.
Dar de meias – Arrendar, sendo o pagamento da renda feito com metade do que o terreno produz.
De cu p’ra trás – De costas.
Debulho – Recheio de galinha assada.
Desaparecer do mapa – Morrer.
Dia de S. Nunca à tarde – Dia impossível de acontecer.
Direito abaixo - Descer
Ei – Forma de chamar alguém. Forma de incentivar os bovinos a andarem.
Embrulhão – Forma mais delicada de chamar intrujão.
Ementes – Enquanto.
Encarrilhado – Hirto. Firme.
Esganiçado – Aquele que fala muito alto.
Estoirar – Arrebentar. Estralejar dos foguetes ou da bomba
Estrabouchar – Contorcer-se com dores.
Falar de rijo – Falar alto.
Ficar para Deus me levar – Ficar desapontado.
Inchume - Inchaço
Jou – José (nome próprio).
Machona – Rapariga ou mulher com atitudes pouco femininas.
Maniada – Vaca com cio.
Mélroa – Fêmea do melro.
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A FONTECIMA
O lugar da Fontecima, apesar de pequeno era um dos sítios mais férteis e produtivos da Fajã Grande, possuindo, na década de cinquenta, excelentes e fecundos terrenos agrícolas. Dos melhores da freguesia se excetuarmos os situados à beira mar, nomeadamente Furnas e Porto. Aliás na Fontecima as propriedades que não deviam ultrapassar a meia dúzia eram, na totalidade, terrenos agrícolas, embora algumas fossem extensos cerrados e outras currais ou pequenas belgas, mas todas muito produtivas. Para além do milho que se cultivava ali em grande escala, a Fontecima ainda produzia bata doce de boa qualidade, favas e, por entre o milho era semeado trevo ou erva da casta que nos meses de abril e maio serviam de sustento às vacas de leite e ao gado alfeiro que ali era amarrado à estaca.
A Fontecima fazia fronteira a norte com o Alagoeiro, a este com a Ribeira, a sul com o Batel e a oeste com a Bandeja, pelo que se situava muito perto do povoado, nomeadamente, das últimas casas da Fontinha, tornando assim o seu acesso mais rápido e facilitado.
No entanto, o que mais caracterizava este lugar era o de ele ser atravessado de norte a sul, por um estreito caminho, designado por Canada da Fontecima, uma espécie de Via Rápida a ligar o Alagoeiro ao Batel, evitando um percurso bem mais demorado pela Ribeira. Mas tratava-se de uma canada típica, porquanto, de todas as canadas da Fajã Grande, e não eram poucas, esta era a única que tinha o piso igual ao dos caminhos, isto é, do tipo calçada romana. O trajeto era curto, apertado, de bom piso, permitindo um de fácil e agradável caminhar. Uma boa alternativa ao outro caminho que também ligava o Alagoeiro ao Batel e permitia o acesso a todos os outros lugares do Sul e Leste da Fajã, incluindo a Rocha. Mas este caminho no seu normal trajeto dava uma grande volta pela Ribeira, passando junto ao Arame, o que significava um percurso bastante mais longo do que o que atravessava a Fontecima, obrigando, consequentemente, os transeuntes a uma demora excessiva. Na verdade para quem queria seguir para o Batel e para as outras localidades do sul da freguesia, até aos Lavadouros, se fosse pela Canada da Fontecima realizava um percurso bem mais curto e mais rápido. Era pois, objetivo prioritário desta canada, não apenas dar acesso às propriedades que a ladeavam e a outras circundantes, mas também e sobretudo ligar de uma forma mais rápida e eficaz, sobretudo para quem carregava molhos ou cestos às costas, o Batel com o Alagoeiro e vice-versa. Encurtavam-se distâncias, reduzia-se o trajeto, poupavam-se energias e aliviavam-se as costas de quem vinha carregado com molhos ou cestos. Por tudo isto a Fontecima era lugar de grande movimentação de pessoas, muitas vezes carregadas com molhos, cestos e sacos à espera do descansadouro do Alagoeiro.
Mas a Canada da Fontecima, apesar de tudo, não permitia a circulação de gado, nem muito menos de carros ou corsões. É que de tão estreita e apertada que era, não tinha a largura necessária para que circulassem duas rezes, ao lado uma da outra. Como, por vezes, havia gado a caminhar para baixo e outro para cima, o que ali não poderia acontecer, estava praticamente vedada a circulação de bovinos.
O trajeto da Canada da Fontecima era simples mas de boa qualidade e, sobretudo, muito mais curto. Partindo-se do Alagoeiro, junto a um poço que ali havia para o gado beber água, voltava-se à direita, evitando o caminho da Ribeira. Subia-se uma pequena ladeira, esta sim bastante larga, paralela à casa do Luís Fraga, ao cimo da qual ficava a Casa da Água, precisamente no sítio onde se situava uma nascente ou fonte que dava nome ao local e cuja água abastecia toda a rede da Fajã. A partir da Casa da Água, então, entrava-se na canada propriamente dita, iniciando-se o seu trajeto com uma pequena curva ao lado daquela casa. Embora encastoada nos contrafortes do Batel e no sopé da Rocha, do alto da Fontecima descortinava-se ao longe uma parte do casario da Fajã, do mar e a Ponta. Esta vista, no entanto, era obstruída em certos lugares porque as paredes que ladeavam os terrenos eram muito altas e grossas, impedindo quem por ali passasse ou permanecesse de avistar o que quer que fosse, a não ser uma pequena nesga do céu.
A origem deste topónimo parece ser de fácil explicação. Na verdade ali se situava uma nascente ou fonte, a última ao cimo da Fontinha e cuja água, a partir da década de quarenta foi aproveitada para abastecer a freguesia. De Fonte do Cimo ou Fonte de Cima a Fontecima foi fácil e, aparentemente, um pequeno salto.
A Fontecima, como outros imponentes lugares da Fajã Grande a marcar um espaço e um tempo e a escrever a história da Fajã Grande, sobretudo, mediante o esforço, a bravura e o empenhamento dos nossos antepassados.
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A RAPOSA E O GALO
Era uma vez uma raposa que andava pelos campos na procura de alimento, pois já não comia há dias e, por conseguinte, estava muito esfomeada. De repente, olhou para o alto e viu um galo muito bem empoleirado em cima do telhado de um palheiro a descansar muito regaladamente. A raposa, vendo ali aquele belo repasto começou a afiar os dentes e a magicar na maneira como o havia de caçar uma vez que lhe era impossível subir para o telhado do palheiro. Começou, então, a falar-lhe de cá de baixo, dizendo:
- Bom dia amigo galo!
O galo, muito admirado com um tratamento tão cordial e a que não estava habituado, perguntou-lhe:
- Por que me tratas assim, por amigo? Afinal eu bem sei o que queres…
- Então ainda não sabes? – Disse a raposa. - Saiu agora uma lei do Governo que ordena que todos os animas sejam amigos uns dos outros e que haja paz entre todos. Nós as raposas já cumprimos a nova lei, a guerra com os cães e já não comemos galos nem outros animais. Queremos fazer as pazes e ser amigas de todos. Podes pois descer cá para baixo, que eu já te não faço mal. Quero-te abraçar.
Mal acabara de pronunciar estas palavras quando aparece lá ao longe uma matilha de cães. Ao descortinarem a raposa começam a correr, enraivecidos, na direção dela a ladrar em grande berreiro. A raposa, distraída com o galo, ia sendo apanhada pelos cães, mas ainda fugiu a tempo, correndo com quanta força tinha.
O galo, numa gargalhada cerrada, de cima do telhado do palheiro bem lhe gritava:
- Mostra-lhe a lei! Mostra-lhe a lei!
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A LENDA DO CALHAU DE NOSSA SENHORA
No alto da Eira da Cuada, a sul da Fajã Grande, na ilha das Flores, no chamado Caminho da Missa, outrora via obrigatória para quem se quisesse deslocar da Fajã Grande à Fajãzinha ou a qualquer outra localidade da ilha, excepto a Ponta Delgada e Cedros, existia e, pelos vistos existe ainda hoje uma pedra, chamada Pedra da Missa ou Calhau de Nossa Senhora. Para lá chegar, subia-se a Assumada, no cimo da qual havia um cruzeiro, assinalado por uma cruz de madeira afixada numa das paredes mais altas duma terra de cultivo ali existente, indicando o termo da rua. A seguir o caminho tomava a forma de cruz, desdobrando-se em dois: um seguia para leste ou para o interior da freguesia, na direcção das relvas e das terras de mato, enquanto o outro seguia em frente e a direito, passando ao lado do Pico da Vigia, por entre relvas, campos de milho e algumas hortas. No cimo da Eira da Cuada e antes de se iniciar a descida da ladeira do Biscoito, finda à qual se chegava à Ribeira Grande, ficava a tal pedra, um calhau solto, no meio de um descampado, com duas pequenas cavidades na parte superior, semelhantes às marcas de dois minúsculos pés. Era essa pedra que, desde tempos muito antigos, se chamava Pedra da Missa ou Calhau de Nossa Senhora.
Reza a tradição que o nome deste caminho Caminho da Missa se deve ao facto de que, antigamente, quando a Fajã Grande ainda não era paróquia e, consequentemente, não tinha nem igreja nem pároco, ser a via por onde os habitantes daquele lugar passavam todos os domingos, para irem assistir à missa na igreja paroquial, situada no centro da Fajãzinha. Acontecia porém que a Ribeira Grande, a ribeira que separa as duas localidades, como é bastante larga e com um caudal muito volumoso, não possuía ponte mas sim umas pequenas passadeiras ou alpondras que por vezes ficavam submersas na água, o que, juntamente com a força do caudal, umas vezes dificultava e outras impedia por completo a sua travessia. Quanto tal acontecia os fiéis, impossibilitados de atravessar a ribeira, ficavam do lado de cá, naquele alto, olhando para a igreja da Fajãzinha, que dali de se avistava, rezando e cantando durante a celebração litúrgica e apenas se dispersando e voltando as suas casas quando viam as pessoas a saírem da missa, lá ao fundo. Além disso faziam-se sempre acompanhar duma pequenina imagem de Nossa Senhora que colocavam em cima da pedra, durante a missa, ao redor da qual ajoelhavam e rezavam. Em paga da sua grande devoção, a imagem de Nossa Senhora, que fora ali colocada tantas e tantas vezes pelos crentes, deixou, para sempre, bem gravadas naquela calhau as marcas indeléveis dos seus pés celestiais.
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OS AÇORES E A ATLÂNTIDA
Hoje é crença comum que, há muitos anos, existiu, no Oceano Atlântico, localizada, parcialmente, no lugar onde hoje se situa o arquipélago dos Açores, um continente lendário, chamado Atlântida. Segundo Platão tratava-se de uma ilha enorme e que era uma espécie de ponte entre os grandes continentes então existentes.
Esta ilha gigante estava dividida em três regiões: a região setentrional chamada Poseidonis, a maior e que se situava num planalto onde hoje ficam as ilhas açorianas, uma segunda constituída por uma enorme ilha central chamada Antília, e a terceira constituída pelo Arquipélago Equatorial que chegava até às proximidades do Equador. Há quem cuide, no entanto, que a civilização Atlante não estava confinada a estas zonas no oceano Atlântico, mas que, pelo contrário, se estendia por um imenso vale que hoje é o mediterrâneo. Era um vale húmido e fértil, atravessado por rios que desciam desde as vertentes continentais e cujo leito dos oceanos foi subindo lentamente, aumentando a pressão sobre a enorme barreira que separava o oceano do vale e que estava situada na zona que hoje chamamos de Gibraltar. Aos poucos, o vale foi sendo inundado até ao dia em que, tal como nas ilhas, enormes tremores de terra se fizeram sentir e acabaram por destruir essa barreira, precipitando as águas do oceano numa enorme torrente diluviana que tudo destruiu.
O desaparecimento deste mítico continente parece dever-se a convulsões várias entre os deuses e os demónios. A sua destruição é referida em quase todas as culturas do mundo através da mítica história do dilúvio, narrada não apenas na Bíblia mas noutras mitologias, incluindo o poema de Guigalmesh e da cultura grega, por exemplo, segundo a qual os deuses inundaram o mundo e destruíram a raça humana devido à sua maldade. Temos, assim, um cataclismo que assolou um vasto lugar, e um povo que, por ordens de deus, ou seja, dos seres extraterrestres, constrói embarcações para salvar parte da humanidade e assim dar corpo à quinta raça que se veio a formar depois do dilúvio, a nossa raça actual.
Muitos relatos existem sobre esse lugar lendário, contanto as mais diversas histórias. O de Platão, senão o mais interessante, é o mais conhecido:
"Pois, naquele tempo, podia-se atravessar o mar. Tinha uma ilha diante dessa passagem que vós chamais as colunas de Hércules. Esta ilha era maior que a Líbia e a Ásia reunidas. Os viajantes daqueles tempos podiam passar desta ilha para outras ilhas, e dessas ilhas podiam alcançar o continente, na margem oposta deste mar que merecia verdadeiramente o seu nome".
Mas apesar de situada em pleno Atlântico e de se saber que emergiu nas profundezas do mar há milhares de anos, na sequência de violentas erupções vulcânicas, ainda bem vivas nas ilhas dos Açores, manifestando-se diariamente sob as mais diversas formas de atividades vulcânicas secundárias, segundo o tenente-coronel José Agostinho, a Atlântida nunca existiu e não existem provas científicas de que os Açores sejam o remanescente do mítico continente da Atlântida que, outrora, teria sido o berço de uma próspera e culta civilização, desaparecida nas profundezas do oceano.
NB – Dados retirados da Net
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EMANUEL FELIX
Emanuel Félix nasceu em Angra do Heroísmo, a 24 de Outubro de 1936 e faleceu na mesma cidade em Fevereiro de 2004. Poeta, professor, ensaísta e técnico de restauro artístico, Emanuel Félix viveu quase toda a sua vida na ilha Terceira. Como poeta, Emanuel Félix impõe-se como uma das vozes literárias açorianas mais destacadas da segunda metade do século XX. Desde jovem e juntamente com Rogério Silva e Almeida Firmino esteve ligado à Gávea, Revista Açoriana de Arte, onde publicou uma «Breve Antologia de Poesia Açoriana». Em 1958 publicou o seu primeiro livro de poesia, Sete Poemas, geralmente identificado como precursor do concretismo, precedendo os poetas e a poesia que nos anos 60 reinventaram a plasticidade do discurso poético, entendido como parente próximo da figuração visual. Emanuel Félix prosseguiu uma escrita poética tão discreta como rigorosa. Em cada palavra dos seus poemas parece prolongar-se a experiência de quem fixa a cor certa ou o contorno exacto que numa tela antiga se reencontram.
As suas obras principais são: Sete Poemas, O Vendedor de Bichos, A Palavra o Açoite, A Viagem Possível, Seis Nomes de Mulher, O Instante Suspenso, Habitação das Chuvas e 121 Poemas Escolhidos.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A VIÚVA E O ENFORCADO
Era uma vez uma mulher considerada muito honesta. Quando o marido faleceu, fez por ele os maiores prantos que alguma vez se ouviram, chorou tanto de dor como nunca nenhuma viúva chorara e, não se contentando com as cerimónias fúnebres comuns que as outras viúvas mandavam celebrar nos funerais dos maridos, mandou fazer cerimónias solenes presididas pelo bispo, mandado vir da sede da diocese. Como era costume nesse tempo, o marido foi enterrado no adro da igreja da freguesia onde viviam e a mulher, cheia de dor, ali ficou a chorar, dia e noite, junto à sepultura do marido sem querer comer, nem afastar-se daquele lugar.
Aconteceu, por aqueles dias, terem ali perto enforcado um facínora, criminoso, para guarda do cadáver do qual, o juiz mandou colocar ali de sentinela, um soldado. Este ao ver a mulher muito chorosa e sem comer, junto da sepultura do marido, compadecido da sua grande mágoa, ofereceu-lhe a sua ceia e obrigou-a a que comesse, para não morrer à míngua. De seguida, persuadiu-a também a que se envolvesse num ato amoroso com ele. Esconderam-se entre umas árvores e o soldado descuidou-se da sua obrigação de vigiar o corpo do condenado. Vieram então os parentes deste e furtaram-no. Vindo depois o soldado, e não o encontrando, temendo um pesado castigo, veio lamentar-se junto da viúva, a qual o consolou e lhe resolveu o problema, tirando o corpo de seu marido defunto da sepultura, pelo qual havia feito tantos prantos e chorara com tanta dor, e deu-o ao soldado que assim o pôs na forca no lugar do facínora que havia sido condenado por vários e graves crimes praticados.
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MOGADOURO
Mogadouro é uma vila portuguesa, pertencente ao Distrito de Bragança, situada na Região Norte de Portugal e sub-região do Alto Trás-os-Montes. De acordo com os censos de 2011, possui 3 549 habitantes.
Mogadouro é sede de um município com a área 760,65 km², com 9 542 habitantes, constituído por 21 freguesias. O Concelho, limitado a norte por Macedo de Cavaleiros e Vimioso, a nordeste por Miranda do Douro, a sueste pela Espanha, a sul por Freixo de Espada à Cinta e por Torre de Moncorvo e a oeste por Alfândega da Fé, recebeu foral de D. Afonso III em 27 de Dezembro de 1272. Nesta região, além do português, fala-se sua própria língua: a língua mirandesa. O nome recorda o domínio árabe no Nordeste Transmontano. Pouco resta do seu castelo, para além da torre que ainda domina o monte, construído pelo rei Dom Dinis e cedido aos Templários em 1297. Junto à torre, é possível admirar o pelourinho, a Igreja Matriz seiscentista, algumas casas brasonadas e o Convento de São Francisco.
Mogadouro é uma vila calma e pacata que oferece um excelente artesanato, nomeadamente artigos de seda, linho, lã e couro. Ali perto situa-se a Serra da Castanheira, de onde se pode admirar, na primavera, o deslumbrante lençol branco das amendoeiras em flor. Mais além, de Penas Roias, também se desfruta de uma bela vista desta vila medieval. Na pequena aldeia de Algosinho, pertencente ao concelho, existe uma igreja do século XII com uma curiosa característica: o acesso é feito descendo uma escadaria de granito e, com a sua nave única e pilares românicos, mais parece uma cripta.
A sul da vila, surge a serra com o mesmo nome, onde floresce uma interessante paisagem florestal, com predominância de pinheiros e castanheiros, intercalada com alguns terrenos agrícolas, muito férteis, alguns junto à vila, onde predominam searas e pastagens. A norte, a suavidade das colinas também está povoada de terras cultivadas, onde é bem marcante a cor vermelha dos solos, que empresta à paisagem uma alternância cromática de tonalidades vermelhas e verdes de uma beleza singular. É neste contexto paisagístico que a actividade pecuária ganha maior intensidade. Entretanto, junto às linhas de água que serpenteiam por entre as colinas, nas zonas mais encaixadas, surgem pequenas hortas, regadas pelo engenhoso processo de cegonhas ou picotas Já nas zonas baixas e mais frescas, por vezes associadas também a linhas de água, surgem os lameiros, delimitados por sebes, árvores ou muros de pedra. Os lameiros são pastagens naturais irrigadas, a que se encontram muitas vezes associados os ulmeiros e os freixos, sendo a ramagem destes últimos por vezes utilizada na alimentação do gado. Nesta paisagem, irrompem alguns relevos mais acentuados, de entre os quais o mais notável é a serra da Castanheira, a norte do concelho e em cujo topo se situa a capela da Sr.ª da Assunção. Daqui se podem apreciar deslumbrantes paisagens.
Neste concelho vive uma população eminentemente rural, cujas principais atividades económicas continuam a ser a agricultura e a pecuária. A população, na sua maioria, dedica-se ao cultivo da oliveira, da vinha, do trigo, do centeio, das árvores de fruto, com destaque para o castanheiro. No que à pecuária diz respeito, o destaque vai para o gado bovino, sobretudo destinado à produção de leite. A produção de carne, no entanto, tem lugar de relevo, sobretudo devido à criação da raça mirandesa e que deu origem, na gastronomia, à já célebre posta mirandesa. Para além do gado bovino, os caprinos e os ovinos assumem, também, neste concelho, uma relativa importância nas economias familiares, produzindo carne, lã e leite, sendo este destinado, sobretudo, ao fabrico de queijo
No concelho existem importantes vestígios arqueológicos que nos fazem recuar até ao Neolítico. Mais recentemente Mogadouro teve um papel importante na defesa da fronteira contra as invasões castelhanas, tendo constituído, por isso, e dada a sua localização, um apoio precioso na formação da nossa nacionalidade.
Concelho eminentemente rural, de uma beleza agreste e doce, povoado de gente sã, afável e laboriosa, herdeira de um carácter nobre e de uma história rica e antiga, assim poderíamos caracterizar este pedaço do território nacional.
NB – Dados retirados da Net.
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UM PROFISSIONAL DIGNO E COMPETENTE
Nasceu na Ribeira Grande, ilha de São Miguel, precisamente no dia de São Mateus, corria o ano de 1949. Fez a instrução primária e entrou para o Seminário Colégio de Santo Cristo no ano lectivo de 1961/62, transitando, dois anos mais tarde, para o de Angra, frequentando-o, apenas, até ao sexto ano, completando a sua formação académica no Ensino Oficial. No Seminário revelou-se sempre um jovem dócil, delicado, humilde, simples, cumpridor e estudioso, pautando a sua conduta pela simplicidade, pelo respeito pelos outros, pelo companheirismo e pelo cumprimento do dever.
Profissionalmente seguiu a carreira bancária, trabalhando, primeiro, na Caixa Económica Açoriana e, mais tarde, no Montepio, revelando-se sempre um profissional digno, competente, sério e responsável, atingindo, no final da sua carreira, lugares de responsabilidade e de chefia.
Para o Encontro trouxe a sua jovialidade, a sua simpatia, a sua satisfação em tudo rever e tudo reencontrar, sobretudo os amigos e colegas de outrora. Participou naquele inesquecível almoço no restaurante “Beira-Mar”, em São Mateus, com um grupo restrito, no dia antes do primeiro dia do Encontro. Depois e, nos dias seguintes, participou em todas as actividades, visitou todos os lugares, abraçou todos os colegas, manifestou uma força contagiante e uma dignidade insofismável. Por tudo isso e pela alegria que trouxe e pelo contentamento que manifestou em todos reencontrar, tornou-se mais um Senhor do Encontro.
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MOINHO E MOENDA
“Moinho parado não cobra moenda.”
Mais um interessantíssimo provérbio muito utilizado, antigamente, na Fajã Grande e com características tipicamente açorianas, nomeadamente da ilha das Flores e, mais concretamente, da Fajã Grande, onde o moinho, na década de cinquenta, ainda era rei e senhor porque fundamental na limitadíssima economia da mais ocidental freguesia portuguesa. Este adágio, que se aplica na plenitude do seu significado a um quotidiano de trabalho exaustivo, intenso e contínuo do povo da Fajã Grande dos tempos antigos, parece ser a tradução ou adaptação de um outro muito conhecido e também muito comum nas ilhas: Barco parado não ganha frete.
Na Fajã Grande, na verdade, assim como os moinhos ou os barcos, os humanos quase não podiam estar parados a descansar. A vida agrícola a que se dedicavam a tempo inteiro, a que se associava a pecuária, era muito exigente, para além de cansativa, árdua e trabalhosa. Não dava tréguas. Era necessário trabalhar durante todo o dia e, muitas vezes prolongar o trabalho pela noite dentro ou iniciá-lo alta madrugada. Parar para descansar ou, ainda pior, por preguiça, era sinal de que os produtos agrícolas teriam menos qualidade ou nem chegariam a crescer, feneceriam por completo, por isso era necessário, contínua e permanentemente, incentivar o povo e fazer apelos a que se trabalhasse. O moinho a girar dia e noite, com as águas das ribeiras era, indubitavelmente, um dos melhores exemplos para acicatar a atividade laboriosa dos habitantes da Fajã Grande, até porque os moinhos de água terão surgido na freguesia, muito provavelmente, desde os primórdios do seu povoamento, fazendo parte do seu património e da sua história.
Recorde-se que, na Fajã Grande, o moinho era a única instalação destinada à pulverização dos grãos de milho, fazendo-o por meio de mós, movidas pela água das ribeiras que corria sem cessar durante todo o ano, inclusive nos meses de verão. O termo moinho terá a sua origem no latim molinum, vocábulo originado do verbo molo, que significa moer, triturar cereais ou fazer rodar à mó. Sabe-se hoje que o moinho de água é muito antigo e terá surgido, muito provavelmente, no século II d. C. sendo já usado pelos gregos e pelos romanos, que depois o espalharam pela Europa, tendo chegado aos Açores por altura do povoamento, uma vez que as ilhas eram ricas em cereais, na altura o trigo. Serviam, como indica a sua etimologia, para moer os cereais e transformá-los em farinha. É um engenho muito simples e que foi utilizado durante praticamente dois milênios, permanecendo ainda hoje em uso, nalguns lugares, embora mais com o sentido museológico do que utilitário.
Os antigos moinhos da Fajã Grande desapareceram. Quase todos estão em ruinas e um foi recuperado mas como casa de turismo. O único moinho recuperado e em atividade, está situado a sul, na fronteira entre a Fajã Grande e a Fajãzinha. Trata-se do chamado moinho da Alagoa, o qual existe há quase século e meio, pois ostenta, no frontispício, a data de 1869. Detentor de um duplo engenho, o moinho da Alagoa labora através do aproveitamento da força da água da ribeira da Alagoa e, na década de cinquenta, moía para os habitantes da Fajãzinha e para os da Cuada. Hoje mói para toda a ilha.
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CANTARES DOS REIS
Na década de cinquenta, celebrado no dia seis de janeiro, o dia de Reis era considerado Dia Santo Abolido, pelo que lhe era guardado respeito como se fosse um domingo e era, na verdade um verdadeiro dia de festa. Um dia talvez mais festivo do que o Natal ou o dia de Ano Bom.
Assim como no primeiro dia do ano, depois da missa da manhã e do jantar grupos de crianças percorriam todas as ruas da freguesia, a cantar os Anos Bons, junto das portas de quase todas as casas. Geralmente eramos mesmos grupos que haviam cantado os anos bons e os rituais repetiam-se. Apenas os versos que cantavam eram diferentes- Chegados junto à porta da sala de cada casa cantavam:
Os três reis do Oriente,
Sonharam, sonharam bem.
Sonharam que era nado,
O Menino em Belém.
Os três reis do Oriente,
Tiveram sonho profundo.
Sonharam que era nado,
O Supremo Rei do Mundo.
Sem o ver nem o conhecer,
Cheios do amor divino,
Os três reis do Oriente
Se puseram a caminho.
Largaram na maior pressa,
Deixaram o seu tesouro,
As ofertas que levaram
Eram mirra, incenso e ouro.
Foram por cada de Herodes,
Por ser o maior reinado.
Para ver se lhes dizia
Onde Jesus era nado.
Herodes lhes respondeu
Que em breve lhes diria.
Que esperassem mais um pouco
Que ia ver à profecia.
E segundo a profecia,
Há-de nascer em Belém.
Esperai aí um pouco,
Vou adorá-lO também.
Herodes como malvado,
Como perverso e malino.
Aos três reis lhes ensinou
Às avessas o caminho.
Os três reis que eram santos,
Uma estrela os guiou,
Do alto duma cabana,
Brilhantes raios deitou.
Do alto duma cabana,
Fez a estrela sinal,
Que ali estava o Menino,
Desde a noite de Natal.
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A FAJÃ GRANDE NA DÉCADA DE CINQUENTA
A freguesia da Fajã Grande ocupava, juntamente com a Fajãzinha, uma ampla fajã delineada a oeste pelo mar e a norte, a leste e a sul por uma altíssima rocha que a separava do resto da ilha, isolando-a das restantes freguesias e das duas vilas – Santa Cruz e Lajes. Na década de cinquenta o isolamento era tal que até as deslocações à freguesia mais próxima, a Fajãzinha, sobretudo no inverno, tornavam-se bastante difíceis e por vezes impossíveis. Era necessário atravessar a Ribeira Grande, muito larga, apenas com uma ponte pedonal e por vezes levada pela correnteza e com um caudal fortíssimo. As margens ligavam-se por uma fila de enormes calhaus, mais ou menos alinhados, alguns ali colocados pela natureza outros pelos homens e relativamente próximos uns dos outros. Chamavam-se passadeiras. Quem se aventurasse a atravessar a ribeira, teria que o fazer saltando de calhau em calhau, o que, por vezes e para os menos afoitos, provocava escorregadelas que, para além de assustadoras, encharcavam uma boa parte da roupa. Os animais atravessavam-na a pé ou a nado. A ribeira, no entanto, não dificultava apenas as deslocações à Fajãzinha. Era por ali também que se ia às vilas ou às outras freguesias. Apenas para Ponta Delgada se virava a norte, subindo a rocha da Ponta, percorrendo um sem número de atalhos e veredas, saltando tapumes, pulando grotões e atravessando relvas para encurtar caminho.
Todas estas deslocações para além de muito difíceis eram também demoradíssimas. As ligações por mar, no inverno, não existiam.
Assim, o isolamento em que vivia a freguesia era total, absoluto e permanente.
No meio deste isolamento existia uma beleza pura, original e sublime. Do cimo do Pico da Vigia podia desfrutar-se de uma vista aprazível, deslumbrante e encantadora sobre a Fajã. Talvez mesmo uma das mais belas vistas de toda a ilha das Flores.
Logo à direita de quem subia, divisava-se, ao longe o oceano, ora manso e azulado, ora revolto e esbranquiçado de espuma, ornamentado pelo Monchique e pela Baixa Rasa, como que envolvendo e abraçando sem disfarce e sem vergonha, em semicírculo, a extensa fajã, delimitada a norte pelo alto do Portal e a sul pela Rocha dos Bredos. Depois, mais perto, a mancha negra, basáltica e rendilhada do baixio, com os seus caneiros e enseadas, onde se destacavam o Redondo, a Retorta, o Caneiro das Furnas, a Baia de Água e o Poceirão com o Calhau da Barra a fiscalizar passagem para o Atlântico. Mais além, espraiava-se a enorme Baía, debruada pelo Rolo, um amontoado inaudito de pedras polidas e arredondadas, estendendo-se ao longo da Ribeira das Casas e das Covas, desde o Pesqueiro de Terra ao Ilhéu do Cão, metamorfoseando-se de novo em baixio, lá ao fundo, junto à rocha da Ponta. Já mais perto, a igreja rodeada pelas casas ordenadas em arruamentos simétricos, umas brancas, outras cinzentas, com os seus telhados avermelhados, aglomerando-se e misturando-se com cerrados, belgas e courelas onde florescia milho, batatas e couves. Mais perto ainda, já como que a prolongar-se pela encosta acima, pequenas pastagens e algumas terras de mato galvanizadas de um verde onde se misturavam incensos, faias, canas, fetos e cana-roca. Finalmente, mas muito distante, a norte, já para além da ribeira do Cão, a Ponta, onde as casas se postavam em fila, muito bem arruadas na direcção da ermida da Senhora do Carmo, encravada nos contrafortes da rocha. Contrastando com o oceano e do lado oposto, um semicírculo pétreo e altivo, formado pelas rochas da Ponta, das Covas, das Águas, dos Paus Brancos, dos Lavadouros e do Curralinho, povoadas de ribeiras e de cascatas onde a água se desprendia em fluxos ritmados e refulgentes sob o verde dos socalcos e andurriais e o negro das fragas, ravinas e penhascos.
Do outro lado e a sul, a segunda parte do semícirculo. Muito ao longe as rochas da Figueira e dos Bredos a protegerem a Fajãzinha, onde as casas, tão distantes e tão pequeninas, se assemelhavam a minúsculos salpicos esbranquiçados, como que confundidos com a enorme mancha verde das terras de mato, dos campos e das pastagens. Depois a Cuada com a velhinha Casa do Espírito Santo e pouco mais de meia dúzia de casas perdidas entre hortas e pomares, consubstanciando-se, mais adiante, na Eira-da-Quada, com o oceano extenso, resplendoroso e sempre predisposto a receber o volumoso caudal da Ribeira Grande. Finalmente a rocha da Alagoinha povoado de um número quase infinito de grotas e cascatas, muitas delas dia e noite a escorrer, fazendo transbordar o Poço da Pata, semiencoberto pelo arvoredo do Vale Fundo, do Pocestinho e da Cabaceira.
No cimo do Pico da Vigia existia uma pequena casota branca, destinada a vigia de baleia, com uma enorme fresta no mural voltado para o oceano, que permanecia sempre aberta sobre o mar para que o vigia ali sentado horas a fio, avistasse as baleias e, de imediato, lançando um foguete lá do alto, avisasse os baleeiros, entretidos cá em baixo nas suas courelas, em pequenas fainas agrícolas, de tão gratificante descoberta. Daí a razão do seu epíteto.
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PADRE MANUEL JOAQUM DE FREITAS
O padre Manuel Joaquim de Freitas nasceu na Fajã Grande em 1803, segundo um dos livros de registos de batismos da paróquia das Fajãs, com sede na Fajãzinha, uma vez que a Fajã Grande, nessa altura, ainda não era paróquia. O livro inclui registos referentes aos batismos realizados durante os anos de 1794 a 1811, um dos quais, referente ao ano de 1803, com o registo número 11, diz respeito a uma criança do sexo masculino com o nome de Manuel, filho de José Caetano de Freitas Borreco (devendo Borreco ser apelido) natural da Fajã Grande e de Ana Joaquina de Freitas, natural da Cuada, casados na igreja da Fajãzinha, em 25 de Abril de 1799. A criança era neto paterno de Caetano de Freitas Teodósio e de Ana de Freitas e materno de José Pereira e Catarina de Freitas. O registo indica que nasceu a 28 de Março e que foi batizado na igreja da Fajazinha. Foram padrinhos Manuel de Freitas e sua mulher Maria de Freitas moradores no lugar da Ponta. O batizado foi oficiado pelo vigário das Fajãs, o padre José Caetano Martins.
Naturalmente que o jovem Manuel abandonou a ilha para realizar estudos e receber ordens, tendo, muito provavelmente exercido os primeiros anos do seu múnus sacerdotal noutra ilha do arquipélago, uma vez que só a partir de 1848 começou a trabalhar na ilha das Flores, onde a maior parte da sua atividade sacerdotal teve lugar. Foi cura nas Lajes de 1848 a 1851, reitor da paróquia dos Cedros de 1851 a 1862 e reitor da então recentemente criada paróquia do Mosteiro de 1863 a 1869, ano em que se aposentou, fixando residência na Fajã Grande, mais concretamente na rua Direita, como manente, onde veio a falecer, em 5 de Março de 1874. Foi sepultado no cemitério da Fajã Grande, tendo oficiado as cerimónias fúnebres o primeiro vigário da nova paróquia de São José da Fajã Grande, o padre António José de Freitas.
Reza assim o registo do óbito do Padre Manuel Joaquim de Freitas, como consta de um dos livros de registo de óbito daParóquia de São José da Fajã Grande, referente ao longínquo ano de 1874:
Aos cinco dias do mez de Março do anno de mil e oitocentos e setenta e quatro, pelas dez horas do dia na casa número oitenta e nove da rua Direita desta freguesia da Fajam Grande Concelho da Villa das Lagens ilha das Flores Diocese de Angra falleceu rendo recebido os Sacramentos da Egreja hum indivíduo do sexo masculino por nome Manuel Joaquim de Freitas de idade de setenta anos, Presbitero, natural e morador nesta mesma Freguesia, filho legítimo de António José de Freitas lavrador e de Ana Joaquina governo doméstico naturaes e moradores nesta mesma Freguesia; fez testamento, foi sepultado no Cemitério Público. E para constar lavrei em duplicado este assento que assigno. Era ut supra. O Vigário António José de Freitas.
Averbado na margem: Nº 4 Reverendo Manuel Joaquim de Freitas.
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SARGAÇO
Noite escura. A manhã tardava em clarear. Clara sentiu um bater martelado na janela do seu quarto. A mãe já se levantara e, alumiada pelo brasido do lar, cirandava na cozinha, no meio duma penumbra confusa e impertinente. De fora um vozeirão grave e solene:
- Ó vocês, levem garfos, cestos e um pingo de café para o Rolo. Tá a sair uma grandeza de sargaço.
Não foi preciso esclarecer ou perguntar o que quer que fosse. Clara levantou-se de um salto e entrou assarapantada pela cozinha a alertar a progenitora. Bem conhecera a voz do Ricardo. O pai saíra de casa com destino às Covas para ceifar um molho de erva, Decerto que se havia enfiado no Rolo, na retirada do sargaço.
- E aquele home que já não pode cum nada e a meter-se sempre em grandes trabalheiras. Eu me benzo do Coiso Mau! Tanto que o aviso e lhe peço, Não há maneira de se aquietar. E eu sem o poder ajudar!
- Deixe lá mãe. Faça o café que eu vou levar-lhe os garfos e os cestos. Hei-de ajudá-lo c’ma puder.
Pouco depois, com a escuridão ainda a aguçar-lhe o medo, Clara abriu a porta da cozinha que dava para os pátios traseiros. Cestos à cabeça, enfiados uns dentro dos outros, dois garfos alçados sobre o ombro direito e uma lata de café bem quente com leite, onde a mãe havia migado umas fatias de pão, com uma colherada de açúcar.
A Rua Direita ainda estava deserta, mas na Tronqueira, para lá da casa do Belchior, já se viam muitos vultos apressados e cambaleantes que, como ela, se encaminhavam para o Rolo, na demanda do sargaço.
Todos os anos era aquela efervescência, desprezível para alguns, indiferente para outros mas gratificante para a maioria. No Outono, com os ventos de oeste, com o mar a abarrotar de maresia e com as ondas a encapelarem-se alteradas, em certos dias, o Rolo cobria-se de um extenso tapete aveludado, fofo, castanho e amarelado que ia do Pesqueiro de Tera até à Ribeira das Casas. Era o sargaço que, arrancado das profundezas do oceano, trazido por correntes e marés, ali vinha encafuar-se, sendo depois atiçado para terra pelo reboliço das ondas e pela correnteza da maré. O Reboredo era sempre dos primeiros a chegar. Assenhoreava-se de uma bom pedaço do Rolo, demarcava com canas e paus o seu território e, a partir de então, todo o sargaço que o mar ali trouxesse era seu. Depois era só atirá-lo à mão, à garfada, aos cestos, bem mais para cima, a fim de que a maré, ao encher, assim como o trouxera, agora o não levasse.
Quando Clara chegou ao Rolo já os primeiros raios da aurora, embora tímidos, espreitavam sobre a Rocha dos Paus Brancos. Um reboliço enorme espalhava-se sobre todos aqueles calhaus, agora atapetados de algas mortas. Homens descalços e de calças arregaçadas até aos joelhos lutavam contra a braveza das vagas, na mira de arrecadar o maior quinhão. As ondas num vai e vem tremendo, assustavam os homens, afugentando-os quando subiam mas incentivando-os quando desciam. Muitos já haviam amontoado uma boa safra, mas todos se aventuravam na conquista de mais. O pai alapara-se mesmo ali, logo no início do Rolo, junto ao ilhéu do Constantino. Fora dos primeiros a chegar.
Clara saltitando de pedregulho em pedregulho, aproximou-se do eito, onde o pai, todo molhado, retirava das ondas temerosas e altivas, mancheias de sargaço encharcado. Colocando a latinha do café em lugar seguro, depondo cestos e garfos, atirou-se de rajada sobre o montículo de sargaço que o pai já havia armazenado. Ali tudo era cheiro a maresia e sabor a salinidade, ali, tudo era um tactear fofo, um saltar acolchoado, um contacto sublime e terno com o aroma delicado e doce do mar. E enquanto o pai, fazendo uma pausa na safra, se entretinha nas sopas, Clara, descalçando-se, aproveitou para retouçar, rebolar, pinchar, saltar, pular e espinotear sobre o montículo de sargaço que o pai ali já retirara do mar.
Depois, ora fugindo às ondas, ora deixando-se banhar pela frescura inebriante das águas lá foi, com galhardia e excelência, ajudando o pai. Ao meio-dia, quando a mãe chegou trazendo, num cesto, à cabeça, o almoço, o monte de sargaço do Reboredo era um dos maiores do Rolo.
O diabo era agora, de tarde, quando a maré subisse ao ponto de recusar a cedência sequer de mais uma febrinha que fosse, acarretá-lo para o lago, onde ele havia de ficar a fermentar, durante meses, até se transformar em precioso adubo. O pai a encher os cestos no lago, a despejá-los e a acalcar o sargaço… O problema era acarretá-lo, em cestos pesadíssimos, muito cheios, bem acuculados e a escorrerem água por quantas juntas tinham!...
E foi o Câncio, o filho do Machado, que, de boa vontade, se veio oferecer para ajudar. Perante a anuência do Reboredo, o rapaz que desde há muito catrapiscava o olho à Clarinha, cuidou que aquele seria um dia de esperança – esperança de, através da ajuda no sargaço, conquistar, para sempre, o coração da moça. E não se enganou, o bisbórrias.
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O PRIMEIRO DIA DO ANO NA FAJÃ GRANDE NA DÉCADA DE CINQUENTA
O primeiro dia do ano, ou dia de Ano Novo, sobretudo para as crianças, na Fajã Grande, nos anos cinquenta, era um verdadeiro dia de festa. A última noite do ano, no entanto era como todas as outras. Destinada ao sono. No entanto, antes de adormecer, as crianças ouviam todos os anos uma curiosa lenda, segundo a qual, à meia-noite, no Outeiro, junto à cruz, o Ano Velho e o Ano Novo travavam uma árdua luta, com o objetivo de decidirem entre si quem ficaria a mandar no próximo ano: se o Ano Velho se o Ano Novo. Assim adormeciam nas suas camas de palha e casca de milho, uns agarrados aos outros, muito bem cobertos e caladinhos, com os olhitos muito arregalados por fora dos cobertores, com os ouvidos à escuta, a tentar descortinar algum ruído ou barulho indicador da luta e a desejar que fosse o Ano Novo a vencer. E não é que tinham uma sorte danada, pois no dia seguinte de manhã, ao indagar junto dos adultos quem teria sido o vencedor, havia sempre uma fonte fidedigna que jurava que tinha sido o Ano Novo a vencer a peleja. Outra lenda, esta mais destinada aos adultos, era a de que tudo o que acontecesse neste dia havia de acontecer durante todos os dias do ano. Assim quem trabalhasse neste dia havia de trabalhar todos os dias do ano, pelo que este dia deveria ser um dia de descanso.
Mas a grande festa era de tarde. Depois da missa e do jantar, sempre melhorado nesse dia com galinha guisada, inhames, linguiça e torresmos, as crianças que nos dias anteriores haviam formado grupos e ensaiado os cânticos adequados, percorriam todas as ruas da freguesia, a cantar os Anos Bons, junto das portas de quase todas as casas, exceção para as que estavam de luto ou tinham algum enfermo em estado grave. Em cada grupo havia um chefe ou líder que tinha como funções principais formar, preparar e liderar o grupo e ainda a de receber o dinheiro e no fim o dividir, equitativamente, por todos os membros do grupo. Durante a tarde do dia de Ano Novo lá iam pelas portas das casas, tocando gaita, ferrinhos e cantando, a fim de que a dona da casa desse uma moedita ou um copinho de licor ou uns figos passados.
Chegados junto à porta da sala de cada casa cantavam:
Anos Bons e tão Bons Anos,
Deus vos dê de melhorados,
Tudo isto passou Cristo
Perdoai nossos pecados.
Ó senhora dona da casa
Raminho da salsa crua
Lá aos pés da sua cama
Nasce o Sol e põe-se a Lua.
Se a porta se abria logo, sinal de que a dona da casa daria alguma coisa, cantavam esta quadra:
A senhora Mariquinhas
Assentada na cadeira
Parece um botão de rosa
Apanhado na roseira.
Se a porta demorava em abrir-se ou nem se abrisse, sabendo o grupo que a dona estava em casa, cantava:
Ó Senhora Mariquinhas
Coração de pedra dura,
Venha-nos abrir aporta
Estou co’a mão na fechadura.
No fim do dia, já ao anoitecer, o chefe de cada grupo dividia o dinheiro, equitativamente por todos. Geralmente dava mais do que um escudo a cada um, o que já era muito bom! Cada qual ia comprar um chocolate, por vinte centavos e guardava o restante para o dia da Festa da Senhora da Saúde.